sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Escrever

3388) Melodrama de ação (5.1.2014)




Braulio Tavares



Melodrama de ação é toda narrativa baseada na aventura com ação física intensa, variada, exibicionistamente descrita. Por ação física entenda-se brigas individuais e batalhas coletivas, perseguições, fugas, travessia de lugares perigosos, condução de veículos em situações desfavoráveis, enfrentamentos com feras ou com flagelos da natureza... Ninguém captura isto tão bem quanto o cinema, e querer que não haja filmes de ação é bobagem de intelectuais desocupados. (O que, aliás, é um oxímoro. Todo verdadeiro intelectual tem sempre o que fazer, ao invés de ficar implicando com bobagens.)

O termo melodrama designava um tipo de teatro musicado (“melo” = música) que ficou associado a histórias implausíveis, com perigos exagerados, sentimentalismo, personagens “de papelão”, histórias cheias de improbabilidades, coincidências, fatalismos, sem preocupação de verossimilhança, e pretendendo apenas produzir sensações fortes, dar sustos, criar suspense... Uma boa sátira ao melodrama é o conto “A chinela turca” de Machado de Assis.

O melodrama tradicional é do tempo do romance folhetim (que redundou nas telenovelas e nas séries de TV, com sua estrutura de finais em suspenso) e do teatro de Grand Guignol, com sua violência gráfica, explícita, hoje transposta para filmes B de terror, “gory”, “slash”. Mas eu diria que o melodrama de ação mais importante de hoje é o filme de super heróis, e que os efeitos especiais cumprem uma função parecida com a que a música orquestral cumpria naquele teatro de 150 anos atrás.

O filme de super heróis é um melodrama onde tudo está subordinado à ação: roteiro, interpretação, direção. Movimentação incessante, destruição reiterada de objetos e cenários, e um plot que se limita a, mediante situações psicológicas extremas (vinganças, ódios, crueldades, ambições desmedidas, presença de vilões megalomaníacos) justificar ações extremas onde a violência está sempre pronta para explodir. 

Algumas características do gênero: 1) o herói Doppelganger (homem pacato x justiceiro, duas pessoas que são uma só); 2) uma galeria de vilões com traços inconfundíveis, grotescos; 3) ação hipérbólica (não basta que dois personagens briguem, a briga precisa destruir um quarteirão inteiro); 4) soluções mágicas para impasses dramatúrgicos (enredos tipo “com-um-puxão-Jack-partiu-as-cordas-que-o-aprisionavam”, segundo Peter Nicholls); 5) cenas de 2ª. unidade obrigatórias (o estúdio exige cenas específicas para ocupar técnicos e laboratórios caríssimos); 6) emoções grandiloquentes e vulcânicas engastadas num tecido de irrelevância, onde a platéia imatura possa aconchegar-se à idéia de que “é tudo brincadeirinha”.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Escrever


Do que não falamos quando falamos de crítica

Antonio Xerxenesky



O Crítico Literário Hipotético tem quarenta e dois anos. É doutor em letras, e leciona na faculdade onde se formou, tentando ensinar qualquer coisa para alunos desinteressados de 18 anos. É moderadamente feliz em seu casamento; fantasia com duas alunas suas, mas não tem coragem de fazer nada, ao contrário de seus colegas. Sofre de úlcera. Recentemente, uma dor de dente o tem incomodado muito. Pode ser bruxismo, mas ele não quer usar aparelho dentário aos quarenta e dois anos. Ele escreve resenhas para jornais e revistas importantes. Sente que a crítica literária no âmbito da academia é muito restrita – uma forma de comunicação que não atinge mais do que meia dúzia de pessoas. Suas ideias naquele mundo não repercutem ou reverberam. Por isso escreve também as infames críticas jornalísticas – pelo dinheiro que não seria. Recebe caixas e caixas de livros com lançamentos. As editoras nem mais perguntam se ele quer receber o lançamento X ou Y, apenas mandam os livros.


Um jornal encomendou uma resenha do livro novo de Philip Roth e também do Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. O Crítico Literário Hipotético começa a ler o Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. Observa a foto do rosto do Jovem Escritor Bacana na orelha do livro. Lembra-se que já viu o rapaz em algum evento literário, cercado de admiradores. Lembra-se das declarações polêmicas que o jovem fez nas redes sociais. Pela trigésima página, larga o livro, sem vontade de ler mais, e decide começar o novo de Roth. Como sempre, Roth trata do medo da morte, das doenças que chegam com a idade (o crítico se recorda de sua úlcera), do desejo sexual que parece minguar com o passar dos anos (o crítico se recorda de suas duas alunas, aquelas duas alunas específicas), da relação entre um homem mais velho e uma garota mais jovem (o crítico passa a enumerar, mentalmente, livros nos quais um professor seduz uma aluna: Desonra, de Coetzee; Partículas elementares, de Houellebecq; Sobre a beleza, de Zadie Smith; uns dois ou três livros do próprio Roth). No fim de semana, o crítico senta e escreve duas resenhas. Fala sobre a função da literatura, a perplexidade do escritor perante o mundo. Fala de Kafka, Borges e Piglia. Fala do cuidado estilístico, da dificuldade em construir personagens críveis. Não menciona, em momento algum, a úlcera, as alunas que povoam sua imaginação. Não comenta a vergonha que consideraria usar um aparelho dentário aos quarenta e dois anos.


***

Não sou um crítico profissional. Costumo escrever resenhas aqui e acolá e tenho uma produção acadêmica tímida. Valorizo e aprecio a profissão de crítico. Sonho com uma carreira nessa linha, inclusive. De modo geral, me dão a liberdade de escolher quais livros quero resenhar, e sempre prefiro livros que acho que vou gostar (de um autor que já me agrada, ou algum desconhecido sobre o qual ouvi bons comentários). Se achar que o livro não vale um tostão, direi isso com todas as letras, embora considere um desperdício dar espaço para livros que não merecem a atenção do leitor. Afinal, como todos estão cansados de saber, os cadernos culturais são terrivelmente magricelas. Porém sempre me ponho a pensar o seguinte: quanto da minha vida pessoal não está influenciando aquilo que escrevo e minhas maneiras de ler um livro?

A visão “biografista” que tenta buscar relações entre a obra de um autor e sua vida pessoal está morta e enterrada desde o advento das teorias do formalismo russo. Mas e a biografia do crítico? A úlcera do Crítico Hipotético não pode ter deixado o sujeito indisposto para certas leituras? O fato de que ele passou dos quarenta não o deixará levemente rancoroso em relação a um jovem escritor que é visto como uma “promessa”? Seus problemas amorosos não ecoarão em sua cabeça ao se deparar com narradores de Roth, sempre homens brancos de classe média com problemas de relacionamento?
Se, de fato, todas estas questões influenciam o julgamento crítico, o que ele pode fazer? Deveria abordar uma perspectiva totalmente pessoal e subjetiva, começar uma resenha dizendo: “Ontem eu estava andando na rua e…”? Ou então buscar uma leitura mais interpretativa da obra analisada, se distanciando, assim, de julgamentos de valor? É o que tenho tentado fazer em minhas últimas resenhas, com o slogan mental: “Mais interpretação, menos guia de compras”. Mas nossas interpretações não seriam igualmente abaladas por motivos extraliterários?

Nunca vou me esquecer de quando emprestei minha cópia de O passado, do Alan Pauls, para um amigo mais jovem. O passado figura entre meus livros favoritos de todos os tempos, e a obra não transmitiu nada a esse meu amigo. Ele não extraiu nenhuma interpretação empolgante do livro. Era apenas um romance bem escrito e nada mais. Teria a falta de um relacionamento amoroso turbulento no passado o impedido de fazer uma leitura mais rica do livro de Pauls? É o que especulo. Quando contei aos meus pais que detestei Desvarios no Brooklyn, de Paul Auster, eles retrucaram que eu não estava na idade certa para ler aquele livro. Quanto importa a idade? Quanto pesa a bagagem emocional? Não sei, não faço ideia. Talvez, quando descobrir, possa me considerar um crítico de verdade.


VIA