sábado, 9 de abril de 2016

Escrever




-Francisco Bosco fala sobre escrever e otras cositas más. Veio DAQUI (2014).



Pensar, ler, escrever








A dúvida e a hesitação intelectuais não representam necessariamente falta de clareza cognitiva ou coragem moral para se posicionar com firmeza diante da realidade. Pois muitas vezes a própria realidade não é clara e firme, e sim turva e ambígua. Nesses casos, ao contrário do que se poderia pensar, o estatuto cognitivo da dúvida é justamente a verdade, e seu estatuto moral é a coragem (não é fácil suportar a angústia da indecisão).
Um pensador é fundamentalmente alguém que nos oferece um modo de ver a realidade. Uma anterioridade, uma mediação que nos adentra o espírito, confundindo-o com ela, transformando-o nela. Um ensaísta ou um escritor é alguém que nos apresenta o mundo. Sua relação é com o mundo. Um pensador é alguém que nos apresenta a origem do mundo. Sua relação é com o pensamento. O pensamento é a origem do mundo. Todo verdadeiro pensador (são raros) recomeça o mundo.
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Quem chama de “pedante” alguém que escreve “difícil” (difícil para quem?) mobiliza um álibi moral para uma reação, no fundo, imaginária: sente-se diminuído porque sua incompreensão revela sua ignorância — e procura recalcar isso projetando no outro seu sentimento de inferioridade. De resto, é absurdo moralizar o que não se compreende.
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Muitos jornalistas desejam escrever um romance. Muitos filósofos também. Geralmente, por preconceitos diferentes — num caso, cultural; noutro, epistemológico — mas com resultados iguais. Em vez disso, aqueles deveriam fazer jornalismo inteligente; esses, filosofia inventiva.
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Os dois defeitos estéticos imperdoáveis: 1) a duplicação: declamar com tristeza um poema que fala de coisas tristes; repetir com gestos o que as palavras já estão dizendo; a duplicação está para a estética como o enjoo para o estômago: é um excesso que dá vontade de vomitar; 2) o fake: pretender ser o que não se é.
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O que define o ensaísmo é sua inconsequência. Mesmo quando ele se inscreve em uma disciplina, o seu compromisso não é o de levar os métodos ou os conceitos dessa disciplina adiante; o seu compromisso é antes com o seu objeto. Um especialista está comprometido com certo território conceitual; um ensaísta está comprometido com certos problemas singulares, podendo valer-se de conceitos de territórios diversos para compreender esses problemas. É assim que ensaístas não costumam ser disciplinares, nem mesmo transdiciplinares, e sim indisciplinares (mas não indisciplinados, porque o trabalho do conhecimento lhes é essencial). Não lhes interessa colocar disciplinas em contato, mas compreender certos problemas: ora, conceitos pertencem a disciplinas, mas os problemas que eles ajudam a compreender pertencem à vida, que é indisciplinar — e indisciplinada, felizmente.
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Diz o senso comum sobre os livros difíceis: “Esses autores não pensam no leitor, escrevem para o próprio umbigo”. Ao contrário: paradoxalmente, um texto só serve ao outro se tiver conquistado sua autossuficiência, se escrever para o próprio umbigo. Os textos que meramente demandam do leitor na verdade não lhe oferecem nada, apenas socilitam seu reconhecimento.
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Um jurado de concurso literário é um antileitor. Um leitor se relaciona, por meio do texto alheio, com suas próprias questões, seus próprios interesses, e é a existência ou não dessa fonte de estímulos o critério primordial de sua avaliação (“é bom ou não é bom para mim”). Já um jurado deve se colocar na posição imprecisa — e sobretudo desinteressante — da objetividade, procurando limitar a perspectiva do “para mim”, que entretanto é a única que realmente interessa a um leitor. O terceiro termo é a função do orientador, que, nem leitor, nem antileitor, mobiliza uma leitura “para o outro”, não para julgá-lo da perspectiva difusa da objetividade (o que seria a antileitura “para o Outro”), mas para ajudá-lo a tornar-se, com mais recursos, um “para si”.
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Para mim, é isso o “meu” pensamento: uma profusão de ideias, impressões e argumentos diferentes e muitas vezes contraditórios entre si. Em cada momento alguns me parecem mais corretos, e é com eles que construo a realidade, são eles que “defendo”. Mas não me identifico profundamente com eles. Não são “minhas” ideias, “meus” argumentos — logo, não é meu pensamento. Por isso não me é tão difícil ouvir críticas e acatar os argumentos que se opõem aos “meus” (já que não os experimento como meus). Há uma saúde imaginária nessa dissociação, em larga medida, entre o eu e o que ele pensa: I never fall apart, because I never fall together.