sábado, 17 de julho de 2021

Escrever

Tezuk IA

 

 

Ato 1

O protagonista vive como um pássaro num país onde pode-se usar magia.

Ele entra em confronto com um médico que usa poderes sobrenaturais,

Ele acaba envolvido com a situação do médico.

 

 

A história se passa no “Agora” em “Um país onde pode-se usar magia” e o mundo é de “ação no meio termo entre realidade e ficção que tem tanto trevas quanto luz”. O personagem é um menino, cuja afiliação ou raça é “pavão”, cujos atributos são “coração partido” e cuja temática é “sono criogênico + futuro + invasão + força de defesa”. O primeiro ato é esse acima.

É uma das 129 histórias geradas pela inteligência artificial do Projeto Tezuka, iniciativa da empresa japonesa Kioxia. Os cientistas do projeto alimentaram uma IA com mais de 100 HQs do deus do mangá Osamu Tezuka (1928-1989) – criador de Astro Boy, Dororo, Buda, Fênix, Ayako, muitos etc. – e pediram para o computador criar um mangá HQ tezukiano inédito.

Funcionou? Mais ou menos. A IA chegou no que povo da IA chama de gibberish, ou besteira sem sentido. Mas que, mesmo sem sentido, tem alguma coisa de Tezuka. É o gibberish que se vê nessas paródias pela internet tipo “forcei um bot a assistir mais de mil horas de novela da Globo e depois pedi que ele escrevesse uma novela”.

Mas, no caso do Projeto Tezuka, a proposta era séria. Das 129 histórias que o computador gerou, 20% eram aceitáveis. Uma já foi publicada. Chama-se “Phaedo”. Estrela um indigente com olho biônico que tem que achar um cientista desaparecido e saiu em fevereiro deste ano na Morning, uma das principais revistas de mangá do Japão. Dá para ler em japonês ou inglês aqui.

Além do gibberish que rendeu a trama, a IA também desenhou o protagonista do mangá. A partir de um banco de dados com vários rostos por Tezuka, mais uma importação de outra IA que havia aprendido a identificar (e gerar) rostos, o computador desenhou o Phaedo do título. Há um vídeo do braço robótico traçando Phaedo. Tem algo de Black Jack, o médico renegado de Tezuka.

Fora enredo e o primeiro desenho da personagem, o processo foi todo humano. Ainda não há tecnologia para gerar roteiros nem para desenhar um gibi – nem como Tezuka nem como ninguém. Isso não impediu que um engenheiro da Kioxia declarasse: “Não sei quando, mas tenho certeza de que, no futuro, a produção de mangás vai partir de IAs. Por exemplo: se você não gostou do desenvolvimento da história, você pode cooperar com a IA para criar uma história nova. Esse tipo de mangá vai virar coisa comum.”

Vai mesmo? Não só para ressuscitar autores como Tezuka – ou Eisner, ou Winsor McCay, ou Carlos Zéfiro –, mas para gerar tiras inéditas dos Peanuts, álbuns do Asterix, gibis da Mônica, um Batman que nunca se viu? Uma inteligência artificial vai fazer uma HQ do zero?

 

Resolvi perguntar a quem entende. O professor Ricardo Matsumura de Araújo pesquisa inteligências artificiais há vinte anos e é Diretor do Centro de Inovação em Inteligência Artificial da Universidade Federal de Pelotas. É a ele que eu recorro como revisor técnico quando traduzo os livros do Randall Munroe.

Para começar, Araújo me lembra que inteligência artificial não é um androide tipo os do Westworld, mas “coisas que aparecem como funcionalidades no Word e ninguém chama de IA.” Ele acha factível, por exemplo, que em breve um autor possa pedir a um recurso do processador de texto para verificar se o estilo de um roteiro está consistente entre cada parte, ou entre roteiros. Ou para gerar coisas aleatórias: "IA, me vê um nome de personagem consistente com minhas histórias passadas, mas que ainda não tenha sido utilizado".

Inteligências artificiais, atualmente, não desviam do que lhes é apresentado. Caso se queira fidelidade à amostragem de material com que a inteligência for treinada – como a obra de Tezuka, por exemplo – isto pode ser visto como vantagem. “Talvez a vantagem real de usar uma IA, com as tecnologias atuais, é ter uma fonte de inspiração, não muito diferente de como alucinógenos são citados como fonte de inspiração na história da música”, diz o pesquisador.

Um estimulante para a criatividade, então? A IA poderia ajudar um autor a conectar ideias aleatórias que ele levaria mais tempo para conectar sozinho?

“Não apenas aleatoriedade, mas uma aleatoriedade... dirigida, se faz sentido? Variações aleatórias em cima de algo. Penso que o artista, ao observar essas coisas meio abstratas e com pouco sentido, acaba se forçando a encontrar algum padrão e isso gera algo novo, que ele não teria pensado se não fosse exposto a este estímulo externo. E isso é muito próximo do processo criativo. Então sim, acho que a IA pode agir como um estimulante à criatividade.”

O Projeto Tezuka faz parte de uma investida de marketing maior chamada “Future Memories”, da Kioxia. A Kioxia é a antiga Toshiba Memory, multinacional de memórias para computador que busca o reposicionamento depois de se desligar do conglomerado Toshiba. No mesmo site do Projeto Tezuka há outras iniciativas relacionadas a inteligência artificial e miniaturização de memórias – até vídeo de visionários dizendo que, em 2050 , aquelas estantes de servidores nos data centers vão caber na nossa mão. Mais do que quadrinhos, o objetivo e todo o discurso em torno do Projeto é: marketing.

Mesmo sendo marketing, Araújo concorda com o cara que diz que IAs do futuro vão fazer mangás de cabo a rabo.

“Ao contrário de, por exemplo, dirigir um carro, criar um mangá é uma tarefa extremamente criativa. Mesmo algo básico, como manter a continuidade de uma história minimamente complexa, é algo que as melhores IAs atuais não conseguem fazer – e não sabemos como fazê-las fazer, não é uma questão de apenas adaptar o que temos. Criar e integrar roteiro com desenhos que expressam emoções, subtexto e afins, de forma competente, é algo muito distante das tecnologias atuais. Acho que trabalhos artísticos como esse estão entre os últimos que vão ser feitos por IAs competentes.”

E coisas menos criativas no processo de um quadrinho, como editar? No material de divulgação do Projeto Tezuka, o editor da revista que publicou “Phaedo” é questionado se uma inteligência artificial não poderia assumir seu trabalho no curto prazo. Surpreendentemente, ele diz que sim – mas ressalta que só ele pode ir no bar com os autores.

“Certamente corrigir texto, verificar estilo ou sugerir alterações mais em linha com algum público-alvo são coisas que uma IA pode assumir”, diz Araújo. “Mas exclusivamente como apoio, não substituindo a pessoa responsável. No futuro próximo é provável que um editor consiga usar IA para lidar com mais obras simultaneamente. Quem sabe isso leve a menos editores no total. Penso que estes vão passar mais tempo bebendo com os autores e menos tempo em tarefas repetitivas, o que definitivamente é algo positivo.”

E ele me ressalta um pressuposto básico, que precisa ser martelado: “No final das contas, inteligência artificial tem mais a ver com livrar as pessoas das tarefas que elas não querem fazer, para poderem se dedicar mais àquelas que elas querem. E IAs já vão com autores ao bar toda hora, ou pelo menos com aqueles que usam celular. Só não são boa companhia.”

O próprio Tezuka, quem sabe, faria bom uso de um assistente digital que fizesse a parte chata do trabalho. Máquina de produção, Tezuka publicou 150 mil páginas de quadrinhos em pouco mais de quarenta anos de atividade, sem falar no seu envolvimento com animação. Diz-se que suas últimas palavras foram “Deixe-me trabalhar” quando a enfermeira tentou tirar seu material de desenho do leito.

Eu não havia perguntado sobre autoria, mas Araújo comentou assim mesmo: ele sentiu que os artistas envolvidos no Projeto Tezuka foram deixados de lado. De fato, a divulgação ressalta o nome do autor falecido, com o cuidado de dizer, nestas palavras, que é um mangá inédito de Tezuka. De qualquer maneira, o crédito de “Phaedo” na revista Morning saiu como “Projeto Tezuka”. Shigeto Ikehara, o desenhista que trabalhou a partir do material gerado pela IA, aparece lá no final da divulgação.

“Não tenho dúvidas de que o trabalho de pegar uma ideia da IA e transformar em algo legível, esteticamente agradável e que alguém queira ler é enorme”, diz Araújo. “Talvez maior que criar algo do zero. No entanto, ao citar o processo como uma colaboração, acabam dando mesmo peso às partes. É claro que Kurihara, Mukaiyama, os criadores citados da IA, tiveram um esforço gigantesco no processo. Mas é interessante que os nomes deles apareçam antes dos artistas. Dá a impressão de que os artistas são como músicos genéricos que acompanham cantores famosos; trocá-los não faria diferença no produto final. Mas não é o caso, e 100% do processo criativo está na mão desses artistas.”

Ainda está. Por quanto tempo? “O ‘quando’ sempre é difícil de responder, mas vamos lá: mais duas gerações. Ainda não precisamos desincentivar ninguém a seguir carreira de quadrinista.”

 

 

(Artigo do Erico Assis no blog da CIA)