João Pereira Coutinho
“Escreve sobre aquilo que conheces.” Eis o conselho-clichê
do escritor sênior para o escritor júnior. Faz sentido, não faz?
Se escrevermos sobre aquilo que conhecemos - as pessoas que nos rodeiam, os lugares que
habitamos, as alegrias ou tristezas que tivemos ou temos - , existe pelo menos
a promessa romântica da autenticidade. A ficção contemporânea é isso, ou quase
isso: reportagens sobre nós próprios, mesmo que os personagens estejam
mascarados com outras identidades.
Um escritor de classe média, que habite os subúrbios da
metrópole e que, sei lá, tenha um gosto especial por jogar boliche aos sábados,
acabará por escrever um romance sobre um escritor de classe média, que habita
os subúrbios de uma metrópole, e que descobre subitamente que a sua paixão pelo
boliche é um sentimento reprimido pelo badminton.
Nada disso é grave. Exceto pelo pormenor óbvio de que nem
todas as vidas são interessantes. As nossas livrarias estão cheias de obras
ensimesmadas e onanistas porque o escritor seguiu o conselho-clichê de escrever
sobre aquilo que conhece. O desafio deveria ser outro: escrever sobre aquilo
que se desconhece. O que implica curiosidade, descoberta. E, palavra
fundamental, imaginação.
Aposto que Lionel Shriver, autora do brilhante “Precisamos
Falar sobre o Kevin”, concorda comigo. Mas Shriver foi ainda mais longe no festival
de escritores de Brisbane, na Austrália. Tema de sua palestra: apropriação
cultural. Ou, traduzindo, será que é legítimo um autor usar personagens,
comportamentos ou valores de outras culturas?
Exemplo: um escritor branco que vive em Nova York pode
narrar o mundo - interior ou exterior - de um negro que habita em Nova York, São Paulo
ou Johannesburgo?
Shriver afirma que sim e ataca violentamente as vestais da “apropriação
cultural”. Se a literatura aceita se autocensurar para não correr o risco de “apropriação
cultural”, o que resta são livros de memórias - ou, acrescento eu, exercícios nulos de
autoficção.
Nomes como Truman Capote ou Graham Greene, para usar dois
escritores citados por Shriver, seriam impensáveis para a tribo que luta contra
a “apropriação cultural”. Capote não teria direito a escrever sobre o “white
trash” criminal da América “profunda”; Greene estaria impedido de viajar para
os trópicos e incluir os indígenas nas suas narrativas.
Lionel Shriver tem razão. Literária e filosoficamente.
Comecemos pelo princípio: se a literatura aceitasse o mandamento de que nenhum
escritor pode espreitar o quintal do vizinho, as bibliotecas ficariam vazias.
Estamos em 2016. Festejamos os 400 anos da morte de
Shakespeare. Devemos tolerar que o bardo da Inglaterra isabelina tenha escrito
sobre portadores de deficiência homicidas (Ricardo 3º), judeus gananciosos
(Shylock) ou generais mouros facilmente enganáveis (Otelo, claro)?
E que dizer de Cervantes, outro centenário, que cometeu o
supremo abuso de dar corpo e voz a aristocratas alienados (como o Quixote) e a
escudeiros analfabetos, mas sensatos (o impagável Sancho)? Como justificar a “apropriação
cultural” de Shakespeare, Cervantes - mas
também de Homero, Dante, Goethe ou Dickens?
Ver na “apropriação cultural” um problema seria retirar à
literatura a sua força maior: a possibilidade de entrarmos em universos
distintos, sejam mentais ou materiais, para assim compreendermos a única coisa
que interessa a um criador - a natureza
humana.
Mas a fraude da “apropriação cultural” também revela um
paradoxo filosófico: em nome de um “respeito” pela singularidade do outro, esse
multiculturalismo demente é uma forma perversa de racismo. Brancos só
escreveriam sobre brancos. Negros sobre negros. Índios sobre índios.
No fundo, o sonho de qualquer racista: instituir uma espécie
de “apartheid” intelectual que proíbe qualquer gesto empático para suplantarmos
a diferença e nos imaginarmos “no lugar do outro”.
O discurso de Lionel Shriver contra a imbecilidade da “apropriação cultural” provocou polêmica imediata. E o festival australiano, horrorizado com a sensatez, distanciou-se das palavras de Shriver e organizou uma nova mesa para responder às suas colocações. O ataque ficou a cargo das escritoras Yassmin Abdel-Magied e Suki Kim.
Quem?
Leitor, não vale ir ao Google. Obviamente, são duas autoras que só escrevem sobre aquilo que conhecem.
(Imagem: Betye Saar. Via)
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