domingo, 2 de agosto de 2009

a frase: os aros




Pelas lentes presas nos aros, vejo você em meio a um croissant. Disfarça mal o interesse, concentra-se no livro. Está longe, mas consigo ler a capa: papagaiada espírita, aquela coisa de vai e volta, cheia de mensagens evidentes. Adivinho sua procura por um sentido. Peço à garçonete lhe entregar um pedaço de bolo, aquele atrás do vidro no mostruário dividido como pizza, os cortes cruzando-se no centro. Estava inteiro, agora resta a incompletude. Você se surpreende e agradece de longe; por meio de um gesto, convida a sentar em sua mesa. Rodeamos assuntos para não falarmos daquilo que, de fato, queremos. Um risco em espiral escapa do centro. Você acredita ter sido prostituta na sua encarnação anterior. Cheguei tarde, então? Notei as estrelas coloridas no pulso. Você me esclarece que é necessário retocar as cores periodicamente. Você faz pouco caso da minha crença em alienígenas. Pergunto se já trabalhou no circo e você me responde que sim, até a morte de uma criança em um acidente no carrossel. Me conta que foi contorcionista e a imagino em auto-felação. Parece que nos conhecemos faz tempo; entretanto, quanto mais tempo ficarmos juntos, perceberemos o quão pouco temos em comum. Você me dá seu número e eu o meu, ofereço uma carona, mas você está de bicicleta. Fica para uma próxima, eu ingenuamente acreditei. Pago nossa conta. Confiro o relógio, ainda é cedo, a hora não passa: deve ser o verão. Decido dar uma volta. Vou a um café, de fronte a uma praça. Peço um suco e um croissant. Retiro o livro que mais amo de minha bolsa, todo ele rabiscado e cheio de anotações, lições de alguém que já morreu. Um caroço entope o canudinho, interrompo a leitura em meio a um parágrafo, sinto-me observada. Vejo você com seus óculos de aros redondos, me encarando sem disfarçar.

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