Do que não falamos quando falamos de crítica
Antonio Xerxenesky 
O Crítico 
Literário Hipotético tem quarenta e dois anos. É doutor em letras, e 
leciona na faculdade onde se formou, tentando ensinar qualquer coisa 
para alunos desinteressados de 18 anos. É moderadamente feliz em seu 
casamento; fantasia com duas alunas suas, mas não tem coragem de fazer 
nada, ao contrário de seus colegas. Sofre de úlcera. Recentemente, uma 
dor de dente o tem incomodado muito. Pode ser bruxismo, mas ele não quer
 usar aparelho dentário aos quarenta e dois anos. Ele escreve resenhas 
para jornais e revistas importantes. Sente que a crítica literária no 
âmbito da academia é muito restrita – uma forma de comunicação que não 
atinge mais do que meia dúzia de pessoas. Suas ideias naquele mundo não 
repercutem ou reverberam. Por isso escreve também as infames críticas 
jornalísticas – pelo dinheiro que não seria. Recebe caixas e caixas de 
livros com lançamentos. As editoras nem mais perguntam se ele quer 
receber o lançamento X ou Y, apenas mandam os livros.
Um jornal 
encomendou uma resenha do livro novo de Philip Roth e também do Romance 
Promissor do Jovem Escritor Bacana. O Crítico Literário Hipotético 
começa a ler o Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. Observa a 
foto do rosto do Jovem Escritor Bacana na orelha do livro. Lembra-se que
 já viu o rapaz em algum evento literário, cercado de admiradores. 
Lembra-se das declarações polêmicas que o jovem fez nas redes sociais. 
Pela trigésima página, larga o livro, sem vontade de ler mais, e decide 
começar o novo de Roth. Como sempre, Roth trata do medo da morte, das 
doenças que chegam com a idade (o crítico se recorda de sua úlcera), do 
desejo sexual que parece minguar com o passar dos anos (o crítico se 
recorda de suas duas alunas, aquelas duas alunas específicas), da 
relação entre um homem mais velho e uma garota mais jovem (o crítico 
passa a enumerar, mentalmente, livros nos quais um professor seduz uma 
aluna: Desonra, de Coetzee; Partículas elementares, de Houellebecq; Sobre a beleza,
 de Zadie Smith; uns dois ou três livros do próprio Roth). No fim de 
semana, o crítico senta e escreve duas resenhas. Fala sobre a função da 
literatura, a perplexidade do escritor perante o mundo. Fala de Kafka, 
Borges e Piglia. Fala do cuidado estilístico, da dificuldade em 
construir personagens críveis. Não menciona, em momento algum, a úlcera,
 as alunas que povoam sua imaginação. Não comenta a vergonha que 
consideraria usar um aparelho dentário aos quarenta e dois anos.
***
Não sou um 
crítico profissional. Costumo escrever resenhas aqui e acolá e tenho uma
 produção acadêmica tímida. Valorizo e aprecio a profissão de crítico. 
Sonho com uma carreira nessa linha, inclusive. De modo geral, me dão a 
liberdade de escolher quais livros quero resenhar, e sempre prefiro 
livros que acho que vou gostar (de um autor que já me agrada, ou algum 
desconhecido sobre o qual ouvi bons comentários). Se achar que o livro 
não vale um tostão, direi isso com todas as letras, embora considere um 
desperdício dar espaço para livros que não merecem a atenção do leitor. 
Afinal, como todos estão cansados de saber, os cadernos culturais são 
terrivelmente magricelas. Porém sempre me ponho a pensar o seguinte: 
quanto da minha vida pessoal não está influenciando aquilo que escrevo e
 minhas maneiras de ler um livro?
A visão 
“biografista” que tenta buscar relações entre a obra de um autor e sua 
vida pessoal está morta e enterrada desde o advento das teorias do 
formalismo russo. Mas e a biografia do crítico? A úlcera do Crítico 
Hipotético não pode ter deixado o sujeito indisposto para certas 
leituras? O fato de que ele passou dos quarenta não o deixará levemente 
rancoroso em relação a um jovem escritor que é visto como uma 
“promessa”? Seus problemas amorosos não ecoarão em sua cabeça ao se 
deparar com narradores de Roth, sempre homens brancos de classe média 
com problemas de relacionamento?
Se, de fato, 
todas estas questões influenciam o julgamento crítico, o que ele pode 
fazer? Deveria abordar uma perspectiva totalmente pessoal e subjetiva, 
começar uma resenha dizendo: “Ontem eu estava andando na rua e…”? Ou 
então buscar uma leitura mais interpretativa da obra analisada, se 
distanciando, assim, de julgamentos de valor? É o que tenho tentado 
fazer em minhas últimas resenhas, com o slogan mental: “Mais 
interpretação, menos guia de compras”. Mas nossas interpretações não 
seriam igualmente abaladas por motivos extraliterários?
Nunca vou me esquecer de quando emprestei minha cópia de O passado, do Alan Pauls, para um amigo mais jovem. O passado figura
 entre meus livros favoritos de todos os tempos, e a obra não transmitiu
 nada a esse meu amigo. Ele não extraiu nenhuma interpretação empolgante
 do livro. Era apenas um romance bem escrito e nada mais. Teria a falta 
de um relacionamento amoroso turbulento no passado o impedido de fazer 
uma leitura mais rica do livro de Pauls? É o que especulo. Quando contei
 aos meus pais que detestei Desvarios no Brooklyn, de Paul 
Auster, eles retrucaram que eu não estava na idade certa para ler aquele
 livro. Quanto importa a idade? Quanto pesa a bagagem emocional? Não 
sei, não faço ideia. Talvez, quando descobrir, possa me considerar um 
crítico de verdade.
 

 
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