sexta-feira, 3 de maio de 2019

Escrever


O Começo e o Fim



São muitos os exemplos de começos exemplares de obras de ficção — romance, novela e contos — de forma a surpreender o leitor e seduzi-lo, na maioria de vezes, para longas histórias. O mais destacado deles é, sem dúvida, o início de A metamorfose, de Kafka, pela surpresa, pela precisão, pela beleza: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. Rápido, direto, incisivo, simples. Sim, a simplicidade é um dos destaques da obra deste escritor mesmo quando envolve metáforas e símbolos grandiosos.

Aliás, deve-se destacar que a simplicidade e a precisão devem marcar o ritmo narrativo de qualquer autor. Mesmo quando não inclui o terceiro elemento: a surpresa. Até porque a surpresa pode ser desastrosa para autores iniciantes. É preciso cuidado, muito, muito cuidado. Na minha vida de oficineiro, tenho encontrado muitos iniciantes que desejam superar os mestres e escrevem coisas assim: “Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso com quatro patas, cinco braços e oito peitos”.

Orgulhoso apresentou-me o texto, talvez influenciado pelos monstrinhos dos filmes de horror. Tive, então, que acrescentar mais um elemento para a criação do texto literário: sobriedade. Sem esquecer a verdade de sempre: elegância. Tenho dito que escrever deve ser tão simples quanto beber um copo d’água. Sem qualquer dificuldade para o leitor. Pelo menos, em princípio.

Não se deve esquecer a sofisticação, até porque sofisticação não é sinônimo de dificuldade. A sofisticação está mesmo na simplicidade. No corte psicológico da narrativa, por exemplo, o leitor é envolvido pela mudança e não percebe, deixa-se envolver, é seduzido. Nos romances de atmosfera isso é muito claro, visível. No estilo indireto livre, criado por Flaubert, a sofisticação com simplicidade é exemplar. Vejamos esta frase de Madame Bovary, onde as vozes do narrador e de Rodolfo circulam sem aspas, mas são claramente distinguidas: “Rodolfo, que fora o condutor daquela fatalidade, achou-o bonachão demais para um homem na sua situação, cômico até e um pouco vil”. Na primeira parte da frase escuta-se a voz do narrador: “Rodolfo, que fora o condutor da fatalidade, achou-o”, na segunda parte, a voz de Rodolfo se destaca: “bonachão demais para um homem de sua situação, cômico até e um pouco vil”. Simplicidade com sofisticação. Não precisa distorcer nem aleijar.

Mesmo assim, sempre indico o final dos grandes romances para estudo do começo. Um destes finais vem de Hemingway, em Adeus às armas. Assim: “Mas depois que as expulsei dali e fechei a porta e acendi a luz, a situação em nada melhorou. Era como se eu tivesse me despedindo de uma estátua. Saí. Fui para a rua — e regressei ao hotel a pé, lentamente, sem dar atenção à chuva”. Absoluta precisão, seguida de simplicidade, sobriedade e elegância. Com o estudo deste final podemos estudar o começo de muitos romances.

Além disso, há também o final de Ana Karenina, de Tólstoi, apesar dos excessos românticos e de curvas narrativas: “Quis atirar-se para debaixo do trem que neste momento chegava junto dela, mas a maleta vermelha, de que procurava desprender-se, distraiu-a e não lhe de tempo: o centro do vagão já havia passado. Era preciso esperar o imediato. Uma sensação parecida com a que costumava experimentar a entrar na água à hora do banho se apoderou dela, e persignou-se. Este gesto familiar despertou-lhe na alma recordações da infância e da juventude”.

Uma aula, não é? Por este caminho poderemos descobrir o texto de muitos começos de histórias, exigindo, porém, muito estudo e muita reflexão. Por isso, acredito tanto em oficinas de criação.