segunda-feira, 20 de abril de 2020

Escrever






Como Escrever Histórias em Quadrinhos - Parte III (e final)
Por Alan Moore 

N. do T.: Para esta terceira parte, é interessante que você tenha à mão, se possível, a edição em P & B de 2002 (formato magazine) Alan Moore - Super-Homem, da Opera Graphica Editora , que apresenta a história O Homem que Tinha Tudo, ou ainda, a revista Superpowers 21, da Ed. Abril, que contém a mesma história. Tenha também à mão edições de Love and Rockets.


Agora que temos nossa idéia, nossa estrutura, nossa aproximação do storyteller, nosso ambiente e a caracterização de nossos personagens, suponho que podemos também nos preocuparmos em desenvolver um enredo (embora como você possa ter percebido se você já leu muitos dos meus trabalhos, eu muito freqüentemente posso não ter me incomodado com essa formalidade). Assim, o que diabos é um enredo? Com o que ele se parece? Um enredo não é o ponto principal da história ou a principal razão de a história existir. É algo que está aqui mais para sustentar a idéia central da história e os personagens envolvidos nela do que dominá-los e forçá-los a preencher suas restrições. Um enredoé a combinação do ambiente e dos personagens com o elemento de tempo adicionado a ele. Se a combinação do ambiente e dos personagens pode ser chamada de situação, o enredo é uma situação vista em quatro dimensões. Usando um exemplo que emprestei do excelente Report on Probability A, de Brian Aldiss, vamos pensar sobre outras coisas além de quadrinhos para termos uma perspectiva diferente da idéia. Consideremos uma pintura específica, The Hireling Shepherd, do pintor pré-rafaélico Willian Holman Hunt (para ver a pintura, clique aqui).







Nesta pintura, vemos uma mulher sentada, encarando-nos diretamente de frente com uma belíssima e luminosa paisagem pastoral por trás dela, banhando-a na luz dourada do fim-de-tarde. Encolhido ou ajoelhado atrás da mulher, vemos um rapaz, o pastor assalariado do título. ele tem um de seus braços por sobre um dos ombros dela, como se ele tentasse estabelecer uma intimidade física com o braço ao seu redor. Entretanto, no momento descrito na pintura, sua mão ainda não a tocou. Presa cuidadosamente na palma da mão do rapaz, há uma mariposa "cabeça da morte". A expressão tanto do formoso pastor quanto da jovem mulher são ambíguos. O pastor parece desejoso enquanto a mulher parece cortejada. Visto de outro modo, a expressão do rapaz é levemente mais sinistra enquanto a expressão dela torna-se uma de preocupação reprimida. Por trás do casal, nos campos ingleses banhados de ouro, um rebanho de ovelhas vaga quase desinteressadamente, sem supervisão e desprotegidas enquanto o pastor flerta com sua bela jovem no gramado acima de seu pasto. O pastor parece sorrir como se estivesse preparando-se para mostrar à jovem a mariposa "cabeça da morte", e ela não parece descontente com seu avanço. O rebanho pasta, a mariposa estremece, o momento está congelado, sem nenhum passado nem resolução. A pintura é um único segundo retirado de um continuum do qual não sabemos mais nada sobre ele. Não sabemos nada das existências prévias desses personagens; não sabemos onde o pastor cresceu ou mesmo onde ele dormiu na noite anterior. Não sabemos se a mulher chegou àquele caminho apenas casualmente ou se concordou previamente em encontrar-se com o rapaz naquele lugar. Do futuro deles, sabemos menos ainda. Quando ele mostrar a mariposa, será que ela ficará encantada ou enojada? Eles farão amor, ou simplesmente conversar, ou talvez discutir? Isso fará com que as ovelhas se tornem menos desinteressadas? Com um olho no aparentemente nefasto simbolismo da mariposa "cabeça da morte", haverá algo mais sombrio implicado? Não necessariamente algo melodramático como a possibilidade de o pastor está quase para assustar a moça, mas talvez alguma referência à mortalidade e os caminhos nos quais dissipamos a substância de nossas vidas? É esse eterno momento que vemos, capturado na tela, um momento do relacionamento ou o fim do mesmo?


A beleza de uma boa pintura é que a mente e os sentimentos podem vagar interminavelmente dentro dela, seguindo seus próprios padrões e movendo-se em seu próprio espaço através do lugar atemporal que a pintura representa. The Hireling Shepherd mostra-nos uma situação. Tal situação não muda ou move-se, mas nós mesmos podemos nos mover dentro dela, mentalmente, desfrutando as sutis mudanças na perspectiva e significado.


Agora, se adicionar-mos a dimensão do tempo naquela situação, o trabalho de arte será completamente alterado. Em vez de ter infinitas possibilidades, deverá seguir apenas uma única rota. A estrutura de eventos ao longo desta rota é o enredo. A garota da pintura percebe a mariposa e ela fica tanto intrigada quanto um pouco assustada por ela. Conduzida essa forma dentro da conversação com o carismático pastor assalariado, a mulher encontra-se igualmente fascinada por ele. Eles fazem amor, após o rapaz libertar a mariposa "cabeça da morte". quando o primeiro encontro sexual deles termina, eles descobrem que o rebanho de ovelhas foi roubado ou misteriosamente desapareceu durante esse intervalo. Sem querer encarar a cólera do irado fazendeiro que contratou o pastor para cuidar das ovelhas, o feliz e despreocupado trabalhador decide deixar a vizinhança sem reportar o roubo e procura por trabalho em outro condado. Após algumas semanas, a mulher descobre que está grávida. Seu pai e seus irmãos tomam conhecimento disso e juram localizar o pastor assalariado e oferecer a ele a escolha do casamento ou da morte... e etc e etc.


Reconhecidamente, o que foi descrito acima é uma desajeitada e feia extrapolação, sem nenhuma poesia ou charme ou sutileza da pintura original, mas acho que ela indica que esboçar um enredo é um tipo de fenômeno quadrimensional, usando o tempo por este ser a quarta dimensão. A situação apresentada na pintura é uma representação de um mundo tridimensional que, com a adição do tempo, torna-se quadrimensional e muda de uma situação para um enredo.

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Assim, para considerar o processo de enredo em qualquer maneira que valha a pena, você deve tentar pensar em termos quadrimensionais. Veja o mundo que seus personagens habitam como um continuum com um passado, um presente e um futuro. Veja o modelo como um todo, e você será mais capaz em ver como os elementos dentro desse design global relacionam-se uns com os outros com uma clareza muito maior. Watchmen foi concebida precisamente dessa maneira. Em tempo real, a história começa em outubro de 1985 e termina poucos meses depois. Tenho todos os eventos dentro daquele período precisamente desenvolvidos. Em termos mais amplos, entretanto, a história relaciona eventos acontecidos desde 1940, com seqüências individuais iniciadas nas décadas de 40, 50, 60, 70...

O que nos dá uma impressão de, eu espero, ser um mundo com um senso crível de profundidade e História, junto com personagens que partilham das mesmas qualidades. Sendo capaz de vislumbrar 45 anos arrancados da História [do homem] e relacionados ao mundo, minha história está amarrada antes mesmo de tentar escrever uma única sílaba sobre esse mundo. Sou capaz de perceber padrões de eventos e eventos os quais espelham-se uns aos outros, conceptualmente, atraindo elementos potenciais da história e mostrando que posso enfatizar e salientar com ao história irá progredir. Eu vi oportunidades em amarrar elementos do enredo ou da estrutura temática do livro e apresentar um todo mais coerente e efetivo como resultado. Também, desde que eu tenha a história desse mundo e seus vários personagens mapeados de modo avançado, talvez eu possa perceber interessantes justaposições de personagens ou eventos, os quais poderiam logicamente acontecer em algum ponto da história e poderiam sugerir uma cena interessante ou momento de ação ou troca de diálogo.
Estabeleçer seu continuum como um padrão quadrimensional, com comprimento, largura, profundidade e tempo, e então escolher uma linha simples de narrativa que o conduza de forma mais interessante e mais reveladora através da paisagem que você criou, seja ela literalmente uma paisagem ou algo mais abstrato e psicologicamente mais mundano. Esta linha de narrativa é o seu enredo. Como o enredo move-se através do bem-visualizado continuum que você criou para existir nesse enredo, você irá perceber que é fácil obter uma impressão despercebida mais realística e admirável de um mundo realista que encontra-se além dos confins da verdadeira história que estamos contando. Um bom exemplo disso pode ser os mundos que Jaime e Gilbert Hernandes criaram em Love and Rockets. Nos storylines de Locas Tambien e Mechanics de Jaime Hernandes, temos a sensação de toda uma massa crível de detalhes pairando além das bordas dos quadrinhos e dos confins da própria história. Após ver o nome referido nos vários pedaços de grafites durante meses, finalmente aprendemos que Mísseis de Outubro é o nome da banda de Hopey, do mesmo modo casual que descobrimos que seu sobrenome é Glass ou que a tia de Maggie, Vicky Glori, uma vez esteve em um Body Contested Championship Hour com Rena Titanon. Em Heartbreak Soup, Gilbert fez um trabalho igualmente impressionante com sua descrição de uma comunidade em Palomar durante um período de quinze ou vinte anos de tempo da história. Vemos Jesus, Heráclio, Vicente e os outros crescendo e assentando-se em suas próprias e distintas vidas adultas. Vemos a xerife Chelo começar sua carreira como uma Banadora (uma mulher que dá banho em homens) antes de ser expulsa do negócio pela bela Lube e ser obrigada por imposição da Lei. Nas seqüências posteriores vemos quão perfeita ela se tornou em sua nova vocação e vemos que ela se torna gradualmente mais magra e bem mais atraente, enquanto Lube começa a parecer mais desgastada e consciente do quanto ela perdeu da liberdade de sua juventude, junto com o anúncio, quiçá, da transitoriedade de sua beleza. O mundo é real e tridimensional. Leva quinze anos de tempo de história antes de começarmos a perceber que Vicente está mais preocupado por sua desfiguração que originalmente parecia estar. Observamos duas crianças com mães diferentes, ambas pensando no recém falecido jovem Manuel, nas brincadeiras que faziam juntas durante um banquete público, enquanto a vida adulta chega para elas. Temos a sensação de um completo continuum, no qual tudo assume seu próprio grau de importância e torna-se uma parte vital do trabalho global de arte.


Nós temos uma idéia que desejamos comunicar e um enredo que enfatiza e revela a idéia de um modo interessante. Temos personagens sólidos e adaptados para a história acontecer de acordo e um mundo igualmente sólido e acreditável no qual ela aconteça. O primeiro passo é pegar nossa história, a qual, presumivelmente, tenhamos chegado à ela com a noção de quantas páginas serão necessárias para que seja impressa, e ver exatamente quão bem ela combina com as restrições que temos. Como exemplo de como esse processo funciona, citarei a história que criei para o anual do Super-homem, de 1986 (N. do T.: trata-se da história Para O Homem que Tinha Tudo).


  



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Nessa história, a idéia era examinar mundos de sonhos de escapismo e fantasias, incluindo os idealizados tempos de felicidade no passado e os aguardados momentos no futuro onde finalmente alcançamos nossos objetivos, quaisquer que sejam eles. Queria captar o quão útil essas idéias realmente são e o quão larga é a lacuna entre a fantasia e a realidade. Foi uma história, se você preferir, para pessoas que conheci que possuiam fixação sobre algum momento no futuro onde elas podem finalmente ser "felizes". Pessoas que dizem, se eu apenas tivesse entrado na faculdade e terminasse ela mais cedo, me estabilizado, amadurecido para o mundo, pego aquele emprego que recusei..., ou àquelas que dizem quando a hipoteca for paga, então poderei me divertir. Quando eu for promovido e ganhar mais dinheiro, então terei dias melhores. Quando os filhos estiverem crescidos, finalmente poderei ter meu romance publicado..., pessoas que são escravas de suas próprias percepções de passado e de futuro, incapazes de experimentar apropriadamente o presente antes que ele acabe.


O enredo que escolhi foi pegar essa idéia que envolvia a mente do Super--homem ser escravizada por um parasita telepático que alimenta uma ilusão do desejo de seu coração: um planeta Kripton que nunca explodiu. Isso faz parte do plano de Mongul, um inimigo alienígena do Super-homem, que o quer fora do caminho para que possa dominar o universo ou o quer seja que esses tipos tirano desejem. A história acontece durante o aniversário do Super-homem, na Fortaleza da Solidão, com seqüências simultâneas de dentro da mente do Super-homem, onde ele imagina a si mesmo como alguém que ele poderia ter sido em Kripton. No decorrer da história, vemos que isso eventualmente não seria tão feliz quanto parecia ser, e finalmente o Super-homem abandona a fantasia. Ao mesmo tempo, ele vê sua inútil nostalgia por um planeta destruído como realmente é, e aprende algo sobre si mesmo dessa experiência.


Ok... então o problema é como apresentar esse enredo e sua idéia organizada dentro das restrições que são impostas pelo espaço ocupado pela edição, pelo mercado para o qual ela é direcionada e assim por diante. A restrição mais concreta e imediata é que a revista tem 40 páginas. Isso significa que devo ajustar minha história precisamente à esse número de páginas sem que ela pareça comprimida ou preenchida com ar. Assim, meu primeiro passo é usualmente pegar umas folhas de papel e escrever os números de um a quarenta no lado esquerdo do rodapé. Então começo a esboçar as cenas que já tenho em mente e tentar desenvolver quantas páginas elas irão ocupar.
Eu já desenvolvi aquilo que quero apresentar como um contraste entre o mundo de Kripton dos sonhos do Super-homem e a realidade externa de sua situação, paralisado e imóvel na Fortaleza da Solidão com um fungo alienígena aderido ao seu peito, alimentando-se de sua bio-aura. Para que isso funcione, necessito de algo interessante que se desenrole na Fortaleza da Solidão enquanto o Super-homem dorme, e que eu possa colocar entre uma envolvente cena do mundo dos sonhos e uma cena igualmente engajada que se desenvolve simultaneamente no "mundo real". Já que era o aniversário do Super, pareceu-me lógico que alguns de seus amigos super-humanos o visitasse (no caso, Mulher-maravilha, Batman e Robin) e providenciar algum conflito incidental interessante com Mongul, que está avaliando sua obra.


O tosco esquema poderia funcionar mais ou menos assim: Eles chegam e deixamos que os personagens aproximem-se por alguns breves momentos e mostramos como eles reagem uns aos outros. Com o diálogo deles, deixamos o leitor saber que é aniversário do Super-homem. Estabelecemos que tanto a Mulher-maravilha quanto a dupla dinâmica trazem presentes. A Mulher-maravilha traz um enorme embrulho que ela se recusa em revelar seu conteúdo, enquanto que Batman e Robin têm uma rosa especial batizada de "Kripton", criada para homenagear a ocasião. Ao entrar na Fortaleza, eles encontram o Super com uma estranha massa de rosas que aparentemente cresce em seu peito. Ele encontra-se imóvel e totalmente em coma. Enquanto tentam imaginar o que ocorreu, Mongul anuncia sua presença e revela o seu plano em detalhes. A Mulher-maravilha tenta cuidar dele, mas ela é atingida por um brutal ataque que a arremessa através da sala de troféus da Fortaleza da Solidão e da parede da sala de armas, onde o armamento alienígena alí encontrado se mostra inútil contra Mongul. Enquanto isso, Batman está friamente tentando reviver o Super-homem apenas com uma esperança real de salvar a situação. Mais como um resultado do crescente desencanto do Super com o mundo de fantasia no qual se encontra do que pelos esforços do Batman, a criatura solta-se e agarra-se imediatamente ao Batman. Neste ponto, livre da influência da criatura, o Super-homem desperta. A fantasia que ele havia vivido foi demais para ele e as duas linhas narrativas fundem-se em uma só, e os eventos começam a consolidar o clímax da edição.



Ok... Agora temos que trabalhar o que sobrou desenvolvendo um esquema similar de eventos dentro da cabeça do Super-homem: abrimos com Kriptonópolis, onde estabelecemos que o Super-homem está vivendo como Kal-El, que tem uma esposa e dois filhos e trabalha longas e cansativas horas como um arqueólogo. Aprendemos que Kripton parece ser uma sociedade em declínio. O pai de Kal-El, Jor-El, foi menosprezado pela comunidade científica desde que suas previsões em relação ao destino de Kripton provaram ser infundadas e, com a morte de sua esposa Lara, ele tornou-se um velho frustado e amargurado, que flerta com grupos políticos extremistas numa tentativa de deter o declínio que ele observa no padrão de vida kriptoniano. Isso o faz entrar em conflito com seu filho, que é mais liberal, deixando-os mais afastados. Vemos eventos virem à tona quando descobrimos que a sobrinha de Kal-El, Kara, foi atacada e ferida por membros armados de um grupo que apoia a abolição da Zona Fantasma e que nutrem um rancor contra qualquer parente, mesmo que remoto, daquele que é o inventor do aparelho que abre passagem para a Zona Fantasma: Jor-El. Alarmado com esses acontecimentos, vemos Kal-El e sua família tentando sair de Kriptonópolis em meio a um cenário de manifestações iluminadas por tochas, tumultos e demonstrações públicas, enquanto Kripton começa a se dirigir cada vez mais rápido para o colapso social. Finalmente, Kal não pode mais aceitar os termos de sua fantasia, e nem de longe está preparado para pagar o preço necessário para sustentá-la. Ele liberta-se da ilusão e agora encontra Batman prisioneiro do parasita, e as duas linhas narrativas tornam-se uma só.


O passo seguinte foi integrar esta seqüências num todo coerente, e elas foram conduzidas em paralelo na primeira metade das 40 páginas do livro. Isso significa que tenho de alocar algumas páginas para a fantasia do Super-homem e algumas páginas para as cenas dentro da Fortaleza, com Batman e Companhia, decidindo grosseiramente o que transcorre em cada página, sem deixar de fazer de cada página esboçada uma cena completa em si. Eu sabia que tudo isso deveria partir do início da revista, cobrindo as primeiras 25 páginas ou algo assim. Isso significava que eu deveria intercalar pontos de junção bem cronometrados entre as duas linhas narrativas, tentando conduzí-las até o final e fazer isso de maneira grosseira, tudo ao mesmo tempo. Para estabelecer um bom início, eu tinha uma escolha imediata: se eu deveria iniciar com a chegada dos heróis visitantes ou jogar o leitor diretamente na ilusão do Super-homem, sem explicações. Pareceu-me mais adequado que essa última direção iria surpreender e intrigar o leitor. Escolhi começar com uma cena com a Kripton ilusória do Super-homem, através de imagens induzidas pelo parasita. Com sorte, o efeito sobre o leitor poderia ter sido algo como Hã? Onde estamos? Em Kripton? Mas Kripton explodiu. Essa história ocorreu no passado? Não! Há Kal-El, e ele apresenta a mesma idade que ele tem agora, mas parece um pouco diferente. Ele parece comum, e ele usa óculos e tem um trabalho comum e uma esposa e dois filhos. O que está acontecendo aqui? Se essa primeira página for suficientemente intrigante, então você começou a percorrer um longo caminho adiante para fisgar o leitor.

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Tendo estabelecido a situação básica sobre esta Kripton Imaginária, nós viramos a página e partimos diretamente para o círculo ártico, com achegada dos três visitantes para o aniversario do Super. Enquanto eles têm um diálogo que seja, espero, natural e ainda assim casualmente descritível, eles caminham em direção à fortaleza. Como estou ciente que as páginas dois e três estão respectivamente do lado esquerdo e do lado direito, pode ser vantajoso guardar algum surpresa de grande impacto visual na página quatro, que o leitor não verá enquanto não virar a página. Assim, a página três termina com uma implicação. Tendo entrado na fortaleza, os três heróis são vistos com uma expressão de surpresa e terror crescente, olhando na direção de algo que encontra-se fora do painel. Isso sugere algo suficientemente intrigante para fazer com que o leitor passe para a página quatro. Como há um anúncio de passagem de cena imediatamente após a página quatro e como eu quero muito ter um grande quadrinho de página inteira, tanto para mostrar o título da história quanto para sugerir uma premissa com algum peso e importância e para significar que a história começou propriamente, a página quatro é impactante: o Super-homem encontra-se em pé e imóvel com uma abominável massa preta e vermelha crescendo em seu peito. Com um pouco de sorte, o leitor estará intrigado por esta inusitada situação para acompanhar a história até a página cinco, do outro lado da folha, onde temos uma página mostrando as reações dos amigos do Super, enquanto tentam descobrir o que há de errado com seu camarada. Esta página termina com um close-up frontal da face do Super-homem, enquanto Batman encontra-se atrás dele, observando que ele está em mundo só seu. Movemos nossos olhares para o topo da página seis. Aqui, temos uma imagem daqueles ecos das imagens do quadrinho anterior. Uma vez mais, Kal-El está de frente para nós, mas agora estamos de volta à Kripton dos sonhos do Super-homem, literalmente no "mundo só dele". Assim, a coincidência das imagens e a ironia da observação de Batman fornecem uma transição suave e semi-significativa entre as duas cenas sem perder a atenção do leitor (N. do T.: Esse recurso é característico de Moore, usando inúmeras vezes por ele, principalmente em Batman: A Piada Mortal e Watchmen). Mostramos na página seis o relacionamento entre Kal-El e sua esposa com algum grau de detalhe emocional e usamos seus diálogos para esclarecer o leitor um pouco mais sobre a situação deles. A página termina com a imagem do anoitecer no prédio onde moram, contra um belo céu noturno azul e róseo, imediatamente após Kal ter mencionado que ele irá ver seu pai no dia seguinte.


Viramos a página e temos a visão de um outro prédio kriptoniano, desta vez contra um céu matutino vermelho, amarelo e laranja. Obviamente, ainda estamos em Kripton e, obviamente, esta é a manhã do dia seguinte. Vemos três páginas de confronto entre Kal e seu amargurado pai, terminando na página nove com Jor-El, extravasando sua raiva fútil em uma das árvores ornamentais de vidro em seu terraço, despedaçando um petrificado passarinho de vidro, congelado no ato de alimentar seus filhotes. A última visão que temos é a da cabeça despedaçada do pássaro de vidro, com uma minhoca de vidro pendendo em seu bico. Isso mostra uma imagem simbólica do rompimento do relacionamento entre pai e filho de Kal-El e seu pai, que é acompanhada paralelamente com uma esclarecedora legenda afixada ao quadrinho, que é um tipo de fala expandida do quadrinho seguinte, onde lemos, Na verdade, é apenas uma questão de unir todas as peças. Esta sentença na verdade relaciona-se com o comentário do Batman através do processo dedutivo usado para descobrir o que está de errado com o Super-homem, mas também tendo uma aparente relevância à imagem do pássaro quebrado, transformado em pedaços que são impossíveis de serem colados. Isso nos leva à página dez, que começa uma seqüência de quatro páginas, nas quais Mongul chega e começa uma luta entre ele e a Mulher Maravilha. Essa seqüência termina com Mongul dizendo, Obrigado, acho que você respondeu minha pergunta, enquanto atinge a Mulher Maravilha com um Super-homem imóvel ao fundo, acompanhando tudo com seu olhar cego. Na página seguinte, voltamos à Kripton, em um hospital. À frente, temos Allura, a mãe da Supergirl. Ao fundo, mais ou menos em uma posição relativa às figuras a frente, como se estivesse em um quadrinho anterior, Kal-El entra no hospital da sombria cidade lá fora. Allura, desesperadamente inquirindo uma enfermeira sobre a condições de sua filha, diz, Eu lhe fiz uma pergunta. As cenas continua sendointercaladas de modo similar, indo e vindo por vários métodos até que alcancemos a página 25, com o despertar do Super-homem.


Tendo mapeado a primeira metade da história, fui capaz de ver quanto espaço eu teria de preencher com as coisas que aconteceriam até o fim. Sabia, por exemplo, que eu precisaria de uma boa e forte página final, , precedida por um par de páginas que seriam gastas com as conseqüências da ação e com o estabelecimento de uma atmosfera de retorno a normalidade e reflexão sobre as lições que tenhamos aprendido. Isso leva mais ou menos umas quatro páginas até o fim. Isso significa que as páginas de 26 a 36 serão deixadas para o clímax da batalha final entre o Super-homem e Mongul, que parece bem longa.


Usando os mesmo procedimentos brutos descritos anteriormente, pretendo transformar essa seqüência de ação de dez páginas em um interessante fluxo de eventos menores, com o Super-homem e Mongul se gladiando através do interior da fortaleza. Para isso dar certo, usei extensivamente como referência um esquema da fortaleza, que me foi emprestado por Dave "Fanboy" Gibbons. Eu sabia que o Super-homem seria o primeiro a encontrar Mongul na sala de armas, onde o gigante alienígena ainda espancava a Mulher Maravilha. Se Mongul atingir o Super-homem com força suficiente para arremessá-lo através do teto até os andares superiores, ele poderia acabar no zoológico alienígena, imediatamente acima. Digladiando-se ao longo do zoológico, eles poderiam chegar na sala de comunicações com seus arquivos de computador. Se nesse ponto eles se batem até serem arremessados através do piso e esparramarem-se no chão em frente a uma estátua gigante de Jor-El e Lara suspendendo o planeta Kripton entre suas cabeças. Este parece um bom lugar para concluir a batalha, com os ecos de um mundo que Super-homem passou a primeira metade da história imaginando. Enquanto isso se desenrola, acompanhamos os progressos de Robin enquanto imagina o que fazer com o organismo retorcido que ele retirou do Batman. Ele segue os rastros de destruição que Super-homem e Mongul deixaram para trás até que, finalmente, ele forneça o elemento vital necessário para deter Mongul. Novamente, tudo foi feito naturalmente, conduzindo ambas as linhas narrativas (Robin/parasita e Super-homem/Mongul) ao seu final, simultaneamente.


Mongul é finalmente subjugado pelo organismo com o qual pretendia prender o Super-homem. Após três páginas de retorno a normalidade, nas quais os heróis relaxam e conversam após a batalha, temos Batman presenteando [o Super-homem] com sua rosa "Kripton" cultivada especialmente para a ocasião, mas que foi esmagada durante o confronto. Super-homem aceita calmamente a morte da rosa, bem como a morte de Kripton, fornecendo um ponto emocional perfeito, o qual leva a história ao seu fim com a idéia central explorada e parcialmente resolvida. A página final, espelhando a primeira página, nos dá um vislumbre da terrível e sangrenta realidade onírica conjurada por Mongul sob influência do parasita, mostrando que ele está mais desesperançosamente preso dentro de seus próprios sonhos do que o Super-homem poderia estar com os seus, e providenciando um contraponto ao eventual sucesso do Super-homem e seu próprio e eventual fracasso.


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Certo. Agora temos nossa história completamente dissecada, com um entendimento de mais ou menos o que exatamente acontecerá em cada página, e também um entendimento de como todos os diferentes elementos que estamos considerando irão funcionar entre si para formar o todo. As únicas etapas restantes são processos finais puramente criativos de se chegar à linha exata que contém tanto a narrativa verbal quanto a narrativa visual.


A aplicação da melhor estratégia de "forjar palavras" é importante, pois o uso de uma linguagem volumosa ou enfadonha ou sem vida contém uma enorme chance de distrair o leitor da história que você está tentando contar. Você deve aprender como usar as palavras da melhor maneira possível, uma vez mais, aplicando pensamentos reais aos processos envolvidos. O que, por exemplo, separa uma sentença interessante de outra enfadonha? Isso não é o mais importante... Um bom escritor pode pegar o assunto mais mundano que existe e torná-lo interessante. É alguma coisa na disposição das palavras que dá significado à toda a estrutura, provocando uma poderosa impressão no leitor. Ao observar os trabalhos dos escritores com os quais você tem algum interesse - seja um poema ou um romance ou uma história em quadrinhos - é possível ver certos padrões que foram discutidos anteriormente. O elemento-surpresa é, com freqüência, a coisa mais interessante em um texto; o uso surpresa de uma palavra, ou uma justaposição surpreendente de dois conceitos interessantes. Usando um exemplo que eu pessoalmente gosto muito, mas que a maioria das pessoas parecer achar que é a pior coisa que escrevi, há uma linha em O Monstro do Pântano sobre, "nuvens parecendo pedaços de algodão ensangüentados tapando inutilmente os pulsos cortados do céu". Essa foi uma descrição de um pôr-do-Sol, e a intenção era descrever algo de beleza inquestionável em termos mais horríveis e sórdidos e depressivos. Achei que a justaposição de duas sensações estimularia e entreteria o leitor mas, aparentemente, para um monte de pessoas, ela cruzou a linha da auto-paródia. Pode parecer um mau julgamento de minha parte, mas provavelmente eu o faria de novo e de novo até o fim de minha carreira. Criar uma simples história requer que você faça milhares e milhares de pequenas decisões criativas baseadas em qualquer teoria que você aprecie e a aplicação de grandes doses de intuição. Por mais que eu quisesse que fosse de outra forma, não há ninguém que esteja certo o tempo todo, e se você comete um engano, a única coisa que você pode fazer é analisá-lo, ver se você concorda com seus críticos e responder de acordo. Deixando reações adversas de lado, ainda acredito que o fator surpresa por trás de uma sentença seja o melhor caminho, mesmo que a sua execução deixe a desejar.


Tenha consciência do ritmo que você impõe aos seus textos e do efeito que ele terá no tom de sua narrativa. Sentenças longas e plenas, com grandes quantidades de imagens detalhadas, provocarão um efeito. Sentenças curtas e limitadas, mostradas com a velocidade de uma bala, terão outro efeito. Às vezes, repetir um ritmo verbal é quase como se fosse música, onde várias frases musicais são repetidas continuamente para emprestar-lhe sua estrutura. Cada palavra-ritmo tem seus próprios atributos, e há um infinito número de ritmos diferentes a serem descobertos por alguém com imaginação suficiente.


Cada diálogo também deve ter seu ritmo próprio e individual, dependendo de qual personagem irá dizê-lo. Uma excelente regra prática é ler o diálogo em voz alta e ver se ele soa natural o bastante para ser usado em uma conversa com seus amigos sem que fiquem olhando para você de um jeito estranho, imaginando porque você está falando tão engraçado. A maioria dos diálogos apresentados nos quadrinhos não passam nesse teste. Lidos em voz alta, soam falsos e ridículos. Ao desenvolver um ouvido para os diálogos e uma consciência dos princípios envolvidos, será mais simples evitar tal armadilha e produzir um intercâmbio de diálogos ou um monólogo em primeira pessoa que sejam autênticos e convincentes e naturais.


A narrativa visual de uma história em quadrinhos é simplesmente o que se desenvolve nas imagens. Para isso, é vital que o escritor pense visualmente e tire vantagem de quanta informação é possível transportar para dentro de uma imagem de forma casual e sem exageros, seja um painel com estranhos detalhes ou uma legenda com longas descrições. Mesmo se sua habilidade como desenhista seja tão pequena quanto a minha, é mais fácil desenvolver uma sensibilidade visual habituando-se a fazer um esboço grosseiro de cada página antes de escrevê-la, mostrando os elementos visuais que serão mostrados em cada quadrinho. Você irá obter uma idéia de o que é possível mostrar em cada quadrinho, e terá alguma noção de como a página completa funcionará: há muitos imagens de close-ups de rostos ou de corpo inteiro? Será que todas as imagens são vistas pelo mesmo e maçante ângulo? Poderia a imagem onde você quer estabelecer uma sensação de ameaça ser melhor apresentada se ela fosse vista através de um ângulo superior, para que pudéssemos captar uma sensação quase subliminar de alguma coisa olhando sobre os inocentes personagens abaixo dela, pronta para atacar? Poderia essa seqüência de quatro quadros que aproxima-se lentamente dos olhos do personagem tomar muito espaço e desbalancear a página? Não seria melhor apresentar essa seqüência com apenas três quadros, e usar o quadro restante para mostrar algo mais? Será que não há informação demasiada nesse quadrinho? E se ele tivesse espaço suficiente para ser dividido em dois outros quadrinhos, isso facilitaria a sua leitura? Dicas desse tipo permitirão ao artista entender o efeito que você irá experimentar e o propósito por trás disso, o qual ele usará como um ponto de investida para qualquer força visual que ele queira adicionar, tendo em mente que o artista terá quase que certamente uma sensibilidade visual cinqüenta vezes mais intensa e experiente do que a sua.



Além disso, a habilidade de pensar visualmente lhe permitirá planejar os numerosos e pequenos elementos subliminares que aumentarão enormemente o divertimento periférico do leitor pela história. Com um pouco de imaginação, é possível inserir pequenos eventos que ocorrem em primeiro e segundo plano em uma imagem, aparentemente sem nenhuma relevância com a história subliminar, mas reforçando as idéias da própria narrativa. Será ótimo se conseguir apresentar furtivamente seu ponto de vista sem ser enfadonho ou agressivo. Por exemplo, em uma história de minha autoria chamada Vigilante, feita em duas partes, há uma cena onde Vigilante e Fever estão dirigindo pela cidade enquanto Fever dá uma lição de moral improvisada e de algum modo abrangente sobre os males da autoridade e seus efeitos sobre a sociedade. Como o carro move-se através da cidade, pedi a Jim Baikie para incluir algumas pequenas e discretas cenas em segundo plano mostrando autoridades em ação. Em um quadrinho, um oficial de polícia adverte alguns punks de rua sentados no capô de um carro. Em outro quadrinho, uma mãe grita furiosamente com sua relutante e birrenta filhinha. Em outro, um padre aponta seu dedo para uma velhinha. Todos esses detalhes incidentais, irrelevantes por si só, adicionam um tipo de ressonância extra às coisas que são ditas nos quadrinhos, aumentando a sensação de reverberação da história.


Basicamente, é isso. Tendo terminado sua história, volte e veja se há alguma coisa que necessite de mudanças, e faça os últimos ajustes necessários para atingir o grau exato de lapidação. Suas histórias em quadrinhos estão agora tão boas quanto lhe é possível , e você irá esperar por longos meses para ver o que os leitores acharam dela, o que geralmente é um tempo muito chato e irritante. Você encontrará a si mesmo experimentando violentas mudanças de humor, onde alternadamente estará considerando essa HQ como o melhor trabalho que você já fez e depois concluirá que é, do início ao fim, uma besteira tão ruim e embaraçosa que provavelmente marcará o fim de sua carreira, caso alguém realmente comprometa-se em lê-la. Isso é uma neurose irritante mas, de minha parte, acho que se me tornasse muito envolvido com uma história após fazê-la da melhor maneira que pudesse, eu me encontraria confinado a uma preocupação obsessiva até vê-la nas prateleiras das Comic Shops e perceber que mais ansiedade seria inútil.


Relendo o que foi dito até aqui, tenho a sensação de ter me desviado de todas as situações pertinentes e falhado em explicar as coisas tão claramente quanto eu gostaria. Isso porque o campo da escrita, como qualquer trabalho no qual você dedica-se completamente, é tão amplo e complexo para aprofundar-se que mesmo um cansativo discurso como esse pode apenas começar a arranhar sua superfície. Há coisas que omiti com essa pequena explanação, mas espero que, em última análise, ao menos ela possua alguma coisa que os aspirantes a escritores sejam capazes de usar. Se não, espero que o desgosto e o tom desconexo desse texto sirva como um terrível alerta para demonstrar o que essa bizarra e obsessiva profissão faz com seu cérebro. Os tímidos não necessitam se aventurarem até aqui. No mais, espero que esse mapa toscamente esboçado ao menos permita que vocês evitem o piores percalços e remendos e armadilhas e encontrem uma carreira tão emocionante e intelectualmente recompensadora quanto a que estou usufruindo atualmente.
Alan Moore, abril de 1988.
PARA SABER MAIS:
  • O site do escritor J. M. Trevisan também apresenta a primeira parte desse texto de Moore, com uma excelente tradução de ..., muito mais interessante por apresentar preciosos cometários que eu, por não possuir a experiência e astúcia necessárias, não adicionei em minha tradução. Espero que as partes 2 e 3 sejam logo divulgadas (e comentadas) por ele.

  • Procure também o excelente Como Escrever HQ, de Gian Danton, na seção de virtualbooks do site do Terra.

  • Por fim, a TopShelf prometeu uma versão atualizada desse pequeno e precioso manual de Alan Moore. A edição trará ilustrações de José Villarubia.

Versão em animação da hq Para o homem que tem tudo

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