sexta-feira, 14 de junho de 2019

Escrever

Luisa Geisler


1.
Fiz apenas duas oficinas de criação literária na vida. Na verdade, houve uma terceira, mas nela minha maior motivação era um colega gracinha que se tornou meu namorado de quase dois anos. Foco nas duas oficinas que me marcaram em termos de técnica. Falemos da oficina de criação literária da PUC-RS com Luiz Antonio de Assis Brasil e da minha matéria de “Craft and Technique of Fiction (1): The Short Story”, na University College Cork com Zsuzsi Gartner.

2.
A discussão de “oficinas de criação literária são boas?” não cabe aqui. Não é um texto sobre isso. Até porque pessoas escrevem, pessoas opinam. O autor entende que existe um leitor. Ele faz o que quiser com essa informação. É a respeito da questão de oficinas criarem apenas um tipo homogêneo de texto, ou de leitor… vejamos.

3.
Para podermos comparar, vamos apresentar as duas oficinas.

3.1
Oficina de Criação Literária da PUC-RS: no meu caso, lecionada por Luiz Antonio de Assis Brasil, um curso aberto além de uma matéria no Mestrado em Escrita Criativa. Dura dois semestres com quatro horas semanais. A oficina é vista como uma das mais tradicionais e antigas do Brasil, com alumni de alto garbo e elegância que hoje publicam ao redor do mundo, como Michel Laub, Daniel Galera, Carol Bensimon, entre outros.

3.2
Matéria de “Craft and Technique of Fiction (1): The Short Story", lecionada por Zsuzsi Gartner. A professora, premiada autora canadense e já professora de workshops no Canadá, era e é uma visiting professor. Ou seja, ela estaria na universidade por um semestre apenas. Ninguém tinha muita referência. O semestre é composto de encontros de duas horas semanais.

4.
Dito isso, existe o ditado que você só tira de uma aula aquilo que você coloca, certo?

4.1.
Luisa Dalla Valle Geisler, meados de 2009:
Dezoito anos de puro medo, como um gato selvagem. O autor mais contemporâneo que eu conhecia era Milton Hatoum, leitura obrigatória para o vestibular. Era tecnicamente suplente no curso. Tinha saído do curso de Letras no ano anterior e planejava largar a oficina no meio para fazer um intercâmbio e morar no exterior. Tinha escrito fanfics de Harry Potter e diários.

4.2
Luisa Geisler, 2016:
Vinte e cinco anos de ansiedade e preguiça. Aprecia contemporâneos e adora discutir feminismo no meio literário. Fez a matrícula na matéria e nunca mais pensou a respeito. É bolsista e tradutora para pagar o fato de que está fazendo o tal intercâmbio que queria, de morar no exterior. Escreveu dois romances e um livro de contos, além de uma infinidade de rascunhos.

5.
Pronto, agora podemos falar.

6.
Durante 2009, por não fazer muito mais além da oficina, li quase toda a bibliografia de Hemingway. Li muito de Tchekhov. Li Melville. Li teoria do conto com Piglia e Cortázar. Descobri muitos contemporâneos. Formei opiniões sobre o que gostava e não gostava. Muito disso envolve opiniões do professor Assis Brasil, mas nenhuma opinião surge num vácuo. A escolha de ponto de vista, de local, de tempo, tudo tem que ajudar a estabelecer o objetivo da história. Adjetivos com moderação. Tudo com moderação, até moderação. No final das contas, todas as regras podem ser quebradas se o resultado funcionar no final.

Um detalhe importante que ocorreu durante a oficina com Assis Brasil foi que achei a medida certa de tamanho de frases para mim. Até aquele momento, me acostumara com comentários de “confuso” ao lado dos parágrafos. Não sabia por quê. Em algum momento, os comentários de Assis me ajudaram a ver a relação entre trabalhar frases e achar o ponto certo. Onde elas têm que acabar. Foi quando, via acerto e erro, comecei a ver ritmo no texto, o equilíbrio.

Por outro lado, hoje eu e Zsuzsi sentamos nas office hours e falamos de George Saunders com uma empolgação infantil. Zsuzsi nos fez escrever em segunda pessoa. Zsuzsi acha melhor tentar fazer uma coisa diferente e crash and burn do que fazer algo perfeitamente formal. Zsuzsi nunca mencionou Hemingway. Durante esse semestre, inclusive, brinquei durante uma entrevista que só li, escrevi e lavei louça.

Zsuzsi até hoje treina meu ouvido para o que é certo em inglês, em comparação com o que soa bem. Sim, você pode dizer isso, mas soa antiquado ou informal demais. É um ouvido ainda em treinamento, que talvez também esteja sendo treinado em português. Sempre respondeu dedicação com mais dedicação: ela quer que o texto seja a melhor versão possível.

Zsuzsi nunca parece parar de editar: quando entrego uma versão melhorada de algo em aula, ela pede a primeira versão, compara com a segunda e me cobra uma terceira. Acha buracos em histórias de dez linhas. Durante uma análise de aula, ela perguntou por que determinado personagem não quis dividir um táxi com seu interesse romântico. Porque você é claramente uma editora boa demais, respondi. Risos preencheram a sala. Mas era a única resposta que eu tinha para minha cagada.

7.
Dito isso, não consigo separar a pessoa que sou e era nessas duas oficinas em termos de aprendizado. Elas parecem ter se encaixado com perfeição nos momentos de escrita em que estava. Em 2009, precisava de uma boa noção formal, afinal não conhecia nenhuma das técnicas ou expressões bonitas. Pra ser honesta, não entendia que tipo de texto queria ou conseguia escrever. Não sei nem como agradecer ao Assis Brasil por conseguir ver que, apesar de eu saber quase nada nesse sentido, havia uma vontade de escrever e escrever bem acima de tudo.

Por outro lado, tenho a sensação de que um conhecimento se constrói sobre outro. Não sei como eu responderia às aulas de Zsuzsi se não tivesse me encantado por Hemingway um tempo atrás. Gostei muito do resultado dos exercícios em segunda pessoa que fizemos, mas não sei se teria conseguido fazê-los bem se não tivesse trabalhado tanto a terceira ou a primeira pessoa.

Zsuzsi em uma ocasião disse que minha escrita é muito madura, e me pergunto se ela teria dito isso se eu tivesse começado do zero, como muitos de meus colegas. Ela disse que gosta de minhas contribuições e participações em aula, e fico rindo em silêncio pensando em todas as vezes que achei que não pertencia à oficina na PUC-RS por ser muito nova, muito pouco educada formalmente, muito tímida. E talvez eu fosse ainda mais tímida se tivesse 18 anos na oficina dela. Nunca tinha escrito em inglês antes, não com tanta frequência, não com intenções literárias. Talvez não tivesse tanto medo quanto um gato selvagem, mas tinha pavor de que tudo desse errado.

Mas antes crash and burn tentando do que fazer tudo certo, ela mesma disse.

Em diversos e-mails que troco com Zsuzsi e saídas para cervejas e noites de jogos de tabuleiro, reitero que ela não tem noção de como ela tem sido importante para minha formação. Digo isso não apenas para ela, mas porque sei que deveria ter dito isso com mais frequência para todos os meus professores.



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