"O grande romance brasileiro – Nelson Ascher
Digamos que, em algum Simpósio literário promovido pelo
governo eslovaco em Bratislava, após fazer amizade com uma escritora finlandesa
ou búlgara, eu conseguisse, mencionando a mesóclise e o infinitivo pessoal,
convencê-la dos esplendores de nosso vernáculo.
Se, do mais humilde camponês ao mais poderoso mandarim, os
habitantes da China imperial supunham viver no centro do mundo e não mostravam
muito interesse pelas terras bárbaras situadas além da muralha, os europeus,
antes de se tornarem turistas com meias brancas e sandálias em busca de sol,
costumavam ser diferentes, e sua curiosidade por paragens e povos exóticos não
tinha limites. Paulo Rónai, por exemplo, tão logo aprendeu sozinho, em Budapeste
nos anos 30, o português com o auxílio de gramáticas e dicionários, se pôs a
traduzir poesia brasileira, não a de Portugal.
Meses depois do simpósio recebo um e-mail redigido em
português escorreito pela búlgara ou finlandesa anunciando que ela aprendera
nosso idioma e gostaria agora de ler mais acerca do Brasil. Só que ela
preferiria se aprofundar não em obras historiográficas ou tratados
sociológicos, mas em romances. Feliz da vida por ter convertido uma estrangeira
à brasilidade ou ao brasilianismo, remeto-lhe Machado, Mário, Oswald,
Graciliano, Guimarães Rosa e Clarice.
Passadas várias semanas, ela me responde: "Obrigada. Os
autores que você me mandou são magníficos e, se tivessem escrito em inglês ou
francês, seriam universalmente reconhecidos. Lendo-os com atenção e
concentrando-me nas entrelinhas fui capaz de vislumbrar algo da especificidade
de seu país. Não me entenda mal: mesmo quem não saiba nada sobre sua terra pode
se deliciar com eles. Mas aí é que está o problema, pois, embora eu tenha me
deliciado, nem por isso creio saber hoje mais a respeito do Brasil do que antes
de lê-los".
Ela acrescenta que pensava em livros como os de Thomas Mann
ou Arthur Schnitzler, William Faulkner ou Scott Fitzgerald, Alberto Moravia ou
D.H. Lawrence, Louis Ferdinand Celine ou Mario Vargas Llosa. Em suma,
narrativas que, sem prejuízo da qualidade estética, oferecessem um painel amplo
e razoavelmente explícito do período histórico e da sociedade em que se
ambientam.
Quais são, me pergunta ela, os melhores romances brasileiros
sobre a era Vargas, a construção de Brasília, o golpe de 64, a ditadura militar
e a transição para a democracia? Onde estão as sagas que descrevem a trajetória
de diversas gerações de uma família italiana, árabe, japonesa ou judia desde
sua chegada a Santos no início do século 20 até os anos 90?
E as histórias de ascensão e queda individual cujo pano de
fundo sejam as transformações de São Paulo ou do Rio? Ela tampouco acredita que
não haja uma única variante local notável de um subgênero tipicamente
latino-americano, o romance sobre ditadores como "O Outono do
Patriarca", de García Márquez, ou "O Senhor Presidente", de
Miguel Angel Asturias. “Impossível", ela sublinha, "afinal vocês
tiveram o ditador mais interessante de todo o subcontinente: quem são Perón,
Trujillo, Pinochet e Castro comparados a Getúlio?".
Como é que devo retrucar? O dr. Samuel Johnson disse certa
vez a um jovem autor que seu manuscrito era bom e original, mas a parte boa não
era original e a parte original não era boa. Pois bem: o Brasil produziu ficção
boa e realista, mas a ficção boa não é especialmente realista e a ficção
realista... Insatisfeita com minha não-explicação, a finlandesa ou búlgara
insiste: "Por quê?".
Se bem que tente me desculpar argumentando que não tenho
culpa, que minha família chegou a estes trópicos apenas 50 anos atrás, ela me
cobra mais detalhes.
Eu arrisco: talvez o país seja demasiadamente extenso e
incompreensível, talvez o material necessário para estudá-lo nem sempre
estivesse à mão, talvez os autores se sentissem intimidados pelos mestres
europeus e norte-americanos ou se dirigissem a um público que, além de
reduzido, conhecia o contexto tão bem quanto eles, talvez achassem o país
maçante, repetitivo, imutável. Até nossos temas de exportação favoritos, secas
e retirantes, miséria e favelas, já foram devidamente explorados, com variações
regionais, na Rússia tzarista ou nos EUA dos tempos da Depressão.
Sua réplica não demora: "Cada obstáculo citado seria,
em outros lugares, tomado como um desafio. Por que você não pára de reclamar
como bom brasileiro (ela começou a entender nosso espírito nacional) e faz
alguma coisa? Escreva um romance!". Como não adiantaria lhe retorquir que
não sou do ramo, que não tenho jeito para a ficção (ela diria: "Isso não é
desculpa"), resta-me somente expor-lhe as razões que levam algumas pessoas
a não escreverem romances.
O romance, um gênero intrinsecamente enciclopédico que Hans
Magnus Enzensberger qualificou de educação sentimental da classe média, pode
ser sobre tudo. Esse tudo, no entanto, reduz-se em 99% dos casos, a três
assuntos principais: a grandeza humana, a sordidez humana (da qual o ridículo
humano é uma subcategoria) e o tédio da existência humana. Para falar da
grandeza humana, eu, sem conhecê-la de primeira mão, seria forçado a recorrer
ao plágio e chegaria, com sorte, ao realismo socialista. Quanto à sordidez
humana, é duro para a imaginação competir com o noticiário, e copiá-lo, como
Truman Capote fez em "A Sangue Frio", parece redundante. Escrever
sobre o tédio, por sua vez, contribui apenas para aumentá-lo.
Tendo lhe enviado minha tréplica, não espero ver e-mails da
búlgara ou finlandesa tão cedo em minha caixa de correio.
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