O Jogo e a Poesia (J.Huizinga) VIA
"Enumeremos mais uma vez as características que
consideramos próprias do jogo. É uma atividade que se processa dentro de certos
limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número
de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade
material. O ambiente em que se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e
torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada
por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e
de distensão.
Ora, dificilmente se poderia negar que estas qualidades são
próprias da criação poética. A verdade é que esta definição de jogo que agora
demos também pode servir como definição de poesia. A ordenação rítmica ou
simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o
disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases,
tudo isto poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito
lúdico. Não é de modo algum uma metáfora chamar à poesia, como fez Paul Valéry,
um jogo com as palavras e a linguagem: é a pura e mais exata verdade.
Não é apenas exterior a afinidade existente entre a poesia e
o jogo; ela também se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora. Na
elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um tema, na expressão de
um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico. Seja no
mito ou na lírica, no drama ou na epopéia, nas lendas de um passado remoto ou
num romance moderno, a finalidade do escritor, consciente ou inconsciente, é
criar uma tensão que “encante” o leitor e o matenha enfeitiçado. Subjacente a
toda escritura criadora está sempre alguma situação humana ou emocional
suficientemente intensa para transmitir aos outros essa tensão. Mas o problema
é que não existe um grande número dessas situações. Em termos gerais, pode-se
dizer que essas situações surgem do conflito ou do amor, ou da conjunção de
ambos.
Ora, tanto o conflito quanto o amor implicam rivalidade ou
competição, e competição implica jogo. Na grande maioria dos casos, o tema
central da poesia e da literatura é a luta – isto é, a tarefa que o herói
precisa cumprir, as provações por que ele tem que passar, os obstáculos que ele
precisa transpor. Já é suficientemente esclarecedor o uso da palavra “herói”
para designar o personagem principal. A tarefa será extraordinariamente
difícil, aparentemente impossível. Em geral, ela é empreendida em consequência
de um desafio, de uma promessa ou de um capricho da pessoa amada. Todos estes
temas nos conduzem de volta ao jogo agonístico. Uma outra série de motivos de
tensão assenta no disfarce da identidade do herói. Ele se apresenta incógnito
quer por estar deliberadamente ocultando sua identidade, ou por ele próprio a
desconhecer, ou ainda, porque é capaz de mudar sua aparência conforme sua
vontade. Em outras palavras, ele usa uma máscara, aparece sob um disfarce, é
portador de um segredo. Uma vez mais nos encontramos próximo do velho jogo
sagrado do ser oculto que se revela apenas aos iniciados."