A melhor maneira de divulgar seus contos
1 ) Esses dias um amigo meu me
dizia que não se lembrava de nenhum grande escritor cuja carreira se
baseasse unicamente em contos. A maioria dos nomes que imediatamente
associamos ao conto, segundo ele, é de cultores de alguma outra prática
literária. Borges e Poe também eram poetas e ensaístas, Tchekhov e Bábel
dramaturgos, Otto Lara e Walsh eram jornalistas. Os russos (Tolstoi,
Dostoievsky, Turguêniev), os americanos (London, Faulkner, Hemingway,
Fitzgerald), os brasileiros (Machado, Rosa, Lima Barreto, Clarice), e
muitos outros (Cortázar, Calvino, Wells, Kafka, Woolf, Flaubert), todos
eram também romancistas. Deve existir por aí um exército de contistas
“puros”, eu mesmo conheço um bocado, mas estávamos falando dos notáveis,
aqueles que aparecem em quase todas as listas e antologias. Só me
lembro de três: O. Henry, Schulz e Munro, que talvez tenham deixado por
aí cartas ou diários, não necessariamente com intenções de publicar.
2) No caso da maioria dos romancistas
citados acima: se falamos de contos em geral, rapidamente nos lembramos
deles; se falamos deles, rapidamente nos lembramos de seus romances.
Seus contos só aparecem adiante. O conto não vende, e editor nenhum quer
publicar, ainda mais se o autor é inédito; uma regra boba dos mercados
editoriais. Talvez seja esse o motivo pelo qual os contistas se dedicam
também a outras atividades. Só que mais bobo ainda é encarar o conto
como um treinamento para obras maiores. Um treinamento (em nosso caso,
rascunhos e primeiras versões) é aquilo que não se mostra; os contos são
obras definidas. Quem os lê não espera ali um preparo para algo maior; o
conto não é um teaser: deve funcionar por si só.
3)
Dizem que um escritor chamado Paustovsky, ao visitar Isaac Bábel, se
espantou com uma pilha de manuscritos: “Finalmente escrevendo um
romance?”, perguntou Paustovsky. “São os rascunhos de um conto”,
respondeu Bábel. Não estavam ali todas as versões; eles contaram apenas
vinte e duas. Ao leitor, entretanto, só interessa a versão final –
treinamento é cada versão que ele jogou fora.
4) O conto geralmente é esquecido com
mais facilidade. Primeiramente, pelo leitor. Uma mera questão de
formatação – é mais difícil se lembrar de todas as 50 narrativas breves
de um volume de Lydia Davis que de um romance do mesmo tamanho, com seus
personagens definidos e seu único enredo. Lemos um conto numa revista
ou antologia, junto com dezenas de outros textos, e naturalmente nos
esquecemos de alguns. O livro como um todo é mais resistente.
5) Em seguida, pela História. As antologias de Borges, Hitchcock e Bráulio Tavares estão forradas de grandes contos desconhecidos. O romance Lolita
foi inspirado num conto homônimo de um autor alemão sem muita fama. O
outrora famoso contista e poeta Delmore Schwarz é bem menos conhecido
que os romancistas que ele influenciou. Um bom escritor poderá fazer uma
carreira baseada em um único romance, mas dificilmente conseguirá
forjar uma carreira baseada em um único conto, ainda que estejamos
falando apenas de obras-primas. Você compraria um livro com (ou por
causa de) apenas um conto?
6) De acordo com Borges, não sem uma
grande dose de ironia: “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor
extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma ideia cuja
perfeita exposição oral cabe em poucos minutos”. O trecho está no
prólogo à primeira parte de Ficções. Borges inventou muitos romances, mas não escreveu nenhum deles.
7) Um romance é mais difícil de escrever que um conto. Sempre achei isso muito óbvio, e nunca entendi porque tem gente que afirma que não. Poderão discordar comparando O Jogador
de Dostoiévsky, escrito num mês, com o tal conto de Bábel e suas vinte e
duas versões; mas são exemplos extremos, escolhidos cautelosamente.
Quantos romancistas não arrancam seus cabelos diariamente, durante anos,
na criação de uma única obra? Quase todos. Dá muito mais trabalho fazer
vinte de versões de um romance. Do mesmo modo, é mais difícil criar um longa-metragem que um curta, uma sinfonia que uma sonata, uma graphic novel que uma tirinha. É mais difícil simplesmente porque é mais longo.
8)
Anunciá-lo, porém, parece interferir diretamente na autoestima de
alguns realizadores das formas breves. Só que dizer que o romance dá
mais trabalho não é de maneira alguma declarar superioridade; o que
conta é a forma final. Não troco “Funes, o Memorioso” por muitos
romances que devem ter dado um trabalho danado pra escrever. Acreditar
que o mero gênero literário é indicador de superioridade é o mesmo que
atribuir valor a um livro apenas porque levou muito tempo para ser
escrito, ou ainda que dizer que um escritor é bom porque escreve com
velocidade.
9) Não é incomum encontrar, em qualquer área,
pessoas que atribuem autenticidade ao trabalho do amador, à obra feita
nas coxas, sem nenhuma justificativa. No mesmo caminho, muitos estranhos
me enviam contos, ensaios ou poemas sem eu pedir, ou os publicam por
conta própria, anunciando de antemão que não foram revisados. Isso soa
como uma defesa antecipada contra as críticas inevitáveis. Se não foi
revisado, é porque não está pronto. Até sair algo bem feito, é muito difícil. E se não está pronto, por que enviar aos outros? Pior ainda, por que publicar?
(Essas últimas notas foram levemente baseadas nesse ótimo texto de Sérgio Rodrigues e nesse
de Carol Bensimon. Aos que discordam, sugiro fazer o teste empírico:
escreva um conto e um romance, o melhor possível, depois reescreva tudo e
revise o quanto for necessário. Por fim, me diga qual deu mais
trabalho).
10)
Machado de Assis escreveu 218 contos (publicou em livro “apenas” 76),
sendo os mais conhecidos “A cartomante” e “A missa do Galo”. Faulkner
escreveu 125 contos. O mais famoso é “Uma Rosa Para Emily”. Agora me
pergunto: esses contos seriam tão lidos se seus autores também não
tivessem escrito obras-primas do romance? Dom Casmurro traz público para “O Alienista”. Luz em Agosto sustenta Lance Mortal.
Se não fossem seus clássicos, o irregular livro de contos policiais de
Faulkner provavelmente estaria esquecido. É por isso que as grandes
editoras só publicam volumes de contos de escritores já estabelecidos. É
preciso se tornar Salinger antes de conseguir publicar Nove Estórias.
10)
As melhores listas são feitas à margem. Os centros tendem a
supervalorizar o que lhes é próprio. Uma lista francesa geralmente terá
muitos franceses; uma alemã, muitos alemães; uma lista norte-americana
ignorará todos os estrangeiros, quando não for inevitável. Já a lista da
Bravo! “100 contos essenciais da literatura mundial” tem russos, ingleses, italianos, americanos, franceses, argentinos, árabes, alemães, gregos, japoneses e até brasileiros. Na
lista estão Xaiver de Maistre, Buzzati, Yourcenar e Schitzler, autores,
cada um, de um único romance realmente famoso, tanto que eu nem sabia
que escreviam contos. Se não fossem os romances que lhes deram fama,
estariam eles na lista? Não podemos afirmar, mas W. W. Jacobs escreveu
um grande conto chamado “A Pata do Macaco”, que está na Antologia de Borges/Casares/Ocampo, mas em nenhuma outra lista que eu conheça. Apenas com seus contos, sem o Pedro Páramo, como nos lembraríamos de Juan Rulfo?
11) “Antologia”
e “coleção” são palavras dúbias. Vamos considerar aqui “antologia” como
a reunião de contos de autores diversos, e “coleção” como reunião de
contos de um mesmo autor. As coleções podem ser organizadas de duas
maneiras: os contos num volume sem correlação interna e num volume
fechado, com uma ordem e uma unidade estabelecida. Os contos de Tchekhov
variam de acordo com a edição, e tenho “A Dama do Cachorrinho” em duas
coleções completamente diferentes, ambas com esse título. Já em todos os
volumes de Ficções, os contos estão na mesma ordem e quantidade. Javier Marías publicou de antemão todos os seus contos, porém Quando fui mortal
tem uma unidade bem particular, que não muda de uma edição para outra.
Otto Lara Resende não publicou antes nenhum dos contos de Boca do Inferno,
que foi planejado para funcionar como um todo, em livro, e obedece
a uma unidade rígida – eles não devem ser lidos isoladamente. Os contos
de A Visita Cruel do Tempo,
de Jennifer Egan, podem ser lidos separadamente, mas juntos formam um
romance. Os livros de contos de detetive de Walsh, Borges, Chesterton e
Conan Doyle não somente seguem a uma unidade, como também seus
principais personagens são os mesmos. Já de Poe, apesar da manutenção do
título, nunca vi duas edições de Histórias Extraordinárias em que o índice se repete. Eu tendo a gostar mais das coleções planejadas. Minhas favoritas quase sempre têm um tema unificador muito claro: Cathedral, de Carver (casamento); As Cosmicômicas, de Calvino (axiomas da ciência); Boca do Inferno, de Otto Lara Resende (perversidade com/de crianças); Sagarana, de Rosa (sertão mineiro); Adeus, Columbus, de Roth (judeus da costa leste); Todos os fogos o fogo, de Cortázar (nem sei explicar, mas tem); Três Contos, de Flaubert (idem); Vidas Imaginárias, de Schwob (a história do mundo); O Livro de areia, de Borges (história da literatura e gaúchos); Ao longo da linha amarela, de João Filho (o delírio soteropolitano); Perus, Malagueta e Bacanaço, de João Antônio (os subúrbios de São Paulo).
12) Ando
pensando bastante sobre o conto porque finalmente estou escrevendo
aquele livro que foi aprovado no edital. Tenho já um livro de contos
pronto (abaixo falo mais dele), e fiz um projeto em que reuni os
melhores contos soltos que tinha e tentei unificá-los. Agora, com o
projeto em andamento, percebi que alguns deles simplesmente não cabem no
contexto geral. Estou escrevendo outros, para completar a coleção, e
estou lendo contos obcecadamente (esses livros das fotos, entre
outros). Antes mesmo de aprovar meu projeto, tinha enviado sem muitas
expectativas um conto para a belíssima revista Flaubert. Acabei
publicando outro conto
lá, e nem me lembrava mais desse. O conto se chama “Suspiros que cortam
o ar”, e é o primeiro de um livro sobre cangaceiros, rixas, vinganças,
bangue-bangue, essas coisas, que escrevi já faz algum tempo. É um de
meus contos favoritos desse livro. Ele saiu exatamente essa semana,
quando estou mergulhado em meu projeto, e já tinha planejado estas notas
sobre contos. Foi uma boa surpresa. Ele pode ser acessado neste link (página 65).
Agora,
respondendo à dúvida do título, a melhor maneira de divulgar seus
contos é publicar antes um romance. Mas se você já publicou um romance,
não faz mais sentido querer divulgar seu último conto com tanto afinco,
pois o romance terá mais alcance e urgência. Provavelmente deu mais
trabalho de escrever. Então qual a melhor maneira de divulgar seu
romance?
Oras, publicar um conto na New Yorker.
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