sexta-feira, 4 de março de 2022

Escrever


 

 

20 lições sobre Literatura e Escrita, de Antonio Muñoz Molina.


(Via o blog da Maria José Silveira; Os comentários em itálico são DELA)



Vou continuar postando aqui a tradução dos “20 anos, 20 lições”, de Antonio Muñoz Molina, publicado no Babelía, caderno cultural do “El País”, número 1.000, do sábado passado, dia 22 de janeiro.


“1. Aprendi que não tem por que a ficção ser a forma superior da literatura narrativa. Talvez um romance só deva ser escrito quando não tenha mais remédio: quando o que é preciso dizer só possa ser dito inventando.”

A segunda frase do parágrafo prova exatamente o contrário do que diz a primeira frase. Isso deve ser uma figura de retórica qualquer, que não sei dizer qual é. O que sei é que concordo totalmente com a segunda frase.


“2. Aprendi as ilimitadas possibilidades expressivas que o relato estrito de certos fatos contém: muitas das melhores páginas de literatura que li nestes tempos pertencem a livros de história, a memórias, a biografias, a textos de divulgação científica, a artigos ou reportagens de jornais.”

Hum, hum. Certo. Mas ainda fico com a segunda frase do primeiro parágrafo da lição 1, lá de cima.

“3. Aprendi as vantagens de nos submergirmos em outro idioma: na viagem de ida descobrimos a música própria de outras línguas e a verdadeira voz de escritores que acreditamos conhecer bem lendo traduzidos; na viagem de volta nos tornamos mais sensíveis à poesia implícita em nossa própria língua, que nem sempre percebíamos antes.”

Perfeito.

“4. Aprendi algo que ouvi Salman Rushdie dizer em Granada, em 1995: enquanto escreve um romance, um escritor de prosa deve ler muita poesia, para aprender sua disciplina verbal e não se deixar levar pela autoindulgência palavreira. Na poesia se aprende precisão.”

Pena que o próprio Salman Rushdie não seguiu direito seu conselho. Dos catataus que ele escreve, até hoje só li um, “Os Filhos da Meia Noite”. Comecei encantada mas aí pela página 400 não aguentei mais a algaravia.

“5. Aprendi a desconfiar do estilo, que quando não é apenas o som singular da própria voz pode se converter em uma coleção de muletas, automatismos e paródias do que a pessoa mesmo já escreveu.”.

Muitíssimo instrutivo. De certa forma, acho que já havia intuído esse perigo mas sem conseguir identificá-lo com tamanha precisão.

“6. Aprendi que a pessoa deve desconfiar de suas capacidades, reais ou supostas, e tirar o máximo proveito de suas limitações.”

Pena que ele não diz como fazer isso.

“7. Aprendi que escrever é se empenhar e é se deixar levar na mesma medida em que é contar algo que se sabe e também se aventurar pelo que não se sabe e não há maneira de se chegar a saber a não ser através da própria escrita.”

Assino, ipsis literis, embaixo.

“8. Aprendi que a percepção do leitor comum que aprecia literatura tende a ser mais aguda e mais livre de preconceitos do que a da média dos especialistas, críticos ou professores.”

Um motivo a mais para se escrever apenas para o “querido leitor” que está do outro lado da nossa página em branco.

“9. Aprendi que os preconceitos e os mal-entendidos nos influenciam muito mais do que acreditamos, de modo que é preciso sempre estar em guarda contra eles: se Virginia Woolf não fosse mulher talvez eu não tivesse que chegar aos cinquenta anos para descobrir a radicalidade estética e a profundidade humana de romances como “Mrs. Dalloway” ou “Rumo ao Farol”.

Antes tarde do que nunca. Mas taí uma carapuça que serviria muito bem para many men que conheço.


“10. Aprendi que por muitos anos que tenhamos e por mais familiaridade que creiamos ter com a literatura, sempre fazemos descobrimentos jubilosos que nos deslumbram, como um geógrafo ou um explorador a que foi dado descobrir uma nova montanha, um novo continente: assim encontrei faz alguns anos “Vida e Destino” de Vasili Grossman, que era como um Everest em que quase ninguém tinha reparado, ou “Sob o Vulcão”, que eu devia ter lido quando mais jovem, mas que talvez pela idade com que cheguei a ele me causou uma impressão ainda mais profunda.”

Acho que vou ter que esperar mais alguns anos para reler “Sob o Vulcão”, e ter essa impressão profunda.

“11. Aprendi que na música ou na pintura – e na fotografia, e no desenho – estão contidas lições fundamentais para meu ofício de escrever: na música, um sentido da composição e do fluxo do tempo que organiza o relato de uma maneira mais flexível e menos evidente que a trama do argumento; da pintura, uma disciplina de observação e o espaço. No desenho e na música de jazz há uma aprendizagem específica, ou talvez apenas um propósito: o instante capturado em um instante; o ato mesmo da escrita como momento supremo, presente soberano que não existia antes nem será possível, pelo menos da mesma forma, um minuto depois.”

Muito bom isso. Só estranho que ele não tenha se referido também ao cinema, pelo sentido de movimento e pela maravilhosa aproximação do “zoom”: acredito que aprendi muito mais com, por exemplo, o “Kill Bill” do Tarantino do que com os livros vitorianos.


“12. Aprendi que os únicos estimulantes que preciso para escrever estão dentro de mim mesmo, na orgia eletroquímica dos neurotransmissores que combinam subitamente imagens de recordações ou de fantasia em um sonho lúcido. Comparado a essa efervescência, o efeito de qualquer droga, da nicotina ao álcool, é uma bagatela, um gasto inútil de energia física e mental.”

Perfeito.

“13.Aprendi que o exercício físico e as tarefas práticas ajudam a disparar a imaginação e a fazer com que as ideias, as imagens, as conexões, as palavras, surjam mais velozmente. Graças à embriaguez do oxigênio de uma corrida ou de uma boa caminhada ou à atenção alerta e multiplicidade das pequenas tarefas necessárias para cozinhar um arroz, inventei personagens ou situações ou mudanças de argumentos que de outra maneira não teria inventado.”

É tão verdadeiro isso que me espanta nenhum escritor ter dito nada parecido antes.

“14. Aprendi que uma parte muito grande do trabalho de escrever um livro vai sendo feito sem que o escritor se dê conta, muito antes de começar a escrita. O projeto de um romance ou de qualquer texto narrativo só vale alguma coisa quando é o resultado da cristalização de experiências, leituras, imagens, recordações, desejos, que de repente se fazem visíveis e se vinculam entre si como um mapa de conexões neurônicas.”

Perfeito, perfeito.

“15. Aprendi que nenhuma vivência, nenhuma história, é em si mesma tão particular ou tão local que não possa se fazer universalmente inteligível; e também que não há nada tão provinciano como certas formas enfáticas de cosmopolitismo.”

A primeira afirmação do parágrafo me parece bem válida; a segunda é meio obscura. Ele deve estar se referindo a alguém ou a algum defeito que não me parece tão visível entre nós.

“16. Aprendi que em cada geração há certo número de jovens escritores que chegam a se convencer, com ajuda de alguns jornalistas e críticos, de que sua juventude não é um fato transitório e bastante frequente, e sim uma característica absoluta de originalidade e talento.”

Essa é ótima!! Vou colocar no meu Facebook.

“17. Aprendi que entre todos os personagens que um romancista inventa, o menos sólido, o menos verdadeiro, o mais convencional, costuma ser o personagem público no qual ele converte a si mesmo.”

Ferino.

“18. Aprendi a conviver com a insegurança e com o desalento, com a incerteza irremediável sobre o valor do que fiz, com a vulnerabilidade frente aos juízos negativos e a suspeita de que possam ser menos infundados que alguns elogios.”

Ai!! Definição perfeita do cotidiano de quem escreve.

“19. Aprendi que apenas terminado, um livro já começa a se converter em um arrependimento que algumas vezes se cura com o tempo e outras não, e para o qual o único antídoto que existe é começar outro livro no qual será possível não cometer os mesmos erros: se tiver sorte, se cometerão erros diferentes”.

Outro comentário lamentavelmente verdadeiro.

“20. Aprendi que tudo de que gosto, gosto ainda mais do que há vinte anos: escrever, ler, ver quadros ou filmes, escutar música, passear pelas cidades que amo, estar perto das pessoas queridas, recordar-me das que se foram e que às vezes voltam nos sonhos; e me pergunto que coisas de que agora nem suspeito aprenderei se viver outros vinte anos, que histórias sobre as quais agora nada sei surgirão na imaginação e se converterão em livros, não necessariamente romances, livros que se pareçam tão pouco aos que já escrevi como minha vida presente com a de vinte anos atrás.”

Bonito e otimista. Mas não creio que exatamente verdadeiro, a não ser quando se é muito jovem.

E aqui acabam as 20 lições.
Pena!

 

(Imagem Composição Cromática veio DAQUI