sexta-feira, 21 de julho de 2023

Escrever

 

Bons leitores e bons escritores II

 


Vladimir Nabokov

 

 (Retirado do livro "Lições de Literatura, de Nabokov - Ed.Fósforo - O texto original já é dividido e aproveitei para postar em duas partes: a primeira parte sobre os leitores foi postada mês passado, neste mês, os escritores.)

 

A literatura não nasceu no dia em que um menino chegou correndo e gritando “lobo, lobo”, vindo de um vale neandertal com um grande lobo cinzento em seus calcanhares: a literatura nasceu no dia em que um menino chegou gritando “lobo, lobo”, e não havia nenhum lobo atrás dele. Pouco importa que, por mentir com frequência, o pobre garotinho finalmente tenha sido devorado por um animal de verdade. O importante é que, entre o lobo em meio ao capim alto e o lobo na história pouco crível, há um elo cintilante. Esse vínculo, esse prisma, é a arte da literatura.

Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de verdadeira é um insulto tanto à arte quanto à verdade. Todo grande escritor é um grande impostor, mas assim é também a natureza, essa trapaceira contumaz. A natureza sempre engana. Do simples logro da propagação até a ilusão prodigiosamente sofisticada das cores protetoras em borboletas ou pássaros, existe na natureza um sistema maravilhoso de feitiços e ardis. O escritor de ficção se limita a seguir a liderança da natureza.

Voltando por um momento ao nosso menininho cabeludo que grita “lobo, lobo” no bosque, podemos ver a situação sob o seguinte ângulo: a mágica da arte residia na sombra do lobo que ele inventou deliberadamente, seu sonho de um lobo; depois, o logro deu origem a uma história interessante. Quando ele morreu, a história contada sobre ele se transformou em uma boa lição a ser contada em volta da fogueira do acampamento em uma noite escura. Mas ele foi o pequeno mágico. Ele foi o inventor.

Um escritor pode ser considerado de três pontos de vista: pode ser visto como um contador de histórias, como um professor e como um mago. Um grande autor combina os três — contador de histórias, professor e mago —, mas é o mago nele que predomina e o torna um grande escritor.

Procuramos o contador de histórias para nos divertirmos, pela excitação mental do tipo mais simples, pela participação emocional, pelo prazer de viajarmos em alguma remota região do espaço ou do tempo. Uma mente um pouco diferente, embora não necessariamente superior, procura o professor no autor. Propagandista, moralista, profeta — essa é a sequência ascendente. Podemos ouvir o professor para obter não apenas uma educação moral, mas também conhecimento direto, fatos comuns. Infelizmente, conheci gente cujo propósito ao ler romancistas franceses e russos consistia em aprender alguma coisa sobre a vida na alegre Paris ou na triste Rússia. Por fim, e acima de tudo, um grande escritor é sempre um grande mago, e é aqui que chegamos à parte de fato excitante ao tentarmos apreender a mágica individual de seu talento e estudar o estilo, as imagens, o desenho de seus romances ou poemas.

As três facetas do grande escritor — mágica, história, lição — tendem a se mesclar em uma impressão de brilho unificado e único, uma vez que a arte da mágica pode estar presente na própria ossatura da história, na própria medula do pensamento. Há obras-primas de pensamento seco, límpido e organizado que nos provocam um sobressalto artístico tão potente quanto um romance como Mansfield Park ou o rico fluxo das imagens sensuais de Dickens. Parece-me que uma boa fórmula para testar a qualidade de um romance é, no longo prazo, uma fusão da precisão da poesia com a intuição da ciência. A fim de usufruir dessa mágica, um leitor sábio lê o livro de um gênio não com o coração, nem mesmo com o cérebro, mas com a coluna vertebral. É de lá que vem o formigamento revelador, embora, ao lermos, devamos nos manter um tanto afastados, em uma postura neutra. Então, com um prazer que é ao mesmo tempo sensual e intelectual, devemos observar o artista construir seu castelo de cartas e ver tal castelo transformar-se em um de vidro e aço.