A Falsa Profundidade
Braulio Tavares VIA
Há uma figura literária pouco estudada que eu chamo de A
Falsa Profundidade. São aquelas frases que parecem estar dizendo algo muito
profundo, sério, merecedor de reflexão – mas se a gente encostar um
alfinetezinho de análise, a frase pipóca que é uma beleza.
Pensei nisto lendo um conto de Avram Davidson, um dos
autores mais eruditos e mais fora-de-esquadro da ficção científica dos EUA. (Rotular
Davidson como “um autor de ficção científica” é como rotular Millôr Fernandes
como “um piadista”.) Ele é um cara de leituras vastas e heterogêneas, um
daqueles judeus novaiorquinos baixinhos, barbudos, irascíveis, mas na hora de
pegar na pena tem uma finura estilística e uma ironia admiráveis.
Às folhas-tantas do conto “El Vilvoy de Las Islas”
(1988), ele está falando de um arquipélago imaginário lá para as bandas da
Patagônia, as tensões militares entre aquelas republiquetas fictícias e diz (as
traduções são minhas):
Quem controla o mar, controla a costa; e quem controla a costa,
controla o interior. Por conseguinte, quem controla o mar, por paradoxal que
isto pareça, controla o interior.
“Há uma certa lógica nisto,” pensei, do alto de minha
ignorância em matérias militares. Se uma Armada cerca uma faixa extensa do
litoral, está controlando quem chega e quem sai dali, e uma consequência disso
é isolar o interior... Parece fazer sentido.
Mas nessa tentativa de entender, pensei que a frase de
Davidson se parece bastante com uma frase famosa de George Orwell (em 1984), que quando a li pela primeira vez
me produziu um efeito semelhante. Diz Orwell:
Quem controla o passado controla o futuro; e quem controla o presente
controla o passado.
Mais uma vez, o raciocínio parece fazer sentido. No
livro, o protagonista Winston trabalha num departamento do governo a quem cabe
reescrever os jornais de antigamente. Cada vez que um político cai em desgraça,
é preciso pegar as principais referências elogiosas a ele, feitas anos atrás, e
cortá-las. E o raciocínio se aplica desta forma: se no ano de 2022 for possível
destruir informações de qualquer natureza sobre o Passado, esses fatos deixarão
de fazer parte da memória coletiva. E o futuro lerá esse Passado de uma maneira
que nós, hoje, estamos determinando qual será.
Como eu sou um leitor desconfiado, boto a mão no fogo em
que nem todo mundo se dá o trabalho de pensar assim. E para essas pessoas seria
praticamente o mesmo dizer: “Quem controla o passado, controla o presente, e
quem controla o presente controla o futuro”. Ou alguma outra variante.
Poucas páginas adiante, no mesmo conto de Davidson,
encontro isto:
A História, sem a Geografia, é uma carcaça ambulante, ou talvez seja o
contrário disto.
Ou seja, tanto faz (para o narrador) dizer isto ou dizer
que “a Geografia, sem a História, é uma carcaça ambulante”.
Por que? Porque é uma comparação meio inesperada, que
vale porque o efeito de estranheza nos obriga a refletir, a tentar interpretar,
a aconchambrar um significado qualquer nessa imagem tão pouco acadêmica. Talvez
faça mais sentido atribuir essa comparação à História, porque a História é
dinâmica, está em movimento, por conseguinte é mais “ambulante” do que a
Geografia, que em princípio é uma visão estática...
Bom; o simples fato do narrador do conto sugerir que se
inverta a comparação feita por ele próprio me sugeriu a possibilidade de que
tudo não passe de mera retórica, mero palavrório pomposo. Os demagogos de
palanque sabem muito bem que o povo engole qualquer coisa bradada no tom certo:
– Povo da minha terra! Não se
enganem! A Democracia é mais importante do que o Progresso, porque sem a
Democracia não existe o Civismo, e sem o Civismo não existirá o Progresso, ou a
própria Democracia!
Isto não quer dizer rigorosamente nada. É mero palavrório
de palanque. Na inauguração seguinte pode ser substituído, sem perda aparente,
por:
– Povo da minha terra! Não se
enganem! O Civismo é mais importante do que a Democracia, porque sem o Civismo
não existe o Progresso, e sem o Progresso não existirá a Democracia, ou o
próprio Civismo!
And so it goes.
E já que falei em Avram Davidson não houve como não
lembrar de Machado de Assis, seu primo-carnal em matérias de ironia e finura.
Todo mundo deve lembrar o divertido Capítulo LV do Dom Casmurro, em que Bentinho, no quarto
escuro, tenta compor mentalmente um soneto durante uma noite de insônia, essa “musa de olhos arregalados”. Isto ocorre
em sua fase de seminário. Ele mexe e remexe alguns versos soltos que lhe vêm à
cabeça de adolescente (pensa abrir o soneto com: “Ó flor do céu! Ó flor cândida e pura!”), e chega a este
decassílabo final:
“Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”
Sem vaidade, e falando como se fosse de
outro, era um verso magnífico. Sonoro, não há dúvida. E tinha um pensamento, a
vitória ganha à custa da própria vida, pensamento alevantado e nobre.
Mas a noite avança e Bentinho não sai disso; quer fazer
deste verso a chave-de-ouro, o verso que encerra o soneto, mas tudo que tem nas
mãos é um final sem começo além daquela outra idéia igualmente solta e
flutuante. Bentinho sabe que o último verso é o mais importante (“imaginei que tais chaves eram fundidas
antes da fechadura”). E lhe ocorre simplesmente inverter os termos!
“Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”
O sentido vinha a ser justamente o
contrário, mas talvez isso mesmo trouxesse a inspiração. Neste caso, era uma
ironia: não exercendo a caridade, pode-se ganhar a vida, mas perde-se a batalha
do céu.
Há muita ironia neste trecho de Machado, mas vejo nele
também uma compassividade, uma compreensão de tudo que existe de mecânico e (paradoxalmente)
de aleatório no processo de criação poética, principalmente na cabeça de um
jovem escaldado no Latim e na Retórica. Bentinho não tem idéias, tem impulsos
oratórios e estilísticos; as idéias podem ser quaisquer, contanto que as
palavras que elas cavalgam sejam sonoras, e batam cascos numa cadência boa.
Quantas vezes nós todos não escrevemos assim? As palavras
surgem, parecem dizer alguma coisa, é meio como estar ouvindo uma música em
inglês ou francês. A gente capta uns farrapos do sentido, e o resto de sentido
que lhes falta é complementado pela emoção que nos sobra.
E para encerrar, um exemplo mais cruel que os de Machado
e de Avram Davidson.
Michael Gray é um dos principais estudiosos da obra
poética e musical de Bob Dylan. Ele é autor do assombroso Song and Dance Man III (2000), com quase mil páginas de análise da
obra dylaniana. Outro trabalho utilíssimo seu é The Bob Dylan Encyclopedia (2006), com mais 700 páginas de verbetes
alfabéticos.
Na enciclopédia, Gray comenta a obra crítica de Greil
Marcus, outro dos meus dylanólogos preferidos, e não deixa o colega-concorrente
passar sem uma alfinetadazinha. No verbete a ele dedicado, Gray comenta o
estilo de Marcus, e diz:
[Greil Marcus] às vezes chega perto da
auto-paródia, e às vezes parece que não está dizendo nada. Aqui está ele, por
exemplo, num ensaio [...] de 1998: “All Along The Watchtower, na
interpretação de Bob Dylan, tem lugar fora do tempo; a de Jimi Hendrix aceita o
tempo, mas depois o desenreda.” É uma ótima técnica, quando usada com economia,
e a escrita de Marcus parece tirar do nada esses vereditos – vereditos com todo
o poder críptico das falas de um guru sobre uma pilastra, de tal modo que o
leitor indefeso sente-se incapaz de questionar tanto a suprema auto-confiança
daquela oratória quanto o conteúdo em si, visto que este é tão impalpável
quanto é vigorosamente dito.
Um bom teste seria inverter os termos, e ver
se faz alguma diferença. “All Along The Watchtower, na interpretação de
Jimi Hendrix, tem lugar fora do tempo; a de Bob Dylan aceita o tempo, mas depois
o desenreda.” Hmmmm.
Todo mundo escreve desse jeito em algum momento,
inclusive todos os autores citados acima. O que os salva da mediocridade é o
simancol, o desconfiômetro, a obrigação de cobrar de si próprio; mas todos
publicam coisas como se dissessem para o leitor: “Ficou bom? Faz sentido pra
você?” Como um ator de teatro pergunta
ao diretor, após um improviso no ensaio; ou um músico pergunta ao diretor
musical.
Fiz isso. Ficou bonito? Além de ficar bonito, disse
alguma coisa? Eu não sei. Você sabe? Se não... perde-se o tempo, ganha-se uma
crônica.