-Francisco Bosco fala sobre escrever e otras cositas más. Veio DAQUI (2014).
Pensar, ler, escrever
A dúvida
e a hesitação intelectuais não representam necessariamente falta de clareza
cognitiva ou coragem moral para se posicionar com firmeza diante da realidade.
Pois muitas vezes a própria realidade não é clara e firme, e sim turva e
ambígua. Nesses casos, ao contrário do que se poderia pensar, o estatuto
cognitivo da dúvida é justamente a verdade, e seu estatuto moral é a
coragem (não é fácil suportar a angústia da indecisão).
Um
pensador é fundamentalmente alguém que nos oferece um modo de ver a realidade.
Uma anterioridade, uma mediação que nos adentra o espírito, confundindo-o com
ela, transformando-o nela. Um ensaísta ou um escritor é alguém que nos
apresenta o mundo. Sua relação é com o mundo. Um pensador é alguém que nos
apresenta a origem do mundo. Sua relação é com o pensamento. O pensamento é a
origem do mundo. Todo verdadeiro pensador (são raros) recomeça o mundo.
______
Quem
chama de “pedante” alguém que escreve “difícil” (difícil para quem?) mobiliza
um álibi moral para uma reação, no fundo, imaginária: sente-se diminuído porque
sua incompreensão revela sua ignorância — e procura recalcar isso projetando no
outro seu sentimento de inferioridade. De resto, é absurdo moralizar o que não
se compreende.
______
Muitos
jornalistas desejam escrever um romance. Muitos filósofos também. Geralmente,
por preconceitos diferentes — num caso, cultural; noutro, epistemológico — mas
com resultados iguais. Em vez disso, aqueles deveriam fazer jornalismo
inteligente; esses, filosofia inventiva.
______
Os dois
defeitos estéticos imperdoáveis: 1) a duplicação: declamar com tristeza um
poema que fala de coisas tristes; repetir com gestos o que as palavras já estão
dizendo; a duplicação está para a estética como o enjoo para o estômago:
é um excesso que dá vontade de vomitar; 2) o fake: pretender ser o que
não se é.
______
O que
define o ensaísmo é sua inconsequência. Mesmo quando ele se inscreve em
uma disciplina, o seu compromisso não é o de levar os métodos ou os conceitos
dessa disciplina adiante; o seu compromisso é antes com o seu objeto. Um
especialista está comprometido com certo território conceitual; um ensaísta
está comprometido com certos problemas singulares, podendo valer-se de
conceitos de territórios diversos para compreender esses problemas. É assim que
ensaístas não costumam ser disciplinares, nem mesmo transdiciplinares, e sim indisciplinares
(mas não indisciplinados, porque o trabalho do conhecimento lhes é essencial).
Não lhes interessa colocar disciplinas em contato, mas compreender certos
problemas: ora, conceitos pertencem a disciplinas, mas os problemas que eles
ajudam a compreender pertencem à vida, que é indisciplinar — e indisciplinada,
felizmente.
______
Diz o senso
comum sobre os livros difíceis: “Esses autores não pensam no leitor, escrevem
para o próprio umbigo”. Ao contrário: paradoxalmente, um texto só serve ao
outro se tiver conquistado sua autossuficiência, se escrever para o próprio
umbigo. Os textos que meramente demandam do leitor na verdade não lhe oferecem
nada, apenas socilitam seu reconhecimento.
______
Um jurado
de concurso literário é um antileitor. Um leitor se relaciona,
por meio do texto alheio, com suas próprias questões, seus próprios interesses,
e é a existência ou não dessa fonte de estímulos o critério primordial de sua
avaliação (“é bom ou não é bom para mim”). Já um jurado deve se colocar
na posição imprecisa — e sobretudo desinteressante — da objetividade,
procurando limitar a perspectiva do “para mim”, que entretanto é a única que
realmente interessa a um leitor. O terceiro termo é a função do orientador,
que, nem leitor, nem antileitor, mobiliza uma leitura “para o outro”, não para
julgá-lo da perspectiva difusa da objetividade (o que seria a antileitura “para
o Outro”), mas para ajudá-lo a tornar-se, com mais recursos, um “para si”.
______
Para mim,
é isso o “meu” pensamento: uma profusão de ideias, impressões e argumentos
diferentes e muitas vezes contraditórios entre si. Em cada momento alguns me
parecem mais corretos, e é com eles que construo a realidade, são eles que
“defendo”. Mas não me identifico profundamente com eles. Não são “minhas”
ideias, “meus” argumentos — logo, não é meu pensamento. Por isso não me
é tão difícil ouvir críticas e acatar os argumentos que se opõem aos “meus” (já
que não os experimento como meus). Há uma saúde imaginária nessa dissociação,
em larga medida, entre o eu e o que ele pensa: I never fall apart, because I
never fall together.
Nenhum comentário:
Postar um comentário