sexta-feira, 22 de junho de 2018

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Uma obra de arte que valha o tempo que se gasta com ela provoca, mais do que admiração pelo autor, um certo nervosismo, uma ansiedade por símbolos e interpretações. Esse ponto foi bem explorado pela escritora norte-americana Susan Sontag em seu famoso ensaio “Contra a interpretação” de 1966. No texto, a autora tomava a obra de Franz Kafka como o exemplo mais didático desse tipo de sentimento (ou sentimentalismo) na literatura. Confrontado com a elipse e as tramas abertas do escritor tcheco, cada leitor apressava-se em buscar em usa obra o espelho que melhor o refletisse. Interessados em política liam Kafka como um cronista sombrio da burocracia moderna, um crítico precoce do totalitarismo; adeptos da psicanálise enxergavam em seus livros o medo do pai opressor (o pai de Kafka era, ao que tudo indica, um tirano); os mais religiosos viam no destino arbitrário do protagonista de O Processo a justiça tortuosa e inefável de Deus. A ironia contida em todas essas interpretações é a mesma. Se o objetivo fosse só ilustrar um sistema fechado de sentidos, seria sempre mais fácil, por questões de educação e polidez, explicar os símbolos, e poupar o leitor de centenas de páginas.

Pode-se ver um pouco dessa ansiedade interpretativa na celebração recente da obra de Raduan Nassar fora do país. Desde que foi publicado pela primeira vez em inglês, em janeiro deste ano (2016), na coleção Modern Classics da editora Penguin, o autor tem chamado mais e mais a atenção de leitores estrangeiros. Em março, Nassar foi indicado ao Man Booker International Prize, o prêmio literário mais prestigioso do Reino Unido; em maio venceu o Prêmio Camões. Resenhas elogiosas apareceram no Independent, The Times e The Guardian. Nesses textos, críticos estrangeiros lutam para decifrar o poder narrativo do escritor brasileiro, até então pouco conhecido por lá. As análises sobre Um Copo de Cólera, o melhor livro de Nassar, são particularmente interessantes.


A história é conhecida. Um homem recebe uma mulher em sua chácara. Os dois transam, depois tomam banho. Na manhã seguinte, em um momento contemplativo, o homem vê saúvas destruindo a cerva viva da propriedade. Ele se irrita (“filhas da puta, filhas da puta!”), e o equilíbrio do casal, frágil desde o início, desaba. O homem e a mulher começam um bate-boca. A discussão termina em violência.

Nassar conta essa história simples numa prosa bela e excêntrica, de frases longuíssimas que formam capítulos inteiros, sem nunca perder a cadência. Assim como em Kafka, assim como em Thomas Bernhard, o estilo peculiar e virtuoso despejado em uma trama cristalina e concisa (o livro, em formato pequeno, tem apenas 84 páginas) produz um efeito de absinto despejado em estômago meio vazio – e a embriaguez do leitor, como toda embriaguez, contará com uma ponta de megalomania. Símbolos, parábolas, alegorias políticas: toda sugestão valerá como explicação. Em sua resenha no Guardian, Nicholas Lezard, que considerou Um Copo de Cólera um dos livros mais eróticos que ele já leu, lembra que a novela foi publicada durante a ditadura militar brasileira, e alude à relação de poder entre o casal, uma relação de “controle e resistência”. Stefan Tobler (tradutor do livro para o inglês), em texto para o Independent, vê na discussão furiosa entre o casal “as terríveis questões de gênero e classe” e “as desigualdades da sociedade brasileira”.

As interpretações são válidas (e as resenhas resultam bem mais engenhosas que esses trechos sugerem). Mas a ninguém ocorre pensar que a história talvez seja mais mundana e concreta. Um homem, uma mulher, a transa, a manhã seguinte, as saúvas, o bate-boca, o tapa.


Língua peçonhenta – Alejandro Chacoff – Piauí 119


(Imagem via Pinterest)

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