Por que o prazer da lentidão desapareceu?, pergunta-se
Milan Kundera na abertura de sua primeira narrativa escrita diretamente
em francês, et pour cause intitulada A Lentidão, que a Companhia das
Letras acaba de reeditar. Perdeu-se o hábito de curtir a lentidão neste
mundo cada vez mais movido pela pressa e pelo pragmatismo, lamenta o
escritor checo, saudoso dos flâneurs de antanho, dos "heróis preguiçosos
das canções populares" e dos "românticos vagabundos que dormiam sob as
estrelas", criaturas da ociosidade quando esta ainda não era vista,
única e exclusivamente, como sinônimo de desocupação estéril e
parasitária.
Peguei para ler o livrinho de Kundera no embalo de um ciclo de
palestras sobre o mais potente combustível da ociosidade: a preguiça.
Magnífico tema, na contramão das rotineiras sociologorreias sobre o seu
oposto, o trabalho, e também do falso bom senso moral, econômico e
religioso que a condenaram como mero vício, ofensa a Deus e entrave ao
progresso, pois todos os 23 palestrantes não irão apenas indultar a
preguiça (do latim pigritia, cuja raiz é piger, lento), mas sobretudo
exaltá-la, valorizando a figura dos ociosos espiritualmente produtivos.
Ficar à toa é uma arte. O ciclo, que começa no próximo dia 11, faz parte
da série Mutações, criada e orientada pelo professor Adauto Novaes.
São os ociosos que transformam o mundo, escreveu Camus, "porque os
outros não têm tempo algum".
Nem sequer para perceber as contradições e
as consequências físicas e psíquicas da faina incessante e refletir
sobre elas, lenta e profundamente. Os ociosos transformam o mundo
criando e meditando. Usar a inteligência sem finalidade lucrativa, não
submeter o ócio ao negócio, retirar-se da pressa e das agitações
mundanas para poder refletir melhor, este é o trabalho dos ociosos,
permanente e sem fim. "A primeira prova de uma inteligência ordenada",
prescreveu Sêneca, "é poder parar e aquietar-se consigo mesmo",
entregar-se, na formulação de Montaigne, ao "fecundo exercício de uma
ociosidade inteligente e feliz", como ele, Sêneca e tantos outros
(Rousseau, Thoreau) fizeram.
Além de Macunaíma, a palavra preguiça sempre me evoca o pernambucano
Ascenso Ferreira ("Na hora de dormir, dormir; na hora de comer, comer;
na hora de vadiar, vadiar; na hora de trabalhar, pernas pro ar que
ninguém é de ferro"), o gaúcho Mario Quintana (que fez da pachorra um
"método de trabalho"), a modinha De Papo Pro Ar, e, em outro plano, Paul
Lafargue, Bertrand Russell e aquele mimético episódio de Godard em Os
Sete Pecados Capitais, com Eddie Constantine com preguiça de até dar
laço no sapato. E, de uns tempos para cá, a revista The Idler (O
ocioso), editada por Tom Hodgkinson, que, confesso, não leio por pura
preguiça.
Lafargue, genro de Marx, escreveu há 123 anos a mais conhecida defesa
do far-niente, O Direito à Preguiça, que é sobretudo uma crítica
arrasadora à "perversão" das classes operárias pelo "dogma do trabalho"
complotado pela Igreja e a nobreza - e legitimado pela lógica da
produção capitalista e pela retórica domesticante do comunismo. Os
antigos gregos desprezavam o trabalho (atribuição exclusiva dos
escravos) e gastavam seu tempo com exercícios físicos, jogos de
inteligência e o que chamavam de ataraxia: a vida contemplativa. A
escravidão, ao estilo antigo, acabou, mas ressurgiu com novas feições.
"Quem não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que
seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito." Assim falou
Nietzsche, que só foi escravo de sua loucura.
Platão e Aristóteles achavam que trabalhar esgota o físico, faz mal à
saúde, degrada a alma e impede o homem de servir ao espírito, ao corpo e
à polis. A moral cristã estragou tudo, santificando o batente
("ganharás o pão com o suor do seu rosto") e transformando a preguiça em
pecado capital. Embora Jesus tenha louvado o ócio, no sermão da
montanha ("olhai os lírios no campo", etc.), e o Todo-poderoso parado
para descansar no sétimo dia, e por toda a eternidade, a Igreja,
ressalta Lafargue, pregou, astuciosamente, a ideia de que trabalhar é um
castigo imposto pela justiça divina a Adão e Eva e sua infinita prole,
para que não lhes sobrasse tempo livre para pensar em besteiras, como,
por exemplo, questionar o clichê de que o trabalho só enobrece o homem.
Os nazistas pegaram carona nessa pregação, afixando à entrada de seus
campos de extermínio este cínico bordão "Arbeit Macht Frei" (O trabalho
liberta). Tão logo o Reich se estrepou, um sambista carioca chamado
Almeidinha usou seu ócio para compor um dos maiores sucessos do carnaval
de 1946, mais que um samba, um desabafo contra a ergolatria imposta
pelo recém-derrubado Estado Novo: "Trabalhar, eu não, eu não!".
Russell fez seu "elogio ao lazer" (ou ao ócio) na mesma sintonia de
Camus ("sem a classe ociosa, a humanidade jamais teria saído da
barbárie") e Lafargue (para manter os pobres satisfeitos, os ricos
enalteceram, por milhares de anos, a dignidade do trabalho, "embora
pouco se importando de continuar indignos nesse sentido"), e defendeu a
redução da jornada de trabalho para quatro horas, mas sem recomendar que
o tempo restante fosse desperdiçado com "pura frivolidade". Trabalhando
menos e aproveitando melhor o tempo, teríamos uma vida menos monótona e
estressante, seríamos mais alegres e felizes. Como se ainda (ou já)
estivéssemos no Paraíso.
(O texto é sobre o ócio... mas o início, sobre lentidão, me lembrou do comentário de Scorcese sobre o filme Barry Lyndon - Não achei o vídeo mas encontrei um comentário parecido AQUI )