Luli Radfahrer escreveu "Nunca se leu tanto sobre tão pouco"
"Não se lê mais nada, dizem. Em uma época
multiconectada não sobra interesse ou atenção para ler pouco mais do que um
tuíte, uma publicação no Facebook ou uma lista do Buzzfeed se apressam a
vaticinar. Textos de jornais são encurtados, revistas diminuem as páginas
editoriais e até mesmo blogs encolhem a extensão de suas opiniões formadas
sobre tudo.
TL:DR, diz-se em inglês, acrônimo para “longo demais: não
li”, uma expressão típica dos tempos atuais. Sua interpretação tanto critica o
autor por seu falho poder de síntese quanto procura redimir o leitor
preguiçoso, justificando qualquer conclusão apressada que ele tire a partir de
uma leitura diagonal.
Mas alguns fatos não fazem sentido nessa lógica rasteira. A
série “Harry Potter”, por exemplo, se estendeu por mais de 3.000 páginas,
devoradas por leitores de todas as idades. A trilogia de “Senhor dos Anéis”
passou das 1.200 páginas. As “Crônicas de Gelo e Fogo”, cinco calhamaços de
Game of Thrones, chegam a cerca de cinco vezes esse volume. Os vampiros fosforescentes
de Crepúsculo agonizaram por mais de 2.400 páginas e até a sua derivação mais
popular, a trilogia pornô soft de “50 Tons de Cinza”, passou das 1.500 páginas.
Esses livros, ao contrário de clássicos como “O Gene
Egoísta”, “A Origem das Espécies” e “O Capital no século 21”, dos quais todos
falam e praticamente ninguém admite tê-los completado, são best-sellers
extensamente debatidos. Muito antes de chegarem a versões cinematográficas,
cada um deles foi mais comentado do que qualquer peça de Sartre, Camus ou
Dostoiévski na década de 1960. Uma possível explicação para tal fenômeno
poderia ser que Dawkins, Darwin e Piketty sejam ensaístas e talvez não haja
mais tempo ou interesse para se ler profundamente alguma teoria.
Mas isso não explicaria por que as novas histórias são tão
populares, nem porque sua fama não se reflete em outras sagas extensas e
complexas, como “Guerra e Paz”, “Os Miseráveis” ou “Em Busca do Tempo Perdido”.
Enquanto Tolkien e George Martin são cultuados, quase não se fala em Tolstói,
Victor Hugo e Proust. O que J. K. Rowling tem de melhor do que Charles Dickens?
Na verdade, nada. A história de “Harry Potter” é, em termos
de narrativa, bastante limitada e previsível. Seus personagens, mesmo surgidos
da mesma cultura e ambientados no mesmo cenário do que os de Dickens, são
simplórios. Entre as conversas de fãs, apreciadores ou curiosos que leram
alguns dos livros e assistiram a boa parte dos filmes, fala-se muito mais das
cenas e personagens formidáveis (como as escadas que se movem, o chapéu que
escolhe a escola de cada candidato ou a loja de varinhas mágicas) do que de
eventuais sutilezas, ambiguidades ou conflitos de seus personagens.
Transferir esses comentários para histórias de outras épocas
seria tão estranho quanto hoje alguém comentar o cenário de um filme como “Rede
de Intrigas”, o mobiliário do hotel de “O Iluminado”, a maquiagem de Amargo
Regresso, os efeitos especiais de “Sonata de Outono” ou o figurino de “O
Expresso da Meia-Noite”.
No entanto é isso o que acontece. Nessas e em várias outras
obras contemporâneas, as histórias acontecem em construções artificiais,
aparentemente reais, verossímeis, distantes, sem autoconsciência, crítica
social, ironia ou questionamento. Réplicas de réplicas de réplicas, seus
universos têm cada vez menos conteúdo, por mais que sejam cada vez mais ricos
em objetos.
A consistência interna e complexidade dos mundos mágicos de
Hogwarts, Westeros e Terra Média faz com que seus leitores desenvolvam uma nova
forma de interação com o texto. Em vez de projetar suas reflexões para o mundo
real e analisar, por meio delas, formas de compreender e alterar o mundo,
gasta-se uma quantidade gigantesca de energia a imaginar detalhes de mundos
imaginários, distantes demais para criarem conflitos.
Nesses mundos, o universo é limitado e previsível, e não
sobra para o leitor mais do que absorvê-lo em seus mínimos detalhes. A metáfora
e a descrição do mundo são plastificadas e transformadas em fetiche, prendendo
o leitor a uma redoma de conteúdo e estimulando-o a saber cada vez mais sobre
cada vez menos.
Ao contrário das histórias de Alexander Soljenítsin, o mundo
das “sagas” de fantasia é sanitário como um parque temático. Seu universo
artificial é apresentado com a mesma lógica interna dos discursos políticos,
das seitas religiosas e das campanhas de marketing. Cabe a seus consumidores a
passividade e bom comportamento dos frequentadores da decoração de natal em um
shopping center, em que tudo é surpreendente e nada é verdadeiramente novo.
“50 Tons de Cinza” é um bom exemplo. Surgida como “fan
fiction”, ficção criada em cima dos personagens e universo de “Crepúsculo”, que
por sua vez é um pastiche idealizado e assexuado de histórias de vampiros, é
banal e previsível. Os rituais de sexo e dominação dos livros da série são
acordados “contratualmente” por seus protagonistas; e neles, parece haver mais
de fetiche e descrição de processos do que alguma espécie de prazer, como uma
dança coreografada. Plástica e estéril, a obra é muito diferente de outros
livros de apelo eróticos e sucesso popular de outras épocas, como os livros de
Henry Miller e Anaïs Nin. Estranho o mundo em que há sadomasoquismo e dominação
politicamente corretos, uma vez que regidos por contrato.
Nos reality shows, comédias de stand-up, programas de
auditório, comentários polêmicos, jornalismo sensacionalista e teatro de
improviso, cabe aos participantes improvisar o material imediato. Esse
improviso, ao contrário do teatro épico de Bertolt Brecht, não tem a função de
contornar qualquer tipo de censura, estimular a reflexão ou desenvolver algum
tipo de postura crítica. A impressão que se tem é que sua intenção é dar algo
para manter o público ocupado a ponto que não faça perguntas incômodas.
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