sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Escrever

1180) A sobrevida do Melodrama (24.12.2006)


(um dos melhores textos do Bráulio Tavares sobre narrativa; e absolutamente correto.)




Uma questão constante de quem trabalha com a Arte da Narrativa (cinema, TV, romance, teatro, etc.) é a onipresença do Melodrama, a tirania do Melodrama, a incapacidade dos narradores de fugir do Melodrama sem se afundar na vanguarda ininteligível ou intragável.

Uso “Melodrama” aqui na mais livre e ampla das acepções: tudo aquilo que faz uma narrativa emocionar, atrair, prender, sacudir uma platéia.

Para uns é algo obviamente importante e necessário: quem não quer fazer isto com o público? Para sujeitos mais reflexivos e menos propensos a arroubos de emoção, o Melodrama é uma praga.

Imaginem um leitor habitual de Samuel Beckett tendo que assistir um capítulo inteiro da novela das 8, e terão uma idéia do que um intelectual desse tipo experimenta ao ser exposto à kryptonita do Melodrama.

Num debate recente no “Re-Cine”, festival de cinema documentário no Rio, a platéia colocou esta questão aos debatedores, e Edgar Navarro, o diretor baiano de O Super-Outro e do recente Eu me Lembro respondeu de uma maneira que me pareceu brilhante, inclusive porque concorda com meu próprio ponto de vista a respeito.

Vou parafrasear de memória; os termos talvez não sejam estes, mas creio que a substância está correta.

“A gente não deve temer o Melodrama nem evitá-lo,” disse Edgar. “Em vez de eliminá-lo, o jeito é assimilá-lo, absorvê-lo, mas mantendo-o sob controle pelo uso de coisas que são o contrário dele. 

Primeira coisa: visão crítica. Usar o melodrama, mas em vez de nos sujeitarmos aos seus clichês e seus processos, mostrarmos que não somos escravos nem devedores dele. 

Segunda coisa: humor impiedoso. O pior melodrama é o que se leva excessivamente a sério, e quando alternamos o Melodrama com humor mantemos alguns aspectos bons que ele tem mas eliminamos seus excessos. 

Terceira coisa: distanciamento brechtiano. Usar os clichês como se os estivéssemos mostrando através de uma vidraça, de uma moldura, de uma visão indireta que está claramente ali, perceptível ao espectador. Aquela cena de Danuza Leão dançando nos corredores do palácio, em Terra em Transe, é melodrama puro, mas é um melodrama brechtiano pela forma como Glauber a filma. 

E quarta coisa: narrativa fragmentada. O Melodrama depende muito do ritmo hipnótico das cenazinhas-com-começo-meio-e-fim, que anestesiam a atenção do público. Quando a gente fragmenta a narrativa, a cada corte inesperado o público tem um sobressalto e acorda”.

Acho uma receita brilhante e vejo nela alguns dos ingredientes de autores visceralmente cerebrais como Borges, Georges Perec, Osman Lins, Raymond Queneau na literatura; e de diretores de cinema pouco chegados ao água-com-açúcar, como David Lynch, Almodóvar, Buñuel.

Todos muito diferentes uns dos outros. Todos usando narrativas ou episódios melodramáticos como isca, mas submetendo-os a uma visão crítica ou construtivista em que o Melodrama deixa de ser tirano, e passa a ser um humilde colaborador.

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Escrever

 

 Os homens horríveis e suas obras incríveis

 Erico Assis no Blog da Cia



 

 

Comecei a seguir Warren Ellis aí por volta de 1996. Na internet-mato daqueles tempos, Ellis foi um dos primeiros caras dos quadrinhos que montou site pessoal e cultivou seguidores. Escrevia e ainda escreve de uma cidadezinha costeira da Inglaterra, Southend-on-Sea, se dedicava à curadoria de links bizarros e cultuava o tabagismo. Seu site era o Smoke Damage.

De escritor de segundo escalão esforçado, Ellis chegou a Transmetropolitan, Authority, Planetary, brigou com editora grande por causa de censura, se arriscou como romancista, virou colunista da Wired, promoveu quadrinho digital como o futuro, seus gibis viraram filmes, ele começou a escrever roteiros. Vieram seus fóruns, suas newsletters, seus blogs, Twitter, Instagram. Ellis dominava cada plataforma, pois, quando ainda não existiam, ele já fazia o que elas nasceram para fazer.

Fui devoto da marca Warren Ellis. Do cara ligado em tecnologia, política, música de vanguarda, cinema alternativo, literatura emergente, quadrinho obscuro. Que leu tudo, viu tudo, ouviu tudo e desprezava 99% de tudo. Que, quando ia falar do 1%, era inspirador no talento de encaixar uma palavrinha na outra. Seus posts e colunas sobre linguagem de HQ e sobre mercado circularam. Viraram livros, viraram palestras, vivem nas aspas. Há um documentário sobre Ellis.

A marca Ellis também era do misantropo que, antes de ir às raras convenções, avisava que não apertaria sua mão porque não queria ficar doente. (À frente de seu tempo, pelos olhos de 2020.) Acho que tive um único contato direto com o homem, por e-mail. Pedi uma entrevista para um site de quadrinhos e ele respondeu que não, pois “não posso perder tempo pregando pra quem já é convertido, espero que entenda”. Fecha com a marca.

Em junho último, várias mulheres acusaram Ellis de abuso. As histórias que elas contam são de comportamento serial: ele amigava-se com uma artista jovem que quisesse entrar no mercado de HQ ou audiovisual, oferecia-se para ajudar e, papo vem, papo vai, pedia favores sexuais. Assim que ela dizia não, perdia os favores dele e virava vítima de gaslighting: Ellis queimava a pessoa no mercado. Não foi só uma. Mais de sessenta destas mulheres assinam um website, SoManyOfUs.com, com histórias parecidas de abuso emocional e manipulação por parte de Ellis, num período de vinte anos.

Dias depois das acusações, Ellis publicou uma nota de esclarecimento e encerrou sua newsletter semanal. Tinha 23 mil assinantes. No blog e redes sociais, as últimas postagens são de junho. É um silêncio que eu não ouvia desde 1996.

 

***


Pois o homem branco cis do século vinte com dois vírgula três filhos que escreve este texto ficou indignado. Traído. E veio reclamar que não tem e provavelmente não terá mais o que ler de outro homem branco. Reclamar para ele, no caso.

Vi gente dizendo que vai se livrar de sua coleção de gibis do Ellis, ou que não comprará mais nada com o nome dele. Quanto à segunda parte, é fácil: provavelmente vai sair pouquíssima coisa com o nome de Ellis daqui em diante.

Quanto à primeira parte, eu costumava ter uma resposta pronta: separem criador e criatura. Filhos não carregam pecados dos pais. Conseguia achar Transmetropolitan legal na estante e afastar a ideia de que quem escreveu aquilo não é uma pessoa legal. Também pensava tranquilamente que as vítimas dele não sofreriam mais ou menos porque leio The Batman’s Grave.

Eu também considerava o “apesar de”. Que poderia continuar resenhando, citando, comentando Planetary, incrível que é, apesar do Warren Ellis.

Mas não sei mais nada.

 

***


Em 2016, outro escritor de HQs, Gerard Jones, foi preso por posse de pornografia infantil. Jones já estava afastado do mercado há tempos, mas uma das editoras em que ele escrevia, a DC Comics, retirou os gibis antigos do escritor de plataformas digitais.

Há questões de royalties no meio: um percentual das vendas desse material, mesmo que irrisório, vai para o autor, e não se queria criar oportunidade de dar dinheiro a criminoso. Jones está na cadeia e deve ficar até 2024.

Porém, como vários apontaram, Jones não é o único que assina estes gibis. Há desenhistas, arte-finalistas, coloristas, editores que também ficam privados não só de royalties, mas da circulação do trabalho. Warren Ellis, do mesmo modo, não produziu nenhuma de suas HQs sozinho.

Não é só nos quadrinhos. Sem entrar no mérito de condenações ou acusações nem do que você pensa a respeito das condenações e acusações a cada um, Woody Allen, Louis C.K., John Kricfalusi e Bryan Singer não fizeram nenhum filme, seriado nem desenho animado sozinhos.

 

***


Porém, Woody Allen é o motivo para assistir (ou para não assistir) praticamente todos os filmes do Woody Allen. Louis C.K. era o Louie. E Warren Ellis era a marca pela qual se comprava a maioria de seus gibis, independente de desenhistas, coloristas, editores etc. etc. etc.

Dá para dissociar o culto às obras incríveis do culto aos homens horríveis? Difícil. Expor, falar, promover obras incríveis de homens horríveis ainda é cultuar homens horríveis. Mais do que tudo, é dizer para as gerações à frente que arte se justifica mesmo quando (apesar de) o artista deixa vítimas pelo caminho.

O homem branco cis do século vinte com dois vírgula três filhos que escreve está indignado. Com o Ellis, com Louis C.K., com Woody Allen. Na minha ilusão, eles tinham o compromisso de continuar traficando entretenimento de qualidade. Queria que eles fossem melhores do que eu não só criativamente, mas moralmente. Queria recomendar aos amigos, queria citar, queria revisitar. Ficou difícil. Não dá para falar de Louie apesar do Louis, nem de Batman’s Grave apesar do Ellis.

De um lado, ainda quero achar que que as merdas do autor não mancham as obras do autor. Por outro, chamar de incrível a obra que veio da pessoa horrível também é massagear esse incrível na pessoa horrível.

 

***


Isto não é uma conclusão, e sim uma constatação sobre o terreno lamacento dos homens horríveis. Uma indignação, mais que tudo.

Por enquanto, tenho uma meia-solução. Um amigo que gostava muito de ouvir Oasis detestava as figuras dos irmãos Gallagher. Achava os dois babacas. A solução a que ele chegou foi só ouvir Oasis via pirataria, de modo que nenhum centavo dele chegasse aos Gallagher. E, para ele, acabava nos ouvidos – não precisava ficar dizendo por aí que era fã de Oasis.

Por enquanto, não vou ficar dizendo por aí que ainda tiro Planetary da estante. Indignado, ainda indeciso.

 

[Muitos agradecimentos a dois leitores beta que discutiram estas ideias comigo e fizeram eu rever boa parte do texto: Rodolfo S Filho e Dandara Palankof.]

 

 

 

Comentário meu:

(A figurinha é de uma personagem do Ferdinando, de Al Capp - que passou a ser visto como um abusador depois que muitas histórias sujas vieram à tona)

 

 

 

domingo, 9 de outubro de 2022

Escrever

 Outro infográfico que reúne vários diagramas e esquemas para criação e desenvolvimento de histórias/storytelling (Bem próximo ao de Robert Carlson)




sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Ler

Meu gosto não se discute

 Braulio Tavares, VIA 

 


 

 

 “Meu gosto não se discute” é a fórmula cômoda que encontrei para encerrar essas eternas discussões sobre “gostei” e “não gostei”, “você tem (ou não tem) o direito de gostar de algo”, “seu gosto não pode servir de mandamento para os outros”. 

 

Nenhuma afirmação estética é universal. A estética tem uma forma ramificada que se espalha por toda a variedade de contextos humanos, de experiências humanas, as diferentes sensibilidades de tempos, de espaços. A estética é condicionada pela História, pela Geografia, por tudo que influi na mente individual e coletiva.

 

A experiência humana é rica, variada, divergente.

 

Eu tenho uma fórmula pessoal para avaliar o “Gostei Ou Não Gostei” de todo mundo, inclusive o meu. É uma fórmula simples, que tenta conciliar gostos coletivos e gostos individuais.

 

Digo assim porque todos nós, mesmos os mais individualistas, os mais independentes, os mais personalistas, acabamos obedecendo aos gostos coletivos da nossa época, da nossa classe social, da geração de que fazemos parte, de algum grupo com aspirações a ser diferente e contestador. 

 

Como já disse alguém: “tem certas coisas que nós gostamos para que as outras pessoas gostem de nós.” 

 

A fórmula de gosto pessoal que criei é simples: 

 

 Gosto = parâmetros + prioridades + preferências.

 

Uma grande parte das pessoas defende as próprias preferências (“Eu não assisto filme de terror por nada nesse mundo”, “Meu negócio é comédia e musical”, “Filme pra mim tem que ter crítica social, senão é alienado”, etc.) mas não costuma refletir sobre seus parâmetros e suas prioridades.

 

O que são parâmetros? São os pares de conceitos que nos fazem acolher certas obras e descartar outras. Têm a ver com essa coisa indefinível chamada “qualidade artística”, mas não só com ela. São os nossos conceitos (muitas vezes pouco claros, mal verbalizados) sobre o que é bom e o que é ruim. O certo e o errado. O bem feito e o mal feito. O ético e o antiético. O importante e o irrelevante. O precioso e o banal. O agradável e o incômodo.

 

Vou pegar essa última parelha. Eu vejo as comédias mudas de Buster Keaton ou Chaplin, em primeiro lugar, porque são agradáveis (me fazem rir), e só em segundo lugar pela sua importância na História do Cinema. Vejo as piadas bobas de Chaves e Chapolin pela mesma razão: me fazem rir, me agradam. Mas se eu aplico o critério “importante / irrelevante”, reconheço que Keaton e Chaplin saem ganhando, e que os comediantes mexicanos, que acho simpáticos, não criaram muito, em geral estão apenas desfiando o frango alheio pra fazer estrogonofe.

 

(O que é uma profissão honesta como qualquer outra, e que exerço com satisfação, quando preciso.)

 

Um espectador comum de cinema não precisa pensar nessas parelhas de conceitos, mas um jornalista precisa, sim, porque ele se vê forçado a produzir julgamentos de vez em quando, e precisa justificar seus vereditos.

 

O filme “X” ou “Y” pode ser chato, para o meu gosto, mas pelo parâmetro de “precioso x banal” talvez ele ganhe pontos. Digamos que foi um filme feito em condições precaríssimas, sob censura, registra fatos ou aspectos importantes lá do seu país (Ucrânia, Guatemala, Laos, não importa onde) – e por conta disso eu posso proclamar sua importância e defender sua preservação, mesmo não tendo gostado de vê-lo. Que importância tem o meu gosto? O filme não foi feito para me agradar. Foi feito para ser visto pela humanidade, e há de agradar a alguém. É chato mas é precioso, sim. Para o Cinema.

 

Do mesmo modo, o espectador que vai ao cinema no domingo à noite, para se divertir, tem todo o direito de não gostar de Fellini Oito e Meio ou de They Live! – mas não tem o direito de erigir o prazer dominical dele em critério absoluto e dizer que os filmes são “umas porcarias” e as pessoas que gostam deles são “pseudo intelectuais”.

 

Para ter em mente esses parâmetros, é preciso deixar de ser egoísta e não ver o cinema apenas como um passatempo feito para dar prazer a mim, o reizinho do mercado, de ingresso-comprado em punho. Quanto mais a gente entende os bastidores do cinema, o que é produção, o que é direção, o que é o comércio, a publicidade, as ramificações financeiras e ideológicas dessa indústria bilionária, a gente vai expandindo esse leque de parâmetros.

 

O mero consumidor, é claro, nem liga para isso.

 

Vem então o critério seguinte – prioridades. Em alguns momentos da vida alguns tipos de filmes são mais importantes do que outros. Nas minhas décadas formadoras (1960-1970), filmes de ficção científica, mesmo dos EUA, eram muito raros. Na minha coluna de jornal, eu só faltava implorar: “Pessoal, por favor, vamos dar uma força aos filmes de FC! Todos ao cinema!...”

 

Depois da geração Lucas (Star Wars), Spielberg (E.T., Contatos Imediatos) e outros, esses filmes transformaram a indústria. Nos anos 2000, os filmes de Super-Heróis se transformaram nos grandes blockbusters atuais. Já estão fazendo mais mal do que bem ao cinema. É um cinema de clichês em todo volume, tecnicamente e financeiramente hipertrofiado. Filmes à base de esteróides anabolizantes, concentrados energéticos, e que estão fazendo mais mal do que bem à ficção científica.

 

Ver e comentar filmes de FC deixaram de ser prioridade para mim. Talvez na próxima década o sejam novamente.

 

As prioridades mudam. Eu já fui um defensor do cinema brasileiro na linha do “compre o ingresso, e se não gostar, saia, mas compre pra ajudar”. Já combati as chanchadas da Atlântida, e depois passei a gostar delas. Já detestei o “western spaghetti” italiano, e hoje gosto. Por que? Porque entendi melhor certas coisas, alterei meus parâmetros. E algumas coisas que eram prioritárias deixaram de sê-lo.

 

Finalmente, vêm as preferências, e é nesse território que a maioria das pessoas navega: é o território do “gosto disso, não gosto daquilo”. Curiosamente, as nossas preferências são os nossos critérios mais óbvios, mais evidentes – e mais obscuros. Gosto porque gosto, dizem as pessoas, e a auto-análise se detém aí. Quando não encalha em tautologias do tipo “gosto porque é bom”.

 

Eu admiro o realismo literário e cinematográfico, mas tenho uma preferência pelas histórias que a todo instante estão botando o pé no impossível, no bizarro, no estranho, no fantástico. Por que? Não sei. Vem desde a infância. Mesmo no auge da minha admiração pelo Neo-Realismo italiano, quando vi muita coisa de Vittorio de Sicca, Rossellini, os primeiros filmes de Fellini, Antonioni, Pasolini, etc., me dava uma certa impaciência quando tudo se resumia àquela “vidinha besta”, como dizia Carlos Drummond. Os melhores filmes dessa turma, para mim, são os mais fantasiosos. Por que? Não sei. É a qualidade da imaginação, do aparecimento de algo improvável, imprevisto, impossível.

 

Quem escreve na imprensa tem a mania de colocar suas preferências como parâmetro geral. “Eu não gosto de musicais. Esse filme é um musical. Portanto, não deveria ter sido feito, nem exibido, nem assistido.” Críticos de cinema fazem isso o tempo todo.

 

Tudo isso vale não apenas para o cinema, é claro. Vale para literatura, para música, para qualquer tipo de arte, porque na arte existe justamente esse entrançamento entre critério pessoal e critérios coletivos. Nunca poderíamos ler tudo, assistir tudo, então somos forçados a escolher, e escolhemos o que achamos agradável, ou importante, ou enriquecedor...

 

Ou então escolhemos na base da boiada, do impulso coletivo, vamos ao cinema porque é com nossa turma, lemos um livro para conversar nas festas com os amigos.

 

O que também não está errado, pois é assim que nos alimentamos de outras opiniões, outros conceitos, vemos como é que pessoas diferentes de nós reagem diante disso ou daquilo. Nunca existe um “gosto pessoal” 100% individualista. Somos sempre um reflexo do nosso mundinho, que por maior que seja é sempre pequeno, porque é do tamanho do que conhecemos.

 

 

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Esculpir

 Esculpir um romance

 


 De Juan Pablo Villalobos VIA

 

A cena é a seguinte: o romancista está sentado em seu estúdio, há dezessete livros espalhados na mesa, seis cadernos, oito canetas, um lápis, um marca-texto e a caneta-fetiche sem a qual não consegue escrever nada decente. À esquerda descansa uma pasta que contém trezentas ou trezentas e cinquenta folhas: a impressão de trechos das duas versões anteriores do romance, descartadas. Três dos seis cadernos são cadernos-fetiche e estão cheios. O conteúdo dos cadernos é mais ou menos igual ao da pasta. Mas agora nada disso importa: o romancista tem na frente duzentas e duas páginas impressas, as duas primeiras partes da terceira versão do romance. O romance terá três partes, ou provavelmente, quem sabe, quatro. Duzentas e duas páginas que são o trabalho de quase dois meses.
 
O romancista pega as quatro canetas coloridas para corrigir: vermelha, azul, cinza e verde. Confirma que o computador está desligado. Verifica os níveis de cafeína no sangue. Desativa a internet do celular e baixa o volume do aparelho. Respira fundo. Fixa os olhos na primeira folha. E então acontece. Não é necessário reler as duzentas e duas páginas, não é necessário reler oitenta ou vinte. Acontece no primeiro parágrafo, na primeira frase, é uma decepção fulminante: o romance não funciona.
 
A aflição é tão grande quanto duas decepções amorosas juntas, como a traição do melhor amigo ou quase como aquela vez que o time de futebol do romancista, que há sessenta e dois anos não é campeão, perdeu a final nos pênaltis.
 
O que aconteceu entre a tarde de ontem, quando o romancista imprimiu as duzentas e duas páginas em estado de euforia, e a manhã de hoje? O que mudou na percepção do romancista? O romance, com certeza, não mudou. É muito complicado tentar explicar o que aconteceu. Não é possível identificar o problema, não é possível dizer: é a voz narrativa, ou são os personagens, os diálogos, o enredo… A triste epifania desse breve instante de iluminação é que esse não é o romance que ele quer escrever.
O romancista solta a caneta vermelha e sai ao jardim a chutar uma bola. Chutar uma bola ajuda a pensar, a acalmar, a colocar as coisas em perspectiva. Cinco, dez minutos chutando a bola, lutando contra a maldita tristeza, contra o luto do romance que acaba de morrer.
 
Volta à mesa. Começa de novo, tentando ignorar o que está sentindo, faz um trabalho mecânico de correção, segue em frente, segue em frente, talvez seja possível voltar a acreditar, recuperar a fé no romance.
 
Merda.
 
Não. Não é possível.
 
O romancista pega as duzentas e duas folhas das duas primeiras partes da terceira versão do romance e as coloca na pasta que descansa na parte esquerda da mesa.
 
Espera aí, pensa o romancista, qual era o livro que eu queria escrever? Olha a estante que está ao lado da mesa com seus livros favoritos. É um momento crítico: o deprimido romancista está tentando recuperar a fé na literatura.  Vai pegando livros e lendo trechinhos, uma página, um parágrafo, duas linhas. César Aira, Antonio Di Benedetto, Copi, Juan Emar, Felisberto Hernández, Mario Levrero, Sergio Pitol, Daniel Sada, Francisco Tario, Virgilio Piñera, Osvaldo Lamborghini… Passa uma hora lendo. O romancista recupera, ao menos, o sossego.
 
A terapia continua com a leitura de uma frase que o romancista encontrou em um belíssimo livrinho de Héctor Libertella: “Reescrever seria a arte de dar naturalidade ao que está muito trabalhado. Algo que tomou muito tempo do escritor, mas que não declara sua idade.”
 
Logo, no mesmo livro, lê o depoimento de Elie Wiesel:
 
“Eu gosto de cortar. Reduzi novecentas páginas a cento e sessenta. Mas veja bem, inclusive quando alguém corta, não corta. Escrever não é como pintar, onde você agrega. O que o leitor vê não é o que você coloca na tela. Escrever é mais parecido com a escultura, onde você tira, elimina, para tornar a obra visível. Mas essas páginas que você elimina permanecem de alguma maneira. Há diferenças entre um livro que teve duzentas páginas desde o começo e outro de duzentas que é resultado de um original de oitocentas. Essas seiscentas páginas estão aí. Só que não as vemos.”
 
Sim, é isso, é isso, se repete o romancista, seguro de que essa pasta lotada de páginas descartadas permanecerá, de alguma maneira, na versão final do romance. O romancista sabe que o uso literal que está fazendo das palavras de Libertella e Wiesel está muito perto da autoajuda ou da lavagem cerebral, mas por enquanto ele precisa acreditar em alguma coisa. Pega um novo caderno-fetiche e a caneta-fetiche e se senta diante da página em branco.
 
O romancista sabe que passarão dias, talvez semanas, antes de que consiga encontrar o caminho de volta ao romance.

 

sexta-feira, 8 de julho de 2022

Escrever


 

Nada é verdade, nada é mentira

Ao conceder entrevistas, uma das perguntas que o escritor mais ouve é a que se refere ao possível caráter autobiográfico do seu livro. Aliás, pergunta fundamental, já que muito mais do que simples curiosidade sobre a vida do autor, viveu ou não viveu tudo aquilo, foi ou não abduzido, matou ou não matou, a pergunta revela um aspecto essencial da experiência literária, tanto da escrita quanto da leitura, que podemos resumir da seguinte forma: onde começa e onde termina um livro. Em outras palavras, até que ponto informações como biografia, personalidade e aparência do autor influenciam a forma como ele é lido, e até que ponto o processo de escrita, e tudo o que o envolve, se insere na própria obra. Será que na ficção é tudo mentira, ou será sempre tudo verdade?

Comecemos com Thomas Bernhard. Bernhard, em seu livro Holzfällen (Árvores abatidas, na tradução em português), publicado em 1982, conta a história de um escritor austríaco que acaba de chegar de Londres e é convidado para jantar no apartamento de um casal de amigos, mecenas que no passado o ajudaram muito em seu início de carreira. Nesse jantar ele reencontra muita gente conhecida, escritores, músicos, atores, ou seja, toda uma fauna artística vienense. Acomodado numa poltrona, o narrador/autor observa tais personagens e os retrata da forma mais cruel possível, expostos em toda sua miséria, torpeza e arrogância. Sobre uma escritora, por exemplo, o narrador faz o seguinte comentário: “Ela te odeia, digo a mim mesmo, e você a despreza, essa é a verdade. Mas ela não te odeia apenas porque você a abandonou há mais de vinte anos, sim, vinte e cinco anos agora, e porque você é um escritor, mas também porque você é dez anos mais novo do que ela, mulheres desse tipo nunca perdoam algo assim, o fato de elas serem dez anos mais velhas, pensei”. Até aí tudo ótimo, a questão é que esse narrador tem exatamente a mesma biografia que Bernhard (com exceção da cidade onde mora), e as pessoas ali retratadas correspondem em detalhes a figuras conhecidas do meio artístico-cultural austríaco da época. Some-se a isso o fato de uma dessas pessoas, mais especificamente, o anfitrião, ao reconhecer-se no relato de Bernhard, decide entrar na justiça para impedir a publicação do livro na Áustria, no que de fato foi atendido. O livro, proibido no país, teve seu lançamento restrito à Alemanha naquele ano.

Agora deixemos Bernhard por alguns instantes e passemos para o próximo episódio. Manuel Puig, escritor argentino, acaba de se mudar para o Rio de Janeiro, O ano é 1981. Puig resolve fazer uma reforma em seu apartamento, para isso contrata um pedreiro. Assunto vai, assunto vem, Puig, fascinado pela sua história e forma de falar, decide gravar as conversas. Essas gravações (que podem ser encontradas, acompanhadas da transcrição no arquivo Manuel Puig, na Argentina) seriam posteriormente, com poucas modificações diretas, transformadas em livro, o romance publicado em 1982, Sangue de amor correspondido. Parte desse episódio é relatada pelo próprio Puig numa entrevista para a Paris Review, entre outras coisas, ele explica o uso das gravações: “Há muito poucas palavras que não são dele, simplesmente editei as nossas conversas”, e conta que o pedreiro, depois da publicação do livro, alegando que por causa desse relato estava recebendo ameaças de morte, passa a chantageá-lo na tentativa de conseguir mais dinheiro. Segundo o autor, o combinado havia sido uma quantia fixa, valor já pago e que permitira ao pedreiro a compra de uma casa própria. Puig não esconde sua decepção com esse episódio: “Eu esperava gratidão, ou pelo menos inspirar um sentimento de afeto. Mas não foi o caso”.

Por último, vale a pena citar o caso de Roberto Bolaño. Ele teve uma vida digna de um romance de aventuras, resumindo em algumas linhas: nasceu no Chile, quando tinha quinze anos sua família mudou-se para o México, onde ele viveu o restante da adolescência e tornou-se amigo de muitos poetas e escritores jovens do país. Aos vinte anos resolve voltar para o Chile, onde é surpreendido pelo golpe militar. Acaba entre os detidos no Estádio Nacional, mas consegue sair de lá graças a um dos guardas que havia sido seu amigo de infância e o reconhece. Volta ao México, junto com outros amigos instaura o movimento de vanguarda denominado Infrarrealismo. Depois viaja por diversos países da América Latina, da Europa e da África. Estabelece-se na Espanha, onde ficaria até o fim da vida. Em Blanes, cidade onde morou, dedica-se aos mais diversos trabalhos, segurança num camping, garçom, vendedor ambulante, etc., até que, ao tornar-se um escritor conhecido, passa a viver da literatura. Bolaño trabalha o tempo todo em seus livros com esses dados autobiográficos, criando inclusive o alter ego Arturo Belano. Depois da sua morte, porém, passa-se a questionar até que ponto a sua biografia corresponde à realidade. Ou seja, talvez as coisas não tenham acontecido exatamente assim, como ele diz nas entrevistas, talvez ali, diante do entrevistador estivesse não o homem, mas apenas mais um de seus personagens. Ou indo mais além, talvez ao estender à própria pessoa o processo de ficcionalização, homem e o personagem tivessem se tornado uma coisa só.

E após esta pequena incursão pelos bastidores da literatura podemos voltar à pergunta inicial: até que ponto a biografia do autor e o que sabemos sobre o processo de escrita do livro modificam o próprio livro?, agora munidos de novas perguntas: as repercussões do lançamento (como é o caso de Bernhard), que influência podem ter? O fato de sabermos que a história de um livro é autobiográfica modifica a nossa percepção sobre ela?, e se o faz, até que ponto esse “conhecimento” nos obriga a dar-lhe nova interpretação, ou até mesmo reescrevê-lo? Ou, para usar um dos nossos exemplos, até que ponto a entrevista que Manuel Puig dá a Paris Review tornou-se parte do próprio texto? E o que significaria permitir que ela apareça na orelha ou na apresentação? Será que o leitor que nada sabe das gravações e conseqüentes acontecimentos lê o mesmo livro que nós? E quanto a Bernhard, a consciência de que se trata de personagens reais, e do escândalo causado em decorrência da narrativa, não guia a nossa leitura e, talvez, julgamento? É possível separar Bernhard-pessoa do Bernhard-narrador? E por último, modificaríamos a nossa leitura de Os detetives selvagens se descobríssemos que Bolaño não estava no Chile no momento do golpe militar? Afinal, que importância tem isso?

A resposta é, tem toda a importância, claro!, e ao mesmo tempo, não tem importância nenhuma. Em outras palavras, saber ou não saber esses aspectos modifica sim o texto. E se formos mais além, tudo modifica o texto, a história pessoal do escritor, a época em que ele vive, os idiomas que ele fala, a experiência cultural que ele possui (isso sem falar do leitor). Mas a questão não é só essa, se modifica, dando ao livro outras interpretações, por outro lado não o esgota apenas nisso. Uma obra literária terá sempre inúmeras camadas, nuances, o que significa, saber ou não saber se algo é mentira ou verdade nos dá apenas mais uma entre muitas possíveis leituras. E chegamos assim a seguinte equação: na literatura, mesmo que nada seja verdade, não importa, pois sabemos que, apesar de tudo, nada é mentira.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Não escrever

25 Trepadas Literárias

 


 (Organizado por Joca Reiners Terron... AQUI)

 

REPADA EPISTOLAR VAPOROSA

1) James Joyce – “Cartas a Nora Barnacle” (1909)

“Minha doce Norazinha putazinha. Fiz o que me pediste, pequena sacana, e me esporrei duas vezes enquanto lia tua carta. Estou feliz de ver que gostas de ser fodida no cu. Sim, lembro-me agora daquela noite em que tanto tempo te fodi por trás. Foi a foda mais suja que jamais te dei, meu bem. Mantive a pica metida em ti horas a fio, entrando e saindo de teu traseiro virado para cima. Sentia tuas nádegas gordas e suadas debaixo de meu ventre e via teu rosto em fogacho e teus olhos aloucados. Cada vez que eu metia, tua língua despudorada se punha de fora de teus lábios e se uma foda era maior e mais violenta que as outras, saíam peidos gordos e úmidos espocando por tuas ancas. Naquela noite, bem, tua bunda estava cheia de peidos, e com a foda eu os fiz sair, grandes e gordos, prolongados e cheios de vento, estalinhos rápidos e alegres e uma porção de peidinhos pequeninos e travessos que terminavam num jorro demorado por teu buraco. É maravilhoso foder uma mulher peidorreira quando cada metida faz sair um. Penso que eu reconheceria um peido de Nora em qualquer lugar. Penso que poderia distinguir o dela numa sala cheia de mulheres peidando. É um barulhinho bem de menina, não como o peido molhado e cheio de vento que imagino ser o das esposas gordas. É inesperado e seco e indecente como o que uma menina atrevida soltaria de pândega num dormitório de colégios à noite. Espero que Nora nunca pare de soltar peidos na minha cara para que eu fique conhecendo também o cheiro deles.(…)”

“Cartas a Nora Barnacle”, Massao Ohno, 1998, SP, tradução de Mary Pedrosa.

TREPADA EPISTOLAR LÍQUIDA

2) James Joyce – “Cartas a Nora Barnacle” (1909)

“Dizes que quando eu voltar vais chupar-me até o fim e queres que eu lamba tua cona, malandrinha depravada. Espero que alguma vez me surpreendas dormindo vestido, escorregues por cima de mim com um brilho de puta em teus olhos sonolentos, abras de leve, um por um, os botões de minha braguilha e tires com delicadeza o peru gordo de teu amante, enfiando-o na boca e chupando até que ele engorde e fique duro e se entorne na tua boca. Alguma vez também eu te surpreenderei dormindo, levantarei tuas saias e abrirei com cuidado tuas calças quentes, e depois me deitarei quieto ao teu lado e começarei a lamber preguiçosamente em redor de teus pelos. Começarás a remexer-te desajeitadamente e então lamberei os lábios da cona de meu amor. Começarás a gemer e suspirar e balbuciar e peidar de lascívia no teu sono. Lamberei  então cada vez mais depressa como um cão voraz, até que sua cona seja uma papa viscosa e teu corpo se contorça loucamente.”

“Cartas a Nora Barnacle”, Massao Ohno, 1998, SP, tradução de Mary Pedrosa.

TREPADA SURREALISTA

3) André Breton e Paul Eluard – “A Imaculada Concepção” (1930)

“(…) A língua desenha os lábios, junta os olhos, ergue os seios, cava as axilas, abre a janela; a boca atrai a carne com todas as suas forças, naufraga num beijo errante, substitui a boca por ela arrebatada, é a mistura do dia e da noite. os braços e as coxas do homem estão ligados aos braços e às coxas da mulher, o vento se mescla à fumaça, as mãos tomam as impressões dos desejos (…)”

“História da Literatura Erótica”, Alexandrian, Rocco, 1993, RJ, tradução de Ana Maria Scherer e Laurênio de Mello.

TREPADA LÁCTEA

4) Georges Bataille – “História do Olho” (1928)

“Havia no corredor um prato de leite para o gato.

– Os pratos foram feitos para a gente sentar – disse Simone. – Quer apostar que eu sento no prato?

– Duvido que você se atreva – respondi, ofegante.

Fazia calor. Simone colocou o prato num banquinho, instalou-se à minha frente e, sem desviar dos meus olhos, sentou-se e mergulhou a bunda no leite. Por um momento fiquei imóvel, tremendo, o sangue subindo à cabeça, enquanto ela olhava meu pau se erguer na calça. Deitei-me a seus pés. Ela não se mexia; pela primeira vez, vi sua ‘carne rosa e negra’ banhada em leite branco. Permanecemos imóveis por muito tempo, ambos ruborizados.

De repente, ela se levantou: o leite escorreu por suas coxas até as meias. Enxugou-se com um lenço, por cima da minha cabeça, com um pé no banquinho. Eu esfregava o pau, me remexendo no assoalho. Gozamos no mesmo instante, sem nos tocarmos. Porém, quando sua mãe retornou, sentando-me numa poltrona baixa, aproveitei um momento em que a menina se aninhou nos braços maternos: sem ser visto, levantei o avental e enfiei a mão por entre suas coxas quentes.”

“História do Olho”, Georges Bataille, CosacNaify, 2003, SP, tradução de Eliane Robert Moraes.

TREPADA PIONEIRA

5) Giovanni Bocaccio – “Decamerão” (1353)

“Depois de recusar-se várias várias vezes, Alexandre lá se foi deitar, já despido. O abade acariciou-lhe o peito, e pôs-se a bulir em seu corpo, carinhosamente, de modo não diverso daquele que as moças apaixonadas fazem com os seus amados. Alexandre ficou profundamente maravilhado com o fato. E duvidou de que fosse o abade, assaltado por amor impulsivo e desonesto, quem se arriscava a acariciar-lhe o corpo daquela forma. Ou por presunção, ou por algum ato cometido por Alexandre, o abade logo concebeu clara idéia dessa dúvida. E sorriu. Despiu rapidamente uma camisola que vestia, segurou a mão de Alexandre, colocou-a sobre o próprio peito, e disse:

– Alexandre, apague esse tolo pensamento; procure por aqui… assim… Veja o que eu escondo aqui.

Colocando a mão sobre o peito do abade, Alexandre achou dois seios, pequenos e redondos, duros e delicados, como feitos de marfim. De pronto, assim que os encontrou e os apalpou, notou que a pessoa que ali estava era uma mulher. Não aguardando novo convite, procurou logo abraçá-la, apertá-la ao peito. Nesse momento ela disse:

– Antes que você se aproxime mais intimamente de mim, ouça o que quero dizer-lhe. Como pode constatar, sou mulher, não homem. Sou donzela; saí virgem de minha casa. Minha intenção era procurar o papa, em Roma, para que ele me desse marido. Quer para sua ventura, quer para minha desdita, a verdade é que vi você outro dia; desde que o vi, fiquei inflamada de amor, de tal maneira, que creio que outra mulher nunca amou tanto um homem (…)”.

“Decamerão”, Giovanni Boccacio, Círculo do Livro, S/D, SP, tradução de Torrieri Guimarães.

TREPADA MANUAL

6) Henry Miller – “Trópico de Câncer” (1934)

“À noite, quando olho o cavanhaque de Boris estendido sobre o travesseiro, fico histérico. Ó, Tânia, onde estão agaora aquela sua boceta quente, aquelas ligas gordas e pesadas, aquelas coxas macias e arredondadas? Em meu membro há um osso de quinze centímetros de comprimento. Tânia, alisarei todas as pregas de sua vulva, cheia de semente. Mandá-la-ei de volta para seu Sylvester com a barriga doendo e o útero virado. Seu Sylvester! Sim, ele sabe acender um fogo, mas eu sei inflamar uma vagina. Enfiarei pregos quentes em você, Tânia. Deixarei seus ovários incandescentes. Seu Sylvester agora está um pouco ciumento? Ele senta alguma coisa, não sente? Sente os remanescentes de meu grande membro. Deixei as margens um pouco mais largas. Alisei as pregas. Depois de mim, você pode receber garanhões, touros, carneiros, cisnes e São Bernardos. Pode enfiar pelo reto sapos, morcegos, lagartos. Você pode defecar arpejos ou amarrar uma cítara sobre o umbigo. Eu estou fodendo, Tânia, para que você fique fornicada em público, eu fornicarei privativamente. Arrancarei alguns pelos de sua vulva e os grudarei no queixo de Boris. Morderei seu clitóris e cuspirei moedas de dois francos…”

“Trópico de Câncer”, Henry Miller, Ibrasa, 1994, SP, tradução de Aydano Arruda.

TREPADA DESPREVENIDA

7) Anais Nin – “Delta de Vênus” (1969)

“Uma das garotas tinha cerca de dez anos; a outra, doze. Eram bonitas, tinham grandes olhos negros e aveludados, cabelos compridos e sedosos, e pele dourada. Usavam vestidos brancos curtos e meias também brancas. Com agudos gritinhos as duas garotas entravam correndo no quarto do Barão e se atiravam em sua imensa cama.

Só que o Barão, como muitos homens, sempre despertava com o pênis em um estado particularmente sensível. Na verdade, ele se sentia muito vulnerável. Não tinha tempo de se levantar e acalmar sua condição urinando. Antes que pudesse fazê-lo, as crianças já tinham cruzado correndo o soalho lustroso e se atirado sobre ele e seu pênis proeminente, que de certa forma o grande acolchoado azul-claro conseguia ocultar.

As duas meninas não se importavam com o fato de suas saias ficarem totalmente levantadas e com o modo como suas esbeltas pernas de dançarinas se trançavam e pressionavam o pênis dele, intumescido sob a coberta. Rindo, rolavam sobre o Barão, sentavam-se em cima dele, montavam-no e o tratavam como se fosse um cavalo, instando para que ele balançasse a cama com um movimento de seu corpo.”

“Delta de Vênus”, Anais Nin, Círculo do Livro, 1977, SP, tradução de Haroldo Netto.

TREPADA SURPRESA

8) Boris Vian – “Escritos Pornográficos” (1980)

“(…) mas, ao mesmo tempo que um peso que me pareceu considerável me oprimia o peito, eu tinha a sensação de que meu sexo todinho estava mergulhado em uma caverna quente e estranhamento móvel, e que retirava daquela excitação para ele desconhecida um aumento de força e de volume absolutamente anormal. Recobrando pouco a pouco a consciência, dei-me conta de que meu nariz e minha boca eram aflorados por uma penugem elástica; de que um odor peculiar, um pouco estonteante, me entrava pelas narinas; então levantando as mãos, dei com dois globos lisos e sedosos que estremeceram quando os toquei e que se soergueram um pouco, como o que, ao perceber uma certa umidade sobre meu lábio superior, lambi aquela umidade e minha língua penetrou numa fenda carnuda e ardente que empreendeu naquele instante uma longa série de contrações. Sorvi o sumo suculento que passou a me escorrer para a boca e nesse instante dei-me conta de que havia alguém sobre o meu corpo, num sessenta-e-nove, roendo meu membro, enquanto eu, de outro lado, lhe devolvia a amabilidade.”

“Escritos Pornográficos”, Boris Vian, Brasiliense, 1985, tradução de Heloisa Jahn.

TREPADA NOSTÁLGICA

9) Pierre Louys – “Esse Obscuro Objeto do Desejo” (1898)

“Eu tinha quinze anos, meu amigo, nesse momento da minha vida. Atrás de mim, vinte anos de amor se desvaneciam como um sonho. Tive a ilusão absoluta de ir, pela primeira vez, colar meus lábios nos lábios de uma mulher e sentir um corpo jovem e ardente vergar e pesar no meu braço.

Subindo um pé numa pedra e com o outro nas grades recurvadas, entrei em casa dela como um apaixonado de teatro, Abracei-a.

De pé encostada em mim, ela entregava-se a retraía-se ao mesmo tempo.

Unidas pela boca nossas cabeças pendiam para o ombro, de narinas frementes e olhos fechados. Nunca entendi tão bem, na vertigem, no desvario, na inconsciência que me tomava, como é certo falar da “embriaguez do que me tomava, como é certo falar da “embriaguez do beijo”. Não sabia mais quem éramos, nem o que tinha havido, nem o que aconteceria conosco. O presente era tão intenso que o futuro e o passado nele desapareciam. Ela tomava os meus lábios nos seus, queimava em meus braços e eu sentia, através da saia, o seu ventre contra o meu numa carícia despudorada e impetuosa.”

“Esse Obscuro Objeto do Desejo”, Pierre Louys, Marco Zero, 1984, RJ, tradução de Estela dos Santos Abreu.

TREPADA ILUSTRADA

10) Hilda Hilst – “Contos D’Escárnio” (1990)

“Foi espantoso. Ao redor do buraco de Josete, tatuadas com infinito esmero e extrema competência estavam três damas com seus lindos vestidos de babados. Uma delas tinha na cabeça um fino chapéu de florzinhas e rendas.

não acredito no que estou vendo, Josete, você tatuou à volta do seu cu para quê?

homenagem a Pound, Crassinho

mas isso deve ter doído um bocado!

the courageous violent slashing themselves with knifes (que quer dizer: os violentos corajosos cortando-se com facas. Continuação do Canto XV).

coma meu cuzinho, coma meu bem, andiamo, andiamo (cacoetes de Pound)

Aí achei o cúmulo. ‘Jamais, meu amor, machucaria essas lindas damas”. Josete começou a chorar.

ó, Crasso, você é o primeiro homem a quem eu mostro esse mimo, essa delicadeza, essa terna homenagem ao meu poeta, andiamo, andiamo in the great scabrous arse-hole (no grande escabroso olho do cu)

Aí pensei: essa maldita louca vai começar a choramingar mais alto e o prédio inteiro vai ouvir. Enchi-me de coragem e estraçalhei-lhe o rabo com inglesas ou americanas (Who knows?) e babados e o chapéu, não naturalmente sem antes lhe tapar a boca, porque tinha certeza que ela ia zurrar como um asno.”

“Contos D’Escárnio”, Hilda Hilst, Sciliano, 1990, SP.

TREPADA PENITENTE

11) Marquês de Sade – “Justine” (1791)

“Dizendo isso, o monge segura com uma das mãos a cabeça da vítima, enfia-lhe a língua na boca e a comprime de tal forma que é impossível não sentir seu pau roçar a xoxota da moça. Mas, como que aterrorizado por esta infidelidade a seu culto predileto, o italiano imediatamente volta-se por trás dela e aplica enfim o beijo mais ardente… mais abrasador nestas nádegas iluminadas pelos vigorosos tapas que as mortificam. Depois entreabre-as, dardeia com a língua o furo mignon, saboreia a volúpia em todos os aspectos, farta-se de lubricidade tenebrosa, sempre masturbado por seu gitão que não o larga desde o começo deste ato escandaloso, chegando ao ponto de fazer o monge gozar; este, apercebendo-se que sem faltar com seus confrades ser-lhe-á impossível ir mais longe, pede a Justine que se levante e o siga… o resto da penitência se fará no interior…”

“Ciranda dos Libertinos”, Marquês de Sade, Max Limonad, 1988, SP, organização e tradução de L. A. Contador Borges.

TREPADA SINESTÉSICA

12) Raduan Nassar – “Um Copo de Cólera”(1978)

“(…) mas assim que ela deixou o quarto e foi por instantes até o banheiro, tirei rápido a calça e a camisa, e me atirando na cama fiquei aguardando por ela já teso e pronto, fruindo em silêncio o algodão do lençol que me cobria, e logo eu fechava os olhos pensando nas artimanhas que empregaria (das tantas que eu sabia), e com isso fui repassando sozinho na cabeça as coisas todas que fazíamos, de como ela vibrava com os trejeitos iniciais da minha boca e o brilho que eu forjava nos meus olhos, onde eu fazia aflorar o que existia em mim de mais torpe e sórdido, sabendo que ela arrebatada pelo meu avesso haveria sempre de gritar ‘é esse canalha que eu amo’, e repassei na cabeça esse esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos de meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si só uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração (…)”

“Um Copo de Cólera”, Raduan Nassar, Companhia das Letras, 1992, SP.

TREPADA DOMINADORA

13) Dalton Trevisan – “Ah. é?” (1994)

“Blusa branca de renda e saia azul, estende-se ao lado dele. Olha-a na penumbra e sorri. Afaga o longo cabelo dourado. Desabotoa a blusa. Tira o sutiã – sabe o que é um peitinho de quinze anos?

Ela um passarinho morto. Mas o coração aos pulos. O que é que ele quer? Cada vez mais perto.

– Nunca teve namorado?

– Credo, João.

Beijo molhado de língua. De mim o que fazendo? Ele abre o fecho da saia. Só de calcinha. Toda fria, pesada, mole. O peitinho, como bate. E começa a chorar.

– Quero ir embora.

– Seja bobinha. Já passa.

Ao tirar a calcinha. ele rasga.”

“Ah, é?”, Dalton Trevisan, Record, 1994, RJ.

TREPADA SUBMISSA

14) Sérgio Sant’Anna – “O Vôo da Madrugada” (2003)

“Noutro momento do conto obscuro, branco é o homem e negra a mulher. No quarto dela, diante de um espelho, ela se põe aos pés dele e chupa o seu pau. Não dizem nada, apenas se olham no espelho – o homem com o rosto e as mãos crispadas, estas apoiadas na cabeça da mulher – mas ambos sabem que pensam mais ou menos a mesma coisa. Que uma mulher chupando um homem de pé é um dos maiores gestos de submissão que existe, ainda mais sendo ele branco e ela negra, mas a grande voluptuosidade e desejo vêm justamente dessa submissão e dessa diferença.”

“O Vôo da Madrugada”, Sérgio Sant’Anna, Companhia das Letras, 2003, SP.

TREPADA NINFETÔMANA

15) Vladimir Nabokov – “Lolita” (1955)

“Era a mesma criança: os mesmos ombros frágeis, cor de mel, as mesmas costas flexíveis, nuas e sedosas, os mesmos cabelos castanho-avermelhados. O mesmo lenço de cabeça, pintalgado de preto, atado em torno do peito, ocultava de meus olhos de macaco velho, mas não da névoa de minha lembrança de rapaz, os seios juvenis que eu acariciara num dia imortal. E, como se eu fosse a aia de uma princesinha de conto de fadas (perdida, raptada, descoberta em andrajosos trajes ciganos através dos quais sua nudez sorria para o rei e seus cães de caça), reconheci, em seu flanco, a minúscula pinta marrom-escura. Com respeitoso pasmo e deleite (o rei a chorar de alegria, as trombetas a soar, a aia embriagada de felicidade), vi-lhe de novo o encantador e retraído abdômen, onde minha boca, a descer-lhe pelo corpo, pousara um momento; e aquelas ancas infantis, sobre as quais eu beijara a marca crenulada deixada pelos shorts, naquele louco dia imortal, atrás dos Roches Roses. Os vinte e cinco anos que eu vivera desde então diminuíram até chegar a um ponto palpitante – e desapareceram.”

“Lolita”, Vladimir Nabokov, Civilização Brasileira, 1959, RJ, tradução de Brenno Silveira.

TREPADA BÉLICA

16) Rubem Fonseca – “A Coleira do Cão” (1965)

“O rosto limpo, toda ela crua, pura – você não conseguia dar um beliscão nela, de tal maneira era esticada a sua pele. Pele? ela não tinha pele, ela só tinha carne, uma carne firme, em todas as partes do corpo, note bem: matava uma pulga espremendo-a com a unha do meu polegar de encontro a barriga dela, se quisesse, tão infernal que me dava vontade de lhe dar cabeçadas no corpo, já que não podia mordê-la. E eu dava cabeçadas no ventre rijo dela, curvado como um touro que quisesse voltar para o verde útero bovino de sua mãe, um útero que fosse Deus e o Nada. E ela segurava minha cabeça dirigindo seus arremessos – como os de um aríete que fosse trespassá-la rompendo as portas de sua carne – e ria até que nos embolávamos suados e eu sentia o gosto de suor dela na minha boca, nosso suor estalando entre nossas barrigas, o suor empapando nossas pestanas, vaidoso por suar tanto, orgulhoso pelo longo tempo que ficava dentro dela.”

“Contos Reunidos”, Rubem Fonseca, Companhia das Letras, 1995, SP.

TREPADA INTELECTUAL

17) Julio Cortázar – “O Jogo da Amarelinha” (1964)

“A Maga surgira certa tarde na rue de La Tombe-Issoire, trazia-me sempre uma flor, um cartão-postal de Klee ou de Miró e, quando não tinha dinheiro, escolhia uma folha de plátano no parque. Naquela época, eu costumava procurar arames e caixotes vazios nas ruas, de madrugada, e fabricava móveis, máquinas inúteis que a Maga me ajudava a pintar, móbiles que giravam sobre as estufas. Não estávamos apaixonados, fazíamos amor com um virtuosismo desligado e crítico, mas sempre caíamos, depois, em terríveis silêncios. A espuma dos copos de cerveja ia ficando como estopa, amornando e contraindo-se, enquanto nos olhávamos e sentíamos que chegara o momento. A Maga acabava por se levantar e dava voltas inúteis pelo quarto. Mais de uma vez, eu a vi admirar seu corpo no espelho, segurar os seios com as mãos, como nas estatuetas sírias, e passar os olhos pela sua pele numa lenta carícia. Nunca consegui resistir ao desejo de pedir que se aproximasse, sentindo-a curvar-se pouco a pouco sobre mim, desdobrar-se outra vez, depois de ter estado por um momento tão só e tão apaixonada diante da eternidade de seu corpo.”

“O Jogo da Amarelinha”, Julio Cortázar, Civilização Brasileira, 1999, tradução de Fernando de Castro Ferro.

TREPADA PSICODÉLICA

18) José Agrippino de Paula – “Panamérica” (1967)

“O corpo de Marilyn Monroe se ajustou ao meu e os cabelos louros se introduziram nos meus cabelos e prenderam a minha cabeça. A união continuou e eu preguei a minha boca à boca de Marilyn e ela introduziu a sua língua entre os meus dentes e eu introduzi a minha língua na sua boca úmida. Eu esmagava o meu rosto de encontro ao rosto de Marilyn, e ela me abraçou retendo o meu corpo com os seus braços que me envolviam e mantinham o meu peito colado aos seios de Marilyn. Depois eu senti o meu sexo rígido e pontiagudo penetrando na vagina úmida de Marilyn, e a sua barriga estreitamente unida à minha e a sua vagina retendo e apertando o meu membro, e depois as suas duas pernas me envolveram e o meu corpo se contraiu aderindo ao corpo de Marilyn e eu e ela gemíamos de dor e prazer.”

TREPADA ANIMAL

19) Robert A. Wallace – “O Sexo Entre os Animais” (1980)

“O namoro de rinocerontes é algo de muito violento e perigoso. A partir do instante em que a fêmea aceita o macho, porém, este se revela extremamente amoroso, galgando o lombo dela, pouco a pouco, de ejaculação em ejaculação, à medida que entra em sua carne cada vez mais profundamente, até a conclusão apoteótica, em que se joga todo sobre ela, com as quatro patas fora do chão.”

Tradução de Carlos Sussekind.

TREPADA DANÇANTE

20) Guillaume Apollinaire – “As Onze Mil Varas” (1907)

“A espanhola era uma soberba jovem convenientemente desconjuntada. Olhos de azeviche brilhavam em seu rosto pálido de um oval perfeito. Suas ancas eram arredondadas e as lantejoulas de sua roupa ofuscavam a visão.

O toureiro, esbelto e robusto, também retorcia uma garupa cuja virilidade devia sem dúvida ter algum proveito.

Essa interessante dupla lançou inicialmente para o salão, com a mão direita, enquanto a esquerda repousava sobre a anca arqueada, um par de beijos que fizeram furor. Depois dançaram lascivamente no estilo de seu país. Em seguida, a espanhola levantou a saia até o umbigo e prendeu-as de forma a ficar desnuda até o rego umbilical. Suas pernas alongadas estavam envoltas em meias de seda vermelha que subiam até três quartos das coxas. Atavam-se ali aos espartilhos através de ligazinhas douradas, as quais vinham se enlaçar às sedas que sustentavam uma mascarilha de veludo negro colocadas sobre as nádegas de modo a disfarçar o buraco do cu. A boceta estava oculta por um tosão negro azulado em caracóis.”

Tradução de Hamilton Trevisan.

TREPADA RAPIDINHA

21) D. H. Lawrence – “O Amante de Lady Chatterley” (1928)

“Ele desnudou também a frente de seu corpo, e ela sentiu a sua pele nua sobre a dela à medida que ele a penetrava. Por um momento ele ficou imóvel dentro dela, túrgido e palpitante. Quando, então, começou a se mover, no súbito e inevitável orgasmo, novas estranhas emoções nela despertaram, ondulando em seu interior. Ondulando, ondulando, ondulando, como uma acariciante sucessão de leves chamas, leves como plumas, deslizando para pontos de luz, delicadas, delicadas e fundindo-se com toda a sua fluidez interior. Era como sinos, cada vez soando mais e mais alto, até o paroxismo. Ela não percebeu os gritinhos arrebatados que deu no final. Mas tudo acabou cedo demais, cedo demais, e ela não conseguia mais provocar sua própria conclusão com sua própria atividade. Aquilo era diferente, diferente. Ela nada podia fazer. Não conseguia enrijecer e prendê-lo, para sua própria satisfação. Podia apenas esperar, esperar e gemer por dentro ao senti-lo se retirando, se retirando e encolhendo, chegando ao terrível momento em que deslizaria para fora dela e iria embora.”

Tradução de Celina Portocarrero.

TREPADA AUTORITÁRIA

22) Zadie Smith – “Sobre a Beleza” (2005)

“Me come“, disse Victoria uma vez, e depois outra e outra. Howard podia escutar o tilintar e o murmúrio do velório da mãe daquela garota no andar inferior. Segurando a própria testa, posicionou-se por trás dela. Ao menor toque, ela uivava e parecia tremer de paixão pré-orgásmica, mas apesar disso estava, como Howard descobriu na segunda tentativa, completamente seca. No momento seguinte ela tinha lambido a mão e a trouxera para trás. Esfregou-se intensamente e depois esfregou Howard. Obediente, sua ereção voltou. “Mete dentro de mim”, disse Victoria. “Me come. Mete em mim até o talo”.

Tradução de Daniel Galera.

TREPADA ESPADACHIM

23) Pauline Réage – “História de O” (1954)

“Monique não esperou outras ordens, ajoelhou-se e curvou-se, com o peito de encontro ao revestimento, segurando os dois lados do pufe com as duas mãos. Ela permaneceu imóvel, enquanto o rapaz mandava Jeanne suspender a saia vermelha. Jeanne teve então que desabotoá-lo, ele ordenou isso de forma brutal, e tomar nas mãos aquela espada de carne, que tão cruelmente havia, pelo menos uma vez, trespassado O. Ela inflou e endureceu dentro da palma fechada, e O viu as pequeninas mãos de Jeanne abrirem as coxas de Monique, no interior das quais o rapaz ia penetrando, lentamente, em pequenos solavancos que a faziam gemer. O outro homem, que olhava sem dizer nada, fez sinal a O para que se aproximasse e, sem parar de olhar, debruçou-a sobre um dos braços da poltrona – a saia suspensa lhe oferecia a totalidade das ancas – e tomou-lhe todo o sexo com a mão.”

Tradução de Hortência Santos Lencastre.

TREPADA ROMANA

24) James Salter – “Um Esporte e Um Passatempo” (1967)

“O rádio está tocando. Eles se despem à luz suave do dia de inverno. Dean está um pouco envergonhado de sua condição. Seu pau fica duro sempre que ele olha para ela. Não consegue evitar. Seu maior desejo é tirá-la do chão com ele, exultante, é alçá-la aos raios solares, à luz das estrelas, onde ela possa ver o mundo. Começam a dançar um pouco, nus, à meia-luz do cair da tarde, a música tênue e estrangeira, os seus pés descalços sobre o tapete. Então fazem amor, ela montada sobre ele, à moda predileta dos poetas romanos, como ele lhe informa. Ele está deitado e, de baixo, fita-a no alto, as mãos apertadas em torno dos seus tornozelos. O cheiro rico do corpo dela se derrama sobre ele. No fundo daquilo tudo, o mudo triângulo em que ele está implantado e onde os olhos dele se deixam ficar.”

Tradução de Sonia Moreira.

TREPADA CICLÍSTICA

25) Ana Cristina Cesar – “Cenas de Abril” (1979)

“Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia revivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.”

[ Seleção feita sob encomenda da revista Playboy, publicada aqui na íntegra ]

 

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Não escrever

A Arte de ficar à toa

 


 

Sérgio Augusto - VIA

Por que o prazer da lentidão desapareceu?, pergunta-se Milan Kundera na abertura de sua primeira narrativa escrita diretamente em francês, et pour cause intitulada A Lentidão, que a Companhia das Letras acaba de reeditar. Perdeu-se o hábito de curtir a lentidão neste mundo cada vez mais movido pela pressa e pelo pragmatismo, lamenta o escritor checo, saudoso dos flâneurs de antanho, dos "heróis preguiçosos das canções populares" e dos "românticos vagabundos que dormiam sob as estrelas", criaturas da ociosidade quando esta ainda não era vista, única e exclusivamente, como sinônimo de desocupação estéril e parasitária.
 
Peguei para ler o livrinho de Kundera no embalo de um ciclo de palestras sobre o mais potente combustível da ociosidade: a preguiça. Magnífico tema, na contramão das rotineiras sociologorreias sobre o seu oposto, o trabalho, e também do falso bom senso moral, econômico e religioso que a condenaram como mero vício, ofensa a Deus e entrave ao progresso, pois todos os 23 palestrantes não irão apenas indultar a preguiça (do latim pigritia, cuja raiz é piger, lento), mas sobretudo exaltá-la, valorizando a figura dos ociosos espiritualmente produtivos. Ficar à toa é uma arte. O ciclo, que começa no próximo dia 11, faz parte da série Mutações, criada e orientada pelo professor Adauto Novaes.
São os ociosos que transformam o mundo, escreveu Camus, "porque os outros não têm tempo algum". 
 
Nem sequer para perceber as contradições e as consequências físicas e psíquicas da faina incessante e refletir sobre elas, lenta e profundamente. Os ociosos transformam o mundo criando e meditando. Usar a inteligência sem finalidade lucrativa, não submeter o ócio ao negócio, retirar-se da pressa e das agitações mundanas para poder refletir melhor, este é o trabalho dos ociosos, permanente e sem fim. "A primeira prova de uma inteligência ordenada", prescreveu Sêneca, "é poder parar e aquietar-se consigo mesmo", entregar-se, na formulação de Montaigne, ao "fecundo exercício de uma ociosidade inteligente e feliz", como ele, Sêneca e tantos outros (Rousseau, Thoreau) fizeram. 
 
Além de Macunaíma, a palavra preguiça sempre me evoca o pernambucano Ascenso Ferreira ("Na hora de dormir, dormir; na hora de comer, comer; na hora de vadiar, vadiar; na hora de trabalhar, pernas pro ar que ninguém é de ferro"), o gaúcho Mario Quintana (que fez da pachorra um "método de trabalho"), a modinha De Papo Pro Ar, e, em outro plano, Paul Lafargue, Bertrand Russell e aquele mimético episódio de Godard em Os Sete Pecados Capitais, com Eddie Constantine com preguiça de até dar laço no sapato. E, de uns tempos para cá, a revista The Idler (O ocioso), editada por Tom Hodgkinson, que, confesso, não leio por pura preguiça. 
 
Lafargue, genro de Marx, escreveu há 123 anos a mais conhecida defesa do far-niente, O Direito à Preguiça, que é sobretudo uma crítica arrasadora à "perversão" das classes operárias pelo "dogma do trabalho" complotado pela Igreja e a nobreza - e legitimado pela lógica da produção capitalista e pela retórica domesticante do comunismo. Os antigos gregos desprezavam o trabalho (atribuição exclusiva dos escravos) e gastavam seu tempo com exercícios físicos, jogos de inteligência e o que chamavam de ataraxia: a vida contemplativa. A escravidão, ao estilo antigo, acabou, mas ressurgiu com novas feições. "Quem não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito." Assim falou Nietzsche, que só foi escravo de sua loucura.
 
Platão e Aristóteles achavam que trabalhar esgota o físico, faz mal à saúde, degrada a alma e impede o homem de servir ao espírito, ao corpo e à polis. A moral cristã estragou tudo, santificando o batente ("ganharás o pão com o suor do seu rosto") e transformando a preguiça em pecado capital. Embora Jesus tenha louvado o ócio, no sermão da montanha ("olhai os lírios no campo", etc.), e o Todo-poderoso parado para descansar no sétimo dia, e por toda a eternidade, a Igreja, ressalta Lafargue, pregou, astuciosamente, a ideia de que trabalhar é um castigo imposto pela justiça divina a Adão e Eva e sua infinita prole, para que não lhes sobrasse tempo livre para pensar em besteiras, como, por exemplo, questionar o clichê de que o trabalho só enobrece o homem. 
 
Os nazistas pegaram carona nessa pregação, afixando à entrada de seus campos de extermínio este cínico bordão "Arbeit Macht Frei" (O trabalho liberta). Tão logo o Reich se estrepou, um sambista carioca chamado Almeidinha usou seu ócio para compor um dos maiores sucessos do carnaval de 1946, mais que um samba, um desabafo contra a ergolatria imposta pelo recém-derrubado Estado Novo: "Trabalhar, eu não, eu não!".
 

Russell fez seu "elogio ao lazer" (ou ao ócio) na mesma sintonia de Camus ("sem a classe ociosa, a humanidade jamais teria saído da barbárie") e Lafargue (para manter os pobres satisfeitos, os ricos enalteceram, por milhares de anos, a dignidade do trabalho, "embora pouco se importando de continuar indignos nesse sentido"), e defendeu a redução da jornada de trabalho para quatro horas, mas sem recomendar que o tempo restante fosse desperdiçado com "pura frivolidade". Trabalhando menos e aproveitando melhor o tempo, teríamos uma vida menos monótona e estressante, seríamos mais alegres e felizes. Como se ainda (ou já) estivéssemos no Paraíso.

 

(O texto é sobre o ócio... mas o início, sobre lentidão, me lembrou do comentário de Scorcese sobre o filme Barry Lyndon - Não achei o vídeo mas encontrei um comentário parecido AQUI )

sexta-feira, 8 de abril de 2022

Escrever

Os spoilers e os whetters 


   



São duas funções do discurso narrativo para as quais não temos um termo em português unanimemente aceito.
 
Um spoiler é qualquer tipo de informação capaz de estragar (=”to spoil”) o prazer da descoberta gradual de uma narrativa. Acontece na literatura, no cinema, na TV e por aí vai.
 
O spoiler fundador na minha infância foi um cartum do “Amigo da Onça”, o famoso personagem de Péricles na revista O Cruzeiro. O Amigo da Onça é aquele cara cujo prazer é sacanear os outros, botá-los em situações difíceis, pregar-lhes peças de mau gosto, passar-lhes a perna.


No cartum, uma fila enorme de pessoas está na bilheteria do cinema, comprando os ingressos, e o Amigo da Onça sai bem satisfeito ao final da sessão anterior, repetindo, enquanto caminha ao longo da fila: “O assassino é o pai da moça... o assassino é o pai da moça...”
 
Para quem gosta de filme policial, nada mais chato do que saber de antemão quem é o criminoso.
 
Li por aí que um estudo numa universidade dos EUA comprovou uma coisa interessante: o spoiler, para a maioria das pessoas, mais aumenta do que diminui o prazer de ler/ver uma história. Ou seja, justamente o contrário do que se imagina. Ao que parece, as pessoas preferem saber, desde antes, como a história acaba. Por que?
 
Acho que entra aqui um pouco da famosa teoria de Alfred Hitchcock sobre a surpresa e o suspense. Dizia ele que a surpresa, no cinema, produz um choque violento mas de curta duração, por ser algo inesperado que acontece de repente.
 
O suspense, por outro lado, é algo que a gente sabe que vai acontecer, ou que pode acontecer, e isso faz a gente ficar se roendo de angústia durante horas.
 
São dois efeitos diferentes; cabe ao autor perceber qual deles funciona melhor em cada episódio da história que está contando.
 
Quem gosta dos finais surpreendentes, da elucidação de um mistério, se chateia com o spoiler porque ele estraga o prazer da descoberta. O estudo nos EUA revelou, por outro lado, que muitas vezes o público, sabendo de antemão o desfecho do filme (ou do livro) sente-se mais à vontade para prestar atenção em outras coisas, saboreia melhor outros aspectos da narrativa, percebendo de antemão para onde apontam certos detalhes.


Quero defender agora a existência de outra função do discurso narrativo, da técnica de contar uma história. Uma função que é o contrário de um spoiler.
 
Eu o chamo de whetter, do verbo “to whet”, que significa estimular, aguçar, etc.
 
Para os que se incomodam com termos em inglês, sugiro que usem o seguinte:
 
Em vez de um spoiler, “um desmancha-prazer”.
 
Em vez de um whetter, “um abridor-de-apetite”.
 
Um abridor-de-apetite é um trecho da narrativa em que o narrador dá a impressão de que vai revelar alguma coisa importante lá na frente, mas não o faz. Faz apenas uma insinuação, uma indireta.
 
São aqueles trechos tipo assim:
 
Quando chegamos à casa do Dr. Alencar, ele guardou o carro na garagem e enquanto eu me encaminhava para porta de frente percebi que ele retirava alguma coisa da mala do carro, um detalhe que naquele momento não despertou minha curiosidade
 
Não é um spoiler. Nenhuma revelação foi feita, mas o narrador levantou uma lebre, pôs uma pulga atrás da nossa orelha. Pode haver até um comentário mais explícito:
 
O choque da descoberta do cadáver me fez não dar muita importância ao fato de que havia um livro caído no chão, a certa distância. Não conferi o que era, e viria a me arrepender disso tempos depois.
 
Há sempre um toque de premonição por parte do personagem, ou de lembrança retrospectiva, quando é uma história narrada na primeira pessoa:
 
Ao chegar naquela vila do interior, minha única expectativa era a de alguns meses tranquilos enquanto finalizava meu livro; eu mal poderia imaginar o pesadelo que me aguardava por trás daquelas fachadas pacíficas e daqueles muros cobertos de hera. 
 
Qual a função desses comentários, que em principio são desnecessários à narração em si? Sua função é jogar lá no futuro da história uma corda com gancho, daquelas usadas pelos alpinistas, que prenda nossa atenção lá adiante e nos ajude a seguir até o ponto do mistério anunciado. 
 
O whetter serve para isso: para gerar uma interrogação, e não uma resposta antecipada, como é o caso do spoiler. São duas figuras do discurso narrativo que podem ser utilizadas, inclusive, dentro de um mesmo conto ou romance ou roteiro. 
 
Ou até num mesmo trecho, como no famosíssimo começo de A Judgement in Stone (1977) de Ruth Rendell:
 
Eunice Parchman assassinou a família Coverdale porque não sabia ler nem escrever.


Esta frase inicial de um romance de crime é frequentemente citada porque rompe logo de início com um dogma do romance policial, ao dizer, de chofre, quem é o criminoso, quem foram as vítimas, e qual foi o motivo. Um mega-spoiler, se visto por um raciocínio tacanho.
 
A arte de Ms. Rendell (uma escritora fina, e uma frequentadora corajosa dos desvãos da alma) está em revelar os fatos (através de um possivel spoiler) e ao mesmo tempo instaurar uma interrogação gigantesca (através de um whetter).


sexta-feira, 4 de março de 2022

Escrever


 

 

20 lições sobre Literatura e Escrita, de Antonio Muñoz Molina.


(Via o blog da Maria José Silveira; Os comentários em itálico são DELA)



Vou continuar postando aqui a tradução dos “20 anos, 20 lições”, de Antonio Muñoz Molina, publicado no Babelía, caderno cultural do “El País”, número 1.000, do sábado passado, dia 22 de janeiro.


“1. Aprendi que não tem por que a ficção ser a forma superior da literatura narrativa. Talvez um romance só deva ser escrito quando não tenha mais remédio: quando o que é preciso dizer só possa ser dito inventando.”

A segunda frase do parágrafo prova exatamente o contrário do que diz a primeira frase. Isso deve ser uma figura de retórica qualquer, que não sei dizer qual é. O que sei é que concordo totalmente com a segunda frase.


“2. Aprendi as ilimitadas possibilidades expressivas que o relato estrito de certos fatos contém: muitas das melhores páginas de literatura que li nestes tempos pertencem a livros de história, a memórias, a biografias, a textos de divulgação científica, a artigos ou reportagens de jornais.”

Hum, hum. Certo. Mas ainda fico com a segunda frase do primeiro parágrafo da lição 1, lá de cima.

“3. Aprendi as vantagens de nos submergirmos em outro idioma: na viagem de ida descobrimos a música própria de outras línguas e a verdadeira voz de escritores que acreditamos conhecer bem lendo traduzidos; na viagem de volta nos tornamos mais sensíveis à poesia implícita em nossa própria língua, que nem sempre percebíamos antes.”

Perfeito.

“4. Aprendi algo que ouvi Salman Rushdie dizer em Granada, em 1995: enquanto escreve um romance, um escritor de prosa deve ler muita poesia, para aprender sua disciplina verbal e não se deixar levar pela autoindulgência palavreira. Na poesia se aprende precisão.”

Pena que o próprio Salman Rushdie não seguiu direito seu conselho. Dos catataus que ele escreve, até hoje só li um, “Os Filhos da Meia Noite”. Comecei encantada mas aí pela página 400 não aguentei mais a algaravia.

“5. Aprendi a desconfiar do estilo, que quando não é apenas o som singular da própria voz pode se converter em uma coleção de muletas, automatismos e paródias do que a pessoa mesmo já escreveu.”.

Muitíssimo instrutivo. De certa forma, acho que já havia intuído esse perigo mas sem conseguir identificá-lo com tamanha precisão.

“6. Aprendi que a pessoa deve desconfiar de suas capacidades, reais ou supostas, e tirar o máximo proveito de suas limitações.”

Pena que ele não diz como fazer isso.

“7. Aprendi que escrever é se empenhar e é se deixar levar na mesma medida em que é contar algo que se sabe e também se aventurar pelo que não se sabe e não há maneira de se chegar a saber a não ser através da própria escrita.”

Assino, ipsis literis, embaixo.

“8. Aprendi que a percepção do leitor comum que aprecia literatura tende a ser mais aguda e mais livre de preconceitos do que a da média dos especialistas, críticos ou professores.”

Um motivo a mais para se escrever apenas para o “querido leitor” que está do outro lado da nossa página em branco.

“9. Aprendi que os preconceitos e os mal-entendidos nos influenciam muito mais do que acreditamos, de modo que é preciso sempre estar em guarda contra eles: se Virginia Woolf não fosse mulher talvez eu não tivesse que chegar aos cinquenta anos para descobrir a radicalidade estética e a profundidade humana de romances como “Mrs. Dalloway” ou “Rumo ao Farol”.

Antes tarde do que nunca. Mas taí uma carapuça que serviria muito bem para many men que conheço.


“10. Aprendi que por muitos anos que tenhamos e por mais familiaridade que creiamos ter com a literatura, sempre fazemos descobrimentos jubilosos que nos deslumbram, como um geógrafo ou um explorador a que foi dado descobrir uma nova montanha, um novo continente: assim encontrei faz alguns anos “Vida e Destino” de Vasili Grossman, que era como um Everest em que quase ninguém tinha reparado, ou “Sob o Vulcão”, que eu devia ter lido quando mais jovem, mas que talvez pela idade com que cheguei a ele me causou uma impressão ainda mais profunda.”

Acho que vou ter que esperar mais alguns anos para reler “Sob o Vulcão”, e ter essa impressão profunda.

“11. Aprendi que na música ou na pintura – e na fotografia, e no desenho – estão contidas lições fundamentais para meu ofício de escrever: na música, um sentido da composição e do fluxo do tempo que organiza o relato de uma maneira mais flexível e menos evidente que a trama do argumento; da pintura, uma disciplina de observação e o espaço. No desenho e na música de jazz há uma aprendizagem específica, ou talvez apenas um propósito: o instante capturado em um instante; o ato mesmo da escrita como momento supremo, presente soberano que não existia antes nem será possível, pelo menos da mesma forma, um minuto depois.”

Muito bom isso. Só estranho que ele não tenha se referido também ao cinema, pelo sentido de movimento e pela maravilhosa aproximação do “zoom”: acredito que aprendi muito mais com, por exemplo, o “Kill Bill” do Tarantino do que com os livros vitorianos.


“12. Aprendi que os únicos estimulantes que preciso para escrever estão dentro de mim mesmo, na orgia eletroquímica dos neurotransmissores que combinam subitamente imagens de recordações ou de fantasia em um sonho lúcido. Comparado a essa efervescência, o efeito de qualquer droga, da nicotina ao álcool, é uma bagatela, um gasto inútil de energia física e mental.”

Perfeito.

“13.Aprendi que o exercício físico e as tarefas práticas ajudam a disparar a imaginação e a fazer com que as ideias, as imagens, as conexões, as palavras, surjam mais velozmente. Graças à embriaguez do oxigênio de uma corrida ou de uma boa caminhada ou à atenção alerta e multiplicidade das pequenas tarefas necessárias para cozinhar um arroz, inventei personagens ou situações ou mudanças de argumentos que de outra maneira não teria inventado.”

É tão verdadeiro isso que me espanta nenhum escritor ter dito nada parecido antes.

“14. Aprendi que uma parte muito grande do trabalho de escrever um livro vai sendo feito sem que o escritor se dê conta, muito antes de começar a escrita. O projeto de um romance ou de qualquer texto narrativo só vale alguma coisa quando é o resultado da cristalização de experiências, leituras, imagens, recordações, desejos, que de repente se fazem visíveis e se vinculam entre si como um mapa de conexões neurônicas.”

Perfeito, perfeito.

“15. Aprendi que nenhuma vivência, nenhuma história, é em si mesma tão particular ou tão local que não possa se fazer universalmente inteligível; e também que não há nada tão provinciano como certas formas enfáticas de cosmopolitismo.”

A primeira afirmação do parágrafo me parece bem válida; a segunda é meio obscura. Ele deve estar se referindo a alguém ou a algum defeito que não me parece tão visível entre nós.

“16. Aprendi que em cada geração há certo número de jovens escritores que chegam a se convencer, com ajuda de alguns jornalistas e críticos, de que sua juventude não é um fato transitório e bastante frequente, e sim uma característica absoluta de originalidade e talento.”

Essa é ótima!! Vou colocar no meu Facebook.

“17. Aprendi que entre todos os personagens que um romancista inventa, o menos sólido, o menos verdadeiro, o mais convencional, costuma ser o personagem público no qual ele converte a si mesmo.”

Ferino.

“18. Aprendi a conviver com a insegurança e com o desalento, com a incerteza irremediável sobre o valor do que fiz, com a vulnerabilidade frente aos juízos negativos e a suspeita de que possam ser menos infundados que alguns elogios.”

Ai!! Definição perfeita do cotidiano de quem escreve.

“19. Aprendi que apenas terminado, um livro já começa a se converter em um arrependimento que algumas vezes se cura com o tempo e outras não, e para o qual o único antídoto que existe é começar outro livro no qual será possível não cometer os mesmos erros: se tiver sorte, se cometerão erros diferentes”.

Outro comentário lamentavelmente verdadeiro.

“20. Aprendi que tudo de que gosto, gosto ainda mais do que há vinte anos: escrever, ler, ver quadros ou filmes, escutar música, passear pelas cidades que amo, estar perto das pessoas queridas, recordar-me das que se foram e que às vezes voltam nos sonhos; e me pergunto que coisas de que agora nem suspeito aprenderei se viver outros vinte anos, que histórias sobre as quais agora nada sei surgirão na imaginação e se converterão em livros, não necessariamente romances, livros que se pareçam tão pouco aos que já escrevi como minha vida presente com a de vinte anos atrás.”

Bonito e otimista. Mas não creio que exatamente verdadeiro, a não ser quando se é muito jovem.

E aqui acabam as 20 lições.
Pena!

 

(Imagem Composição Cromática veio DAQUI