Nada é verdade, nada é mentira
Ao conceder entrevistas, uma das perguntas que o
escritor mais ouve é a que se refere ao possível caráter autobiográfico
do seu livro. Aliás, pergunta fundamental, já que muito mais do que
simples curiosidade sobre a vida do autor, viveu ou não viveu tudo
aquilo, foi ou não abduzido, matou ou não matou, a pergunta revela um
aspecto essencial da experiência literária, tanto da escrita quanto da
leitura, que podemos resumir da seguinte forma: onde começa e onde
termina um livro. Em outras palavras, até que ponto informações como
biografia, personalidade e aparência do autor influenciam a forma como
ele é lido, e até que ponto o processo de escrita, e tudo o que o
envolve, se insere na própria obra. Será que na ficção é tudo mentira,
ou será sempre tudo verdade?
Comecemos com Thomas Bernhard. Bernhard, em seu livro Holzfällen (Árvores abatidas,
na tradução em português), publicado em 1982, conta a história de um
escritor austríaco que acaba de chegar de Londres e é convidado para
jantar no apartamento de um casal de amigos, mecenas que no passado o
ajudaram muito em seu início de carreira. Nesse jantar ele reencontra
muita gente conhecida, escritores, músicos, atores, ou seja, toda uma
fauna artística vienense. Acomodado numa poltrona, o narrador/autor
observa tais personagens e os retrata da forma mais cruel possível,
expostos em toda sua miséria, torpeza e arrogância. Sobre uma escritora,
por exemplo, o narrador faz o seguinte comentário: “Ela te odeia, digo a
mim mesmo, e você a despreza, essa é a verdade. Mas ela não te odeia
apenas porque você a abandonou há mais de vinte anos, sim, vinte e cinco
anos agora, e porque você é um escritor, mas também porque você é dez
anos mais novo do que ela, mulheres desse tipo nunca perdoam algo assim,
o fato de elas serem dez anos mais velhas, pensei”. Até aí tudo ótimo, a
questão é que esse narrador tem exatamente a mesma biografia que
Bernhard (com exceção da cidade onde mora), e as pessoas ali retratadas
correspondem em detalhes a figuras conhecidas do meio artístico-cultural
austríaco da época. Some-se a isso o fato de uma dessas pessoas, mais
especificamente, o anfitrião, ao reconhecer-se no relato de Bernhard,
decide entrar na justiça para impedir a publicação do livro na Áustria,
no que de fato foi atendido. O livro, proibido no país, teve seu
lançamento restrito à Alemanha naquele ano.
Agora deixemos Bernhard por alguns instantes e passemos para o
próximo episódio. Manuel Puig, escritor argentino, acaba de se mudar
para o Rio de Janeiro, O ano é 1981. Puig resolve fazer uma reforma em
seu apartamento, para isso contrata um pedreiro. Assunto vai, assunto
vem, Puig, fascinado pela sua história e forma de falar, decide gravar
as conversas. Essas gravações (que podem ser encontradas, acompanhadas
da transcrição no arquivo Manuel Puig, na Argentina) seriam
posteriormente, com poucas modificações diretas, transformadas em livro,
o romance publicado em 1982, Sangue de amor correspondido. Parte desse episódio é relatada pelo próprio Puig numa entrevista para a Paris Review,
entre outras coisas, ele explica o uso das gravações: “Há muito poucas
palavras que não são dele, simplesmente editei as nossas conversas”, e
conta que o pedreiro, depois da publicação do livro, alegando que por
causa desse relato estava recebendo ameaças de morte, passa a
chantageá-lo na tentativa de conseguir mais dinheiro. Segundo o autor, o
combinado havia sido uma quantia fixa, valor já pago e que permitira ao
pedreiro a compra de uma casa própria. Puig não esconde sua decepção
com esse episódio: “Eu esperava gratidão, ou pelo menos inspirar um
sentimento de afeto. Mas não foi o caso”.
Por último, vale a pena citar o caso de Roberto Bolaño. Ele teve uma
vida digna de um romance de aventuras, resumindo em algumas linhas:
nasceu no Chile, quando tinha quinze anos sua família mudou-se para o
México, onde ele viveu o restante da adolescência e tornou-se amigo de
muitos poetas e escritores jovens do país. Aos vinte anos resolve voltar
para o Chile, onde é surpreendido pelo golpe militar. Acaba entre os
detidos no Estádio Nacional, mas consegue sair de lá graças a um dos
guardas que havia sido seu amigo de infância e o reconhece. Volta ao
México, junto com outros amigos instaura o movimento de vanguarda
denominado Infrarrealismo. Depois viaja por diversos países da América
Latina, da Europa e da África. Estabelece-se na Espanha, onde ficaria
até o fim da vida. Em Blanes, cidade onde morou, dedica-se aos mais
diversos trabalhos, segurança num camping, garçom, vendedor ambulante,
etc., até que, ao tornar-se um escritor conhecido, passa a viver da
literatura. Bolaño trabalha o tempo todo em seus livros com esses dados
autobiográficos, criando inclusive o alter ego Arturo Belano. Depois da
sua morte, porém, passa-se a questionar até que ponto a sua biografia
corresponde à realidade. Ou seja, talvez as coisas não tenham acontecido
exatamente assim, como ele diz nas entrevistas, talvez ali, diante do
entrevistador estivesse não o homem, mas apenas mais um de seus
personagens. Ou indo mais além, talvez ao estender à própria pessoa o
processo de ficcionalização, homem e o personagem tivessem se tornado
uma coisa só.
E após esta pequena incursão pelos bastidores da literatura podemos
voltar à pergunta inicial: até que ponto a biografia do autor e o que
sabemos sobre o processo de escrita do livro modificam o próprio livro?,
agora munidos de novas perguntas: as repercussões do lançamento (como é
o caso de Bernhard), que influência podem ter? O fato de sabermos que a
história de um livro é autobiográfica modifica a nossa percepção sobre
ela?, e se o faz, até que ponto esse “conhecimento” nos obriga a dar-lhe
nova interpretação, ou até mesmo reescrevê-lo? Ou, para usar um dos
nossos exemplos, até que ponto a entrevista que Manuel Puig dá a Paris Review
tornou-se parte do próprio texto? E o que significaria permitir que ela
apareça na orelha ou na apresentação? Será que o leitor que nada sabe
das gravações e conseqüentes acontecimentos lê o mesmo livro que nós? E
quanto a Bernhard, a consciência de que se trata de personagens reais, e
do escândalo causado em decorrência da narrativa, não guia a nossa
leitura e, talvez, julgamento? É possível separar Bernhard-pessoa do
Bernhard-narrador? E por último, modificaríamos a nossa leitura de Os detetives selvagens se descobríssemos que Bolaño não estava no Chile no momento do golpe militar? Afinal, que importância tem isso?
A resposta é, tem toda a importância, claro!, e ao mesmo tempo, não
tem importância nenhuma. Em outras palavras, saber ou não saber esses
aspectos modifica sim o texto. E se formos mais além, tudo modifica o
texto, a história pessoal do escritor, a época em que ele vive, os
idiomas que ele fala, a experiência cultural que ele possui (isso sem
falar do leitor). Mas a questão não é só essa, se modifica, dando ao
livro outras interpretações, por outro lado não o esgota apenas nisso.
Uma obra literária terá sempre inúmeras camadas, nuances, o que
significa, saber ou não saber se algo é mentira ou verdade nos dá apenas
mais uma entre muitas possíveis leituras. E chegamos assim a seguinte
equação: na literatura, mesmo que nada seja verdade, não importa, pois
sabemos que, apesar de tudo, nada é mentira.
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