O altofalante emite dois toques anunciando a voz do condutor da composição. Próxima estação, tal.
O trem é um modelo dos anos 70, logo será substituído por um destes novos, com televisão, ar condicionado e mais espaço para se espremer em pé. Do escuro do túnel chegam rangidos de freios, soa doloroso, o peso das toneladas sobre os trilhos emite estrondos, passadas de gigante, marteladas. Todos ao redor adultos urbanos civilizados, indiferentes à canção grotesca cotidiana.
Na tal estação, moedas tilintam pelo chão e interrompem Maria por um momento, até que outros auxiliem a senhora diante da bilheteria. Ela continua seu caminho, passa pela catraca, também um modelo antigo, logo trocarão por outro tipo, mais difícil de burlar. A borboleta gira com força, bate ao final de sua volta com uma pancada surda. Maria pisa sobre o degrau da escada rolante, o corrimão de borracha corre – literalmente – criando um murmúrio próprio. Dentro da máquina, as engrenagens batem em um ritmo cardíaco. Ela desce os degraus, apressada, escuta a aproximação do trem e não quer perdê-lo.
Porém ainda há outro lance para vencer e não dará tempo. Pois quem estava na plataforma já ouviu. Ouviu o silêncio do túnel se cobrir pelo sopro das correntes empurradas pela composição, ouviu o vento velejando nas orelhas, a brisa sugerindo horizontes e mares na memória e não tumbas de concreto. Depois escutou o trinado da linha na promessa do trem, o grito histérico das rodas, a passagem cadenciada dos vagões em baixa velocidade, assovios, suspiros e chiados, água fria jogada em chapa quente, e as portas automáticas se abrem, ao correr rodopiante de carretilhas ocultas.
As pessoas viajam em seus mundinhos particulares, não escutam os passos dos passageiros, pequenas conversas, um choro de bebê, um espirro mais ali. A multidão reduz velocidade quando se aglomera diante da escadaria, as solas dos pés chiam no chão aguardando sua vez de subí-la. E chiam novamente sobre os degraus, cada qual em seu compasso, mas ao ouvido soa um único chocalho calmo.
Ela para de correr, um pouco porque o trem embaixo já emitiu o sinal de fechamento das portas, outro tanto porque os passageiros se esparramam a frente e eliminam qualquer chance de corrida. Maria conforma-se, mas bufa um muxoxo entre lamento e revolta. Desce um novo lance de escada rolante, e distrai-se com o rebanho em passo de marcha mansa, quase uma invasão tranquila avançando sobre a escadaria ao lado. Maria observa João, seu rosto lhe é familiar, mas o contexto errado atrapalha o reconhecimento.
Maria se recorda de João, tempos de colégio, namoros imaginados que nunca se realizaram, e lhe pareceu um sinal, um sinal de como as coisas deveriam ser.
Ela se volta e grita “João, João”, mas ele segue reto, sem olhar para trás, embalado na canção. Maria ficou parada ao pé da escada vendo-o subir, cogita uma outra tentativa, suportando a mistura de vergonha e humilhação.
Maria desiste, está atrasada para a audição e, afinal, são outros tempos. Tempos de ir em frente.
(foto: escada do Convento de Cristo (Tomar))