sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cyberata

Cyberata, agosto de 2010.

Nos reunimos ao som incessante de drágeas motorizadas que continham em seus interiores essência e morte. Ao fundo, na esquina uma guitarra violava o sossego do encontro. Não que fosse um ritual, não que fosse sagrado – tampouco era profano –, mas havia a sede de meses tensamente cálidos, pinicando nossas gargantas; e havia na lista de criaturas (sempre tem uma lista, sempre tem criaturas) uma velha bruxa plantando pessoas em seu quintal na Cidade Ademar, conformando o desespero de homens vegetalizados pela modorra da existência e pelo medo de encararem sua nova condição: planta. A velha não imaginava que plantaria pessoas, mas queria isso, só não sabia ainda. Recebia de campanhas de doação de roupa etc, toda a sorte de peignoir. E há mais de trezentos anos, só se vestia assim. Principalmente, quando recebia a visita de mandrágoras feitas de sêmen enforcado e rijo. Talvez não tão rijo quanto aquele garoto – apodrecido ao nascer – que costumava mostrar-se pinto por baixo das mesas, elencando quais as meninas veria por dentro. Há quilômetros dali uma adolescente naufragava em mil, talvez milequinhentos litros d’água, rezando para que não a encontrassem, para que não acendessem as luzes, para que as frinchas do teto permanecessem inalteradas enquanto ela esperava o fim do incêndio. (O incêndio kriptoniano que a separaria para sempre de seus pais). Enquanto na estação de metrô João a esperava, ébrio de uísque e escritório, desfilando para si, sua filosofia vadia e as coisas que pensaria quando finalmente a visse, quando finalmente sentisse o toque de seus lábios e dentes afiados. Não era pedófilo, nem estuprador. Já o homem de Tundra, esse sim. Estuprava sua mente com doses cavalares de cus de mendigos rasgados – não mais de menininhas – e chegava todo dia em casa decapitado, levando consigo a lasanha que a mulher, também um vegetal, comeria antes de moer-lhe o espírito com as lamúrias da vidinha que levavam em Tundra. Valei-me meu Coletivo-dos-Anjos!, a trama temporal era tão intensa que gostava de dizer isso esperando por Tarik, senhor do tempo e dos crimes, novato na arte de matar pessoas mais de uma vez e também na arte de pegar sua mulher com outro, toda vez que voltava no tempo. Abdala o alertara sobre isso, eram companheiros, não podia ser diferente. Vigiavam crimes ocorridos, sem nunca poder mudar o resultado. Oxalá tivessem vindo conosco. Pelo menos, naquela hora, a guitarra seria calada a balas. Não tínhamos pretensão de demorar, mas queríamos. Queríamos voltar pra megalópole: uma bolha de aço transparente que flutuava sobre nossas próprias cabeças, nos dizendo não faça isso, depois de tanto tempo, não faça isso, compartilhe-se, vire pó, neblina, uma tenda no deserto, mas não faça isso, não deixe de lado a sua essência, soque-a numa drágea motorizada e siga o caminho da guerra da paz, é lá que estaremos todos, é lá que encontraremos as sombras, e a memória que é real, não essa, inventada toda hora, coberta de tosse e cigarro, de abortos e fodas mal dadas. A coisa ia nesse ritmo, e, eis que surge Joana, não a Joana que se casara com João por ele não ser pedófilo, nem estuprador – diferente do homem de Tundra –, e sim, Joana, a outra. A que media os níveis psicodélicos (psicotrópicos?) de nossa razão, necessária razão, e, entre um gole e outro de sumo de gente-vegetal (sim, ela conhecia a velha bruxa...) enquadrava-nos nos mais variados níveis de insensatez, porém sempre com o mesmo carimbo: anormal. Hmpf, se ela visse como se comportam os que faltaram, chamaria imediatamente os crono-meganas e desmantelaria nosso pequeno conchavo ideicônico. E não fosse o Dr. Nassar – treinador estilístico de Tarik e Abdala, co-criador da máquina do tempo diraquiana – ser o único mendigo anão remanescente na megalópole, ainda estaríamos reunidos, semi-ébrios de essência criadora, esquecendo-se de nossas drágeas motorizadas, de nossos ossos, de ranhuras e frinchas causadas pelo mal uso da existência, e felizes, ao nosso modo, mas felizes.

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