sexta-feira, 23 de junho de 2023

Ler

 

Bons leitores e bons escritores I

 


Vladimir Nabokov

(Retirado do livro "Lições de Literatura, de Nabokov - Ed.Fósforo - O texto original já é dividido e aproveitei para postar em duas partes: a primeira sobre os leitores, mês que vem os escritores.)

 

“Como ser um bom leitor” ou “Tratem bem os escritores” — algo assim poderia fornecer o subtítulo para este estudo de vários autores, porque meu plano é lidar carinhosamente com diversas obras-primas europeias, examinando seus detalhes sem pressa e com um olhar afetuoso. Cem anos atrás, Flaubert, em uma carta para a sua amante, fez a seguinte observação: “Comme l’on serait savant si l’on connaissait bien seulement cinq à six livres” [Que sábios seríamos se conhecêssemos muito bem apenas cinco ou seis livros].

Quando lemos, devemos reparar nos detalhes e acariciá-los. Não há nada de errado com o luar da generalização se ele vem depois que as minúcias ensolaradas do livro tenham sido amorosamente coletadas. Caso parta de alguma generalização banal, o leitor toma o rumo errado e se distancia do livro antes mesmo de começar a entendê-lo. Nada é mais enfadonho ou mais injusto para o autor do que, por exemplo, começar a ler Madame Bovary com a noção preconcebida de que se trata de uma denúncia da burguesia. Nunca deveríamos esquecer que, como a obra de arte é sempre a criação de um novo mundo, a primeira coisa a fazer é estudar esse novo mundo tão de perto quanto possível, encarando-o como algo novo em folha, sem nenhuma conexão óbvia com os mundos que já conhecemos. Quando esse novo mundo houver sido minuciosamente estudado, então, e só então, examinaremos seus vínculos com outros mundos, outros ramos do conhecimento.

Outra questão: podemos esperar obter informações sobre lugares e momentos históricos em um romance? Será que alguém é tão ingênuo a ponto de pensar que pode aprender alguma coisa sobre o passado nos corpulentos campeões de vendas comercializados pelos clubes de livros sob o disfarce de romances históricos? Mas e as obras-primas? Podemos confiar no retrato que Jane Austen faz da propriedade rural na Inglaterra com baronetes e paisagens planejadas quando tudo que ela conhecia era a sala de visita de um clérigo? E A casa soturna , esse romance fantástico em uma Londres fantástica: seria possível dizer que se trata de um estudo da cidade cem anos atrás? Certamente não. O mesmo se aplica a outros romances neste curso. A verdade é que grandes romances são grandes contos de fadas, e os romances destas lições são supremos contos de fadas.

Tempo e espaço, as cores das estações do ano, os movimentos dos músculos e das mentes, é disso que se servem os escritores talentosos (tanto quanto podemos imaginar, e confio em que estou certo), e não de noções tradicionais passíveis de serem tomadas por empréstimo nas bibliotecas volantes das verdades públicas. Os grandes artistas aprenderam a expressar de maneira peculiar a cada um deles uma série de surpresas especiais. Aos escritores menores resta a ornamentação dos lugares-comuns, pois, não se dando ao trabalho de reinventar o mundo, simplesmente tentam extrair o máximo possível de determinado esquema de coisas, dos padrões tradicionais da ficção. As diversas combinações que os autores menores são capazes de produzir dentro desses limites estreitos podem ser bem divertidas de um modo algo efêmero, uma vez que leitores menores gostam de reconhecer suas próprias ideias sob uma roupagem agradável. Mas o verdadeiro escritor, aquele que faz planetas girarem e, tendo esculpido um homem adormecido, utiliza sua costela, não dispõe de valores pré-fabricados: ele próprio precisa criá-los. A arte da escrita é algo muito inútil se não implicar, antes de tudo, a arte de ver o mundo como uma ficção em potencial. O material desse mundo pode ser bem real (tanto quanto a realidade o permite), porém não existe como um todo bem conhecido: ele é o caos, que o autor ordena que entre em ação, permitindo que o mundo se acenda, bruxuleante, e entre em ignição. Seus átomos então se recombinam, e não apenas nas partes visíveis e superficiais. O escritor é o primeiro a organizá-lo e a modelar os objetos que ele contém. Aquelas frutinhas ali são comestíveis. Aquela criatura de pele sarapintada que atravessou o caminho pode ser domesticada. Aquele lago, em meio às árvores, será chamado de lago Opala ou, mais artisticamente, de lago da Pia da Cozinha. Aquela névoa é uma montanha — e a montanha precisa ser conquistada. O grande artista vai subindo por uma vertente sem trilha, e, chegado ao topo, em um penhasco ventoso, quem vocês pensam que ele encontra? O leitor ofegante e feliz, e lá eles espontaneamente se abraçam e ficam unidos para sempre se o livro durar para sempre.

Certa noite, em uma universidade longínqua de província que por acaso visitei em uma longa série de palestras, sugeri uma pequena pesquisa — dez definições de um leitor, das quais os alunos tinham de escolher quatro que, combinadas, caracterizariam o bom leitor. Não sei onde pus a lista, mas, tanto quanto me recordo, as definições eram as que constam abaixo. Selecionem quatro respostas sobre o que um leitor deve ser a fim de que possamos considerá-lo um bom leitor.

1) O leitor deveria ser membro de um clube do livro.

2) O leitor deveria se identificar com o herói ou a heroína.

3) O leitor deveria concentrar-se no ângulo socioeconômico.

4) O leitor deveria preferir uma história com ação e diálogos a uma que não os tenha.

5) O leitor deveria ter visto um filme sobre o livro.

6) O leitor deveria ser um autor principiante.

7) O leitor deveria ter imaginação.

8) O leitor deveria ter boa memória.

9) O leitor deveria possuir um dicionário.

10) O leitor deveria ter algum senso artístico.

A maioria dos alunos privilegiou a identificação emocional, a ação e o ângulo socioeconômico ou histórico. Obviamente, como vocês terão adivinhado, o bom leitor é aquele que tem imaginação, memória, um dicionário e algum senso artístico — o qual eu me proponho a desenvolver em mim mesmo e em outras pessoas sempre que tenho oportunidade.

Aliás, uso a palavra leitor de maneira bastante informal. Curiosamente, ninguém pode ler um livro: só pode relê-lo. Um bom leitor, um grande leitor, um leitor ativo e criativo, é um releitor. E vou lhes dizer por quê. Quando lemos um livro pela primeira vez, o próprio processo de mover laboriosamente os olhos da esquerda para a direita, linha após linha, página após página, esse complicado trabalho exigido pelo livro, o processo de aprender em termos de espaço e tempo do que ele trata, tudo isso se interpõe entre nós e a apreciação artística. Quando olhamos para uma pintura, não precisamos mover os olhos de um modo especial mesmo se, como em um livro, o quadro contiver elementos de profundidade e desenvolvimento. O elemento temporal na verdade não está presente no primeiro contato com uma pintura. Ao lermos um livro, necessitamos de tempo para nos familiarizarmos com ele. Não temos um órgão físico (como o olho para a pintura) capaz de abarcar toda a cena e depois apreciar seus detalhes. Mas em uma segunda, terceira ou quarta leitura de certo modo nos comportamos a respeito de um livro como em relação a uma pintura. No entanto, não confundamos o olho físico, essa monstruosa obra-prima da evolução, com a mente, uma conquista ainda mais monstruosa. A fronteira entre uma obra de ficção e um estudo científico não é tão nítida quanto em geral se crê, mas o livro de ficção atrai em primeiro lugar a mente. A mente, o cérebro, o topo da espinha que pode sentir calafrios, é, ou deveria ser, o único instrumento usado em um livro.

Sendo assim, devemos refletir sobre como a mente funciona quando o leitor mal-humorado é confrontado com um livro solar. Primeiro, o mau humor se dissolve e, para o bem ou para o mal, o leitor entra no espírito do jogo. O esforço para começar um livro, em particular se ele foi elogiado por pessoas que o jovem leitor secretamente considera ultrapassadas ou demasiado sérias, é muitas vezes difícil; mas, depois que isso é feito, as recompensas são diversas e abundantes. Uma vez que o grande artista usou sua imaginação ao criar o livro, é natural e justo que seu consumidor também a use.

Contudo, como há pelo menos duas espécies de imaginação no caso do leitor, vejamos qual das duas é a que deve ser usada ao ler um livro. Primeiro, existe a variedade comparativamente menor que se apoia nas emoções simples e é de natureza pessoal. Há diversas subespécies dessa leitura emocional. Determinada situação em um livro é sentida de modo intenso porque nos lembra algo que aconteceu conosco ou com alguém que conhecemos. Por outro lado, um leitor pode valorizar um livro sobretudo por evocar um país, uma paisagem, um padrão de vida que, nostalgicamente, ele reconhece como parte de seu passado. Ou ainda, e esta é a pior coisa que um leitor pode fazer, ele se identifica com um personagem do livro. Essa variedade inferior não é o tipo de imaginação que eu gostaria que os leitores usassem.

Nesse caso, qual é o instrumento autêntico a ser utilizado pelo leitor? São a imaginação impessoal e o prazer artístico. O que precisa ser criado, acho eu, é um harmonioso equilíbrio artístico entre a mente do leitor e a mente do autor. Precisamos manter certo distanciamento e tirar prazer dele, ao mesmo tempo que desfrutamos intensamente — desfrutamos apaixonadamente, desfrutamos com lágrimas e arrepios — da textura interna de determinada obra-prima. Obviamente, é impossível ser muito objetivo nessas questões. Por exemplo, o fato de vocês estarem sentados aí pode ser apenas um sonho meu, e eu posso ser o pesadelo de vocês. Mas o que desejo dizer é que o leitor precisa saber quando e onde sofrear sua imaginação, o que ele faz tentando entender com clareza o mundo específico que o autor põe ao seu dispor. Devemos ver coisas e ouvir coisas, precisamos visualizar os aposentos, as roupas, o comportamento dos seres criados pelo autor. A cor dos olhos de Fanny Price em Mansfield Park e a mobília de seu quartinho frio são importantes.

Todos nós temos temperamentos diferentes, mas creio que o melhor temperamento que um leitor pode possuir, ou desenvolver, é uma combinação do artístico e do científico. O artista entusiástico tende a ser subjetivo demais em sua atitude para com um livro, razão pela qual certa frieza científica abrandará seu ímpeto intuitivo. No entanto, caso um candidato a leitor seja totalmente carente de paixão e de paciência — da paixão do artista e da paciência do cientista —, ele terá dificuldade em sentir prazer com a grande literatura.