sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Escrever um rosto para os deuses


Como nascem os mitos






Reinaldo José Lopes

Hoje, 3 de janeiro, é o aniversário de J.R.R. Tolkien (1892-1973), o autor de O Senhor dos Anéis e um dos responsáveis por criar a literatura de fantasia moderna. Durante a maior parte de sua vida, porém, o trabalho principal de Tolkien foi como pesquisador e professor da Universidade de Oxford, trabalhando como filólogo ( uma espécie de arqueólogo das palavras), estudando formas antigas do inglês e de outras línguas germânicas e as obras literárias que acompanhavam esses idiomas. Nada melhor, portanto, do que marcar a data com as reflexões teóricas do britânico sobre como nascem os mitos. O trecho abaixo vem do ensaio “On Fairy-Stories”, que eu tive o prazer de traduzir durante a minha dissertação de mestrado na USP.

“Em certa época era a visão dominante que toda matéria do tipo [mitológico] era derivada de mitos da natureza. Os deuses do Olimpo eram personificações do Sol, da aurora, da noite e assim por diante, e todas as histórias contadas sobre eles eram originalmente mitos (alegorias teria sido uma palavra melhor) das mudanças e processos elementais maiores da natureza. Épico, lenda heroica, saga etc. localizavam então essas histórias em lugares reais e as humanizavam ao atribuí-las a heróis ancestrais, mais poderosos que homens e contudo já homens. E finalmente essas lendas, diminuindo, tornavam-se contos folclóricos, Märchen [contos de fadas, em alemão], histórias de fadas, contos de ninar.

Essa pareceria ser a verdade quase de ponta-cabeça. Quanto mais perto o assim chamado mito da natureza, ou alegoria dos grandes processos naturais, está de seu suposto arquétipo, menos interessante ele é, e de fato menos é um mito capaz de lançar qualquer iluminação que seja sobre o mundo. Vamos assumir para o momento, como essa teoria assume, que nada realmente existe de correspondente aos deuses da mitologia: nenhuma personalidade, apenas objetos astronômicos ou meteorológicos. Ora, então esses objetos naturais podem apenas ser adornados com um significado e uma glória pessoal por um dom, um dom de uma pessoa, de um ser humano. Personalidade só pode ser derivada de uma pessoa. Os deuses podem derivar sua cor e beleza dos altos esplendores da natureza, foi o Homem que as obteve para eles, abstraiu-as de Sol e Lua e nuvem; sua personalidade eles a obtêm diretamente do Homem; a sombra ou brilho de divindade que está sobre eles, eles a recebem através do ser humano do mundo invisível, o Sobrenatural. Não há distinção fundamental entre as mitologias superiores e inferiores. Seus povos vivem, se vivem de algum modo, pela mesma vida, tal como no mundo mortal vivem reis e camponeses.

Tomemos o que parece um caso claro de mito da natureza olímpico: o deus nórdico Thórr. Seu nome é Trovão, de que Thórr é a forma nórdica; e não é difícil interpretar seu martelo, Miöllnir, como relâmpago. Contudo, Thórr tem (até onde nossos registros tardios mostram) um caráter, ou personalidade, muito marcados, que não podem ser encontrados no trovão ou no relâmpago, mesmo que alguns detalhes possam, de certa maneira, ser relacionados a esses fenômenos naturais: por exemplo, a barba vermelha do deus, sua voz forte e seu temperamento violento, sua força desastrada e esmagadora. Mesmo assim, é fazer uma pergunta sem muito significado se inquirirmos: o que veio primeiro, alegorias da natureza sobre trovão personalizado nas montanhas, rachando pedras e árvores; ou histórias sobre um fazendeiro irascível, não muito esperto, de barba ruiva, de uma força além da medida comum, uma pessoa (em tudo salvo na mera estatura) muito semelhante aos fazendeiros do Norte, os baendr [camponeses] por quem Thórr era especialmente amado? Para uma imagem de tal homem pode-se sustentar que Thórr tenha “diminuído”, ou dela pode-se sustentar que o deus tenha sido aumentado. Mas duvido que qualquer uma das visões esteja certa; não por si sós, não se você insistir que uma dessas coisas deve preceder a outra. É mais razoável supor que o fazendeiro apareceu no exato momento em que o Trovão ganhou uma voz e um rosto; que havia um rosnado distante de trovão nas colinas toda vez que um contador de histórias ouvia um fazendeiro com raiva.”

Feliz aniversário, professor Tolkien!