Teu protagonista não convence. Refaça.
(Correspondência do escritor Daniel Galera para o editor
André Conti. VIA)
Amigo André,
Folgo em saber que vai retomar o projeto do teu romance.
Talvez tu não lembre bem, mas já me falou sobre ele em detalhes, da mesma forma
que não me lembro bem dos detalhes, pois estou seguro de que estávamos os dois
bêbados e, provavelmente, transtornados. É o da Múmia? Mas não, prefiro que não
repita nada, quero ser surpreendido quando tu me mandar o original. Acho que
nem preciso dizer que a amizade estará anulada caso tu não me inclua entre os
teus primeiros leitores. Pode até me mandar o conto do poeta concreto, pra eu
ir esquentando. Saberei ler no contexto, não tema.
Aliás, interessante tu ter escrito isso: “Na faculdade eu
escrevi contos, não sei onde estava com a cabeça. São uns textos pretensiosos,
forçados, ainda bem que só um foi publicado.” Eu também escrevi uns contos na
faculdade. Eu também não sabia onde estava com a cabeça. Eram uns textos
pretensiosos, forçados. Ainda bem que... não, peraí. Vários foram publicados.
Alguns até entraram no meu primeiro livro e podem ser lidos por todo mundo,
porque deixo o PDF lá no meu site. Sem drama, um livro também é seus defeitos,
como uma pessoa.
Mas o que eu queria mesmo dizer é que admiro medularmente o
que no fim das contas tu escolheu ou foi levado, qual títere, a fazer: ser
editor. Eu tive minha temporada como editor, com o Mojo, quando criamos a
Livros do Mal, e eu tirava um prazer enorme daquilo. Mas é difícil, e não é pra
qualquer um, e uma hora eu senti que precisava escolher entre editar livros dos
outros ou tentar escrever os meus. Não que sejam atividades excludentes, não
necessariamente. Pode-se ter talento para as duas. Mas dificilmente alguém terá
energia para as duas. Para se entregar de coração, apontar a vida para as duas
ao mesmo tempo. E tu não me convenceu, assim como não convenceu a si mesmo,
quanto tentou dizer na tua última carta que ser editor não é um trabalho
criativo à sua maneira. Um dos maiores lugares-comuns sobre o trabalho do
escritor, propagado com alguma frequência por mim mesmo, porque falo sem
pensar, é que o escritor trabalha sozinho. “Escolhi isso porque não sei
trabalhar com os outros.” O escritor trabalha com o editor.
Todos os meus livros foram melhorados por editores, em
diferentes graus, mas sem exceções. Vale até para os primeiros, independentes,
que certamente foram melhorados pelas sugestões do Mojo, que até hoje está
entre os meus primeiros leitores, mas que na época da Livros do Mal também era
uma espécie de editor pra mim. Graças ao Luiz e à Marta, cortei toneladas de
mimimi, explicações desnecessárias, redundâncias, advérbios e adjetivos
excessivos, cenas bobas e cafonices dos meus livros. A primeira versão do
Cordilheira foi praticamente recusada. Talvez ela tenha sido recusada. Não
lembro bem, bloqueei a memória. Mas os seis meses de trabalho adicional baseado
nos comentários editoriais me permitiram fazer um livro melhor. Sem a tua
ajuda, os diálogos da Cachalote simplesmente não seriam o que são.
Uma vez, num debate do qual participei, alguém sugeriu que
os meios digitais acabariam matando a figura do editor, pois o autor poderia
levar o trabalho direto ao leitor, sem intermediários etc. E eu disse que podem
até matar o editor, não duvido que aconteça, mas em pouco tempo ele será
ressuscitado por autores trêmulos e desamparados. O mercado poderá mudar à vontade
que o editor estará encaixado em algum lugar, talvez como uma espécie de
consultor freelancer cujo trabalho será respeitado como o das melhores casas
editoriais.
Mas é claro que a ambição da autoria deve seduzir todo
editor. Todo livro que nos encanta, que se conecta de verdade com nosso ser
vital, parece ter sido escrito com facilidade justamente porque ocorre uma
interseção dos dois conjuntos, a subjetividade do autor e a do leitor, uma
interseção que sempre esteve lá ou que é engendrada pelo próprio livro ao
afetar o leitor de maneira substancial durante e/ou depois da leitura. Parece
meio inevitável que alguém tenha optado por dizer aquelas coisas daquela
maneira. No entanto, o editor conhece tão bem como o autor a dificuldade de
converter a visão de mundo em linguagem, ou o reino ideal da imaginação em uma
narrativa pronta, escrita no papel. Pra quem dedica tempo da vida a criar
histórias, a imaginação vai se tornando a referência, uma realidade total da
qual as palavras não dão conta por mais que se expanda, reorganize e lapide o
texto. Se tu (André) pensa no teu romance, aposto que vê toda a história ali,
na nuvem diante da testa ou na tela atrás das pálpebras, todos os personagens,
as relações entre cada elemento da história, todo o diagrama holográfico,
absolutamente tudo que deseja comunicar. Aquilo existe, e parece tão palpável.
Mas aí tu senta na frente do teclado.
É por isso que eu amo os editores, porque eles sabem disso,
mesmo que não tenham a ambição de serem autores. Eles entendem o processo,
suspeito que podem até mesmo sentir o processo e se colocar no lugar do autor
em muitos casos, mas estão, grosso modo, livres da vaidade, do desespero, do
narcisismo, da segurança, da insegurança, da convicção, da ansiedade, da
teimosia, da cegueira, da euforia, da arrogância, da humildade, do medo, da
pretensão, para não dizer da eventual megalomania, bloqueio criativo, terror,
paranoia, delírio e por vezes loucura do autor. Mas eles entendem o papel que
uma, algumas, várias ou todas essas coisas podem desempenhar no trabalho do
autor e estão – são os únicos, na grande maioria dos casos – em posição de
ajudar.
Esses tempos andei pensando seriamente, pela primeira vez,
numa pergunta tão repetida que a gente se acostuma a responder com leviandade
ou galhardia: por que fui escrever em vez de fazer outra coisa? (Não que se
escolha qualquer coisa nessa vida, nem preciso dizer, mas é imperioso agir como
se tudo fosse uma escolha, então continue comigo.) Tudo bem, eu sempre fui meio
quieto, tinha vontade de me expressar etc., mas a verdade é que tentei várias
outras maneiras de fazer isso antes de escrever. A ideia de ser pintor,
designer ou músico me seduzia muito mais do que a figura do escritor na
adolescência, mas foi só na escrita que encontrei alguma recompensa verdadeira.
Em parte, foi a descoberta de uma inclinação até então desconhecida para lidar
com essa linguagem específica, ok, essa parte é fácil.
Mas o principal, acredito hoje, tem a ver com esse
isolamento radical do momento criativo, a separação crítica, na literatura,
entre o ato expressivo e o instante da fruição alheia. Que é o oposto, talvez,
do que acontece com o ator, que pode até se preparar em reclusão, mas terá de
desempenhar para a plateia, para a equipe de filmagem ou pelo menos para o
diretor ou operador de câmera em algum momento. Mesmo um pintor, ele pode
trabalhar em reclusão, mas se pensamos na obra, ela se oferece inteira a quem
espiar pela fresta durante o processo, a pessoa bate o olho num quadro
inacabado e ali está ele, inacabado mas inteiro, um fotograma total daquela
etapa do trabalho.
O escritor de literatura não apenas pode trabalhar em
reclusão, ele é quase obrigado a fazer isso, e não se pode bater o olho num
original inacabado, não se pode apreendê-lo de imediato, é preciso ler,
percorrer todo o percurso da obra inacabada numa situação que exclui o autor
tanto quanto o processo criativo do autor exclui o leitor. O autor estará
sozinho no que faz até o fim do processo e em geral por um bom tempo após o fim
do processo também, e pode haver meses entre o ponto final e aquele dia em que
o primeiro leitor da obra se aproxima e diz alguma coisa.
Caso não tenha ficado rocambolesco demais pra entender, foca
nisso, nessa cisão extrema dos lugares que ocupam o autor enquanto trabalha e o
leitor quando lê. Eu acho que é isso que me fez aderir à escrita. Que haja esse
isolamento e esse descompasso e que, apesar disso, se possa ler um conto, um
romance ou um poema e não apenas ter a impressão de que foi fácil, óbvio ou
inevitável que alguém o tenha inventado e escrito daquela maneira, mas de que
ele foi escrito para nós ou, em casos extremos, sublimes, por nós mesmos. E
houve um momento da minha vida em que concluí que era desse jogo que eu
precisava tentar participar, no papel de autor, e que seria melhor transitar
nisso e fracassar do que ser bem-sucedido em qualquer outra coisa.
Os bons editores que conheço entendem isso, arrisco dizer.
Fica claro quando tu começa a tocar nesse tipo de assunto, meio envergonhado,
na defensiva, crente da inutilidade do esforço, imaginando com os leitores
ririam, e como os críticos ririam, e como teus amigos e teus pais ririam, e
como qualquer transeunte que fosse abordado aleatoriamente riria, mas não os
editores, eles escutam esse tipo de coisa e dizem tudo que precisa ser dito com
um aceno de cabeça curto, às vezes na vertical, às vezes na horizontal, ou na
diagonal ou para todos os lados, dependendo do caso, e com isso tudo está dito,
porque tu sabe que eles também sabem, e agora vamos ao que interessa: teu
protagonista não convence. Refaça.
Tchê, talvez essa seja minha última carta por um tempo.
Preciso dar um pouco de atenção pro meu livro e me enfiar num canto por umas
semaninhas. Espero que entenda. (Percebe agora como toda essa carta visava
única e somente a persuasão afetiva e a chantagem emocional?) Mas podemos
seguir falando por mensagens de texto no celular, o chamado “torpedo”.
Melhoras aí no mindinho.
My best wishes,
Danny G.
Nenhum comentário:
Postar um comentário