Sobre a escrita, Michel Laub
Não existem regras para se escrever ficção. Ou melhor, não existem regras gerais. Cada autor encontrará as que são invioláveis no próprio caso, digam elas respeito a gramática, horários, quantidade de luz na escrivaninha, ruína financeira e conjugal.
A metodologia também se adapta ao tipo de literatura
almejada. Em “Sobre a Escrita”, livro de 2000 lançado há pouco no Brasil pela
Suma das Letras (R$39, 90, 256 págs., tradução de Michel Teixeira), Stephen
King fala da necessidade de ler muito e ter autocrítica, dicas vagas o bastante
para não estragar a diversidade literária do mundo nem o entusiasmo de ninguém.
Mas parte do que é dito no texto serve mesmo para quem quer seguir o modelo
de... Stephen King.
É fundamental, portanto, identificar onde está a autoridade
de quem publica tratados do gênero. A do autor de “Sobre a Escrita” é diversa
das de Mario Vargas Llosa (“Cartas a um Jovem Romancista”), Francine Prose (“Para
Ler como um Escritor”), James Wood (“Como Funciona a Ficção”) e tantos outros.
Se a literatura trabalha com elementos como linguagem,
eficiência narrativa e densidade estética, King tem muito a dizer sobre o
segundo deles. Em determinada passagem, ele se dispõe a fazer um exercício com
o leitor, imaginando uma personagem feminina ameaçada pelo marido violento, e
bastam três ou quatro parágrafos para percebermos que estamos diante de um
mestre em manter nosso interesse por meio de ritmo e elementos de cena.
Já seus conselhos sobre linguagem são duvidosos, a não ser
que se busque a transparência e comunicabilidade de certa tradição anglo-saxã
de literatura gótica/psicológica, na qual advérbios não são “amigos” e a voz
passiva equivale à de “menininhos usando bigodes de canetinha e menininhas
andando com os saltos altos da mamãe”.
É preciso boa vontade para dar crédito a quem deita regras
sobre prosa usando imagens às vezes óbvias ou constrangedoras. Para King, o
escritor que junta frases dispersas “se sente como Victor Frankenstein”. Páginas
com parágrafos curtos são “tão arejadas quanto um desses chocolates aerados”. E
a surpreendente descoberta de que “falar bem faz parte da sedução” ainda
precisa ser complementada: “Se não fosse, por que tantos casais começariam a
noite jantando e a terminariam na cama?”
Quanto à densidade estética, ou aquilo que faz uma obra ter
valor literário para além do mero relato, King fica menos assertivo e melhora a
pontaria. Com razão, ele acredita que a prática não faz o escritor ruim virar
bom, nem o bom virar excepcional, mas pode ajudar quem é competente a se tornar
um pouco mais do que isso.
Considerando que o talento é inato, ou adquirido em algum
ponto misterioso da infância ou da juventude, a compensação possível fora do
trabalho duro passa a ser a experiência. Que também não obedece a fórmulas: ela
pode estar num navio pirata na África ou num casamento tedioso do Itaim Bibi,
na lavanderia onde o King iniciante lidava com toalhas cheias de vermes ou no
baronato maduro de seus 350 milhões de exemplares vendidos.
A isso eu acrescentaria, aproveitando o que o autor conta
sobre sua biografia, incluindo a fase de alcoólatra e viciado em que produzia “com
o coração a 130 batimentos por minuto e cotonetes enfiados no nariz”, que é
preciso lidar com a ansiedade. E com a depressão. E com a vaidade. E com a
falta de autoestima.
Nos últimos dois casos (e, pensando bem, nos dois
primeiros), recomendo um exercício: se sua autoimagem é a de um gênio, tente
lembrar de quantas vezes alguém que não é seu amigo disse algo assim de você.
Se sua autoimagem é a de um idiota, dê uma boa olhada nas pessoas consideradas
geniais ao seu redor.
Lidar com os próprios fantasmas, o que alguém menos
romântico/ingênuo chamaria de “o próprio tamanho” ou “o próprio temperamento”,
é tão importante quanto encontrar a técnica certa para que os anseios do
artista se expressem de maneira adequada. Para ele, claro, e às vezes para mais
ninguém.
Não importa: havendo certeza de que se fez o melhor diante
das circunstâncias de cada livro, nas quais se incluem os itens pessoais e
universais acima listados, o resto - para
o bem e para o mal - já não depende de
nós.