Paradigma Sasha Grey
 (Daniel Galera. Um artigo antigo que achei por aqui)
Escrever sobre sexo é notoriamente difícil, e a maior parte da 
literatura erótica que se produz por aí é uma reiteração pouco inspirada
 do gosto médio, das mesmas anedotas de sempre e do tipo de discurso 
clínico e edificante que se encontra nas matérias das revistas mensais 
que elencam centenas de maneiras de agradar a alguém na cama. Por isso 
me surprendi com “Maidenhead” (2012), pequeno romance ou novela da 
canadense Tamara Faith Berger, ainda inédito no Brasil.
O livro é 
narrado do ponto de vista de Myra, uma garota de 16 anos, branca, de 
classe média. Durante um período de férias com a família num balneário 
dos Estados Unidos, Myra faz passeios solitários e se dedica a imaginar,
 com inveja, o que os casais de jovens universitários fazem à noite em 
seus quartos de pousada. Uma tarde, na praia, conhece um músico 
africano, Elijah, um homem bem mais velho, que a atrai para um sórdido 
quarto de pensão. Berger narra o que acontece lá dentro com um 
habilidoso equilíbrio entre detalhes explícitos e zonas escuras. Myra 
volta para casa ciente de que não fez sexo, mas com a certeza de que 
passou por uma iniciação de alguma espécie. A experiência a transforma 
para sempre. O que ela deseja, a partir de agora, é ser uma escrava 
sexual.
Meses depois, Elijah e sua misteriosa parceira irão ao 
encontro de Myra no Canadá, e partir daí se desenvolve um enredo 
principal que empresta elementos de “História do olho”, de Georges 
Bataille, e “Justine”, do Marquês de Sade, entre outros clássicos do 
gênero. A história da virgenzinha que empreende uma jornada de iniciação
 sexual sob o jugo de libertinos tem pouco de original. O que diferencia
 “Maidenhead” é que se trata de um livro totalmente contemporâneo, que 
traz para a receita tensões raciais, históricas, sexuais e sociais 
bastante atuais. Em especial, o livro dialoga de forma muito 
interessante com a onipresença da pornografia na internet.
Para 
Myra, é natural tratar logo de investigar suas novas fantasias em sites 
pornográficos, e um dos grandes momentos do livro ocorre quando ela está
 assistindo a vídeos de teens entregues a submissões sexuais de
 todos os tipos. O olhar de uma atriz capta sua atenção e Myra se 
pergunta (estou parafraseando): Como e por que ela foi parar ali? Quem 
são essas garotas? Acima de tudo: como elas se sentem? Myra deduz que 
aquelas atrizes são como ela. Quer estar no lugar delas, com elas, 
submetida daquela forma àqueles homens. Uma das epígrafes do livro, uma 
frase de Clarice Lispector, ganha sentido nesse momento: “Meu mistério é
 não ter mistério.”
É claro que a coisa não é tão simples, e o 
terço final do livro mostrará isso com uma grande dose de tensão e 
violência. O que me parece digno de aplauso é que a autora consegue 
escrever bem sobre sexo sem recorrer ao surrealismo de Bataille, com 
suas cadeias de metonímias envolvendo ovos, olhos, testículos et cetera 
(“História do olho”) ou ventres que se abrem como tumbas frescas e velas
 acesas que dão a um cemitério a aparência de um céu estrelado (“O azul 
do céu”, meu favorito). Ela também passa longe dos exercícios de 
devassidão obsessivos de Sade, que às vezes parecem ser fruto de uma 
análise combinatória interminável de atos sexuais provocativos. (Uma das
 coisas mais impactantes que li na vida são os rascunhos das três partes
 finais de “Os 120 dias de Sodoma”, centenas de sinopses de cenas que 
Sade nunca teve tempo de desenvolver, e que lidas em sucessão provocam 
um efeito verdadeiramente desnorteante.) Berger se aferra a um realismo 
contido que apenas roça no limite do alegórico e do escandaloso, e conta
 uma história em grande medida verossímil sobre uma adolescente que 
desde sempre teve acesso à Wikipedia e ao Xvideos. O resultado é 
vibrante, provocativo, verdadeiro e — aí vai depender também do leitor —
 excitante.
É impossível ler “Maidenhead” sem pensar em Sasha 
Grey. Se você não sabe quem é, nasça de novo nos últimos 35 anos e 
instale internet em casa. Berger nunca a menciona, mas seu livro está 
bastante sintonizado com o êthos pornô-intelectual da atriz. Assim como 
Grey, Myra é uma garota incrivelmente articulada que lê Bataille e 
Simone Weil para escrever um ensaio sobre a escravidão para o colégio. 
Sasha Grey, pelo que se pode apreender de suas entrevistas e 
performances, vê a pornografia como um ato político e atua de tal forma 
que a degradação parece ser incapaz de degradá-la. O que vemos em seus 
vídeos é uma espécie de entrega consciente, verborrágica e autoritária, 
por meio da qual ela se apodera da degradação, que é o inverso de querer
 eliminá-la. Me parece que é exatamente isso que a jovem protagonista de
 “Maidenhead” tenta fazer, à sua maneira. O efeito no potencial 
onanístico é controverso, mas o significado é contundente.
  
 
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