Os resíduos do dia em quatro semanas + 2 comentários
a)Kazuo Ishiguro
VIA Blog da Cia das Letras
Como escrevi Os resíduos do dia em
quatro semanas
Por Kazuo Ishiguro
Texto originalmente publicado no The Guardian. Tradução de
Carlos Alberto Bárbaro.
* * *
A jornada de trabalho da maior parte das pessoas é extensa.
Mas se o negócio é escrever romances, todos concordam que após quatro ou mais
horas escrevendo sem parar, a produtividade cai. Eu sempre comprei essa versão,
mas à medida que o verão de 1987 se aproximava, acabei por me convencer de que
uma abordagem drástica era necessária. Com o aval de Lorna, minha esposa.
Até então, desde que havia deixado de trabalhar regularmente
nos últimos cinco anos, eu fora capaz de estabelecer um ritmo razoável de
trabalho e produção. Minha primeira onda de sucesso de público, após meu
segundo romance, trouxe consigo, no entanto, um punhado de distrações.
Propostas tentadoras de evolução na carreira, convites para jantares, festas e
viagens ao exterior, além de montanhas de cartas, não conseguiram senão acabar
com a minha rotina “adequada” de trabalho. Eu tinha redigido o capítulo de
abertura para um novo romance no verão passado, mas agora, quase um ano depois,
não havia progredido em nada.
Então Lorna e eu concebemos um plano. Nas quatro semanas
seguintes, sem dó nem piedade, eu cancelaria minha agenda e procederia ao que enigmaticamente
chamamos de “o confronto”. Durante “o confronto”, eu não faria nada senão
escrever, das nove da manhã até às dez e meia da noite, de segunda a sábado,
com uma hora para o almoço e duas para o jantar. Eu não abriria, responder nem
pensar, nenhuma correspondência e não chegaria nem perto do telefone. Não
receberíamos ninguém em casa. E nesse período, e a despeito de sua agenda
particularmente carregada, Lorna também assumiria a minha parte na cozinha e na
limpeza da casa. Esperávamos, assim, que não somente eu produziria
quantitativamente mais como atingiria um estado mental em que o meu mundo
fictício seria mais real para mim do que o real de fato.
Eu tinha 32 anos, e tínhamos acabado de mudar para uma casa
em Sydenham, sul de Londres, onde pela primeira vez na vida eu tinha um
verdadeiro estúdio. (Meus dois primeiros romances tinham sido escritos à mesa
do jantar.) Era na verdade uma espécie de conjugado a um lance de escadas, sem
porta, mas eu estava emocionado por ter um espaço onde eu pudesse espalhar meus
papéis ao redor do jeito que quisesse sem ter de arrumar tudo ao final de cada
dia. Enchi a parede descascada com mapas e notas e comecei a escrever.
Foi assim, basicamente, que Os resíduos do dia foi escrito.
Durante “o confronto”, eu escrevi sem censura, não me importando com o estilo
ou se algo que eu escrevera à tarde contradissesse algo que eu definira na
história pela manhã. A prioridade era simplesmente deixar as ideias brotarem e
florescerem. Frases horríveis, diálogo dantesco, cenas que não davam em nada,
eu as deixava por ali e continuava a escavar.
No terceiro dia, Lorna mencionou, durante a minha pausa
noturna, que eu estava me comportando de modo estranho. No meu primeiro domingo
de folga eu me aventurei ao ar livre, na rua principal de Sydenham, e não
parava de dar risinhos — pelo menos foi o que Lorna me contou — pelo fato da
rua ser uma ladeira, fazendo assim com que as pessoas que desciam tropeçassem
em si mesmas, enquanto os que subiam se esfalfavam e cambaleavam com o esforço.
Lorna se preocupou pelo fato de eu ainda ter mais três semanas nesse processo,
mas eu assegurei a ela que eu estava muito bem e que a primeira semana tinha
sido um sucesso.
Continuei assim por quatro semanas, e ao fim de tudo tinha
mais ou menos concluído o romance: claro que ainda seria preciso muito mais
tempo para acertar a escrita de modo apropriado, mas todos os avanços
imaginativos vitais tinham se dado durante “o confronto”.
A bem da verdade, no momento em que assumi “o confronto” eu
já tinha feito um bocado de “pesquisa”: livros de e sobre mordomos britânicos;
sobre política e relações exteriores no entreguerras; muitos panfletos e
ensaios da época, notadamente o de Harold Laski sobre “Os perigos de ser um
cavalheiro”. Havia pilhado as prateleiras de livros usados da livraria do
bairro (Kirkdale Livros, ainda uma próspera independente) em busca de guias
sobre o interior da Inglaterra entre os anos 1930 e 1950. A decisão sobre
quando começar de fato a escrever um romance — de começar a compor a história
em si — sempre me pareceu o momento crucial. Quanto se deve saber antes de
começar a escrever? Começar cedo demais é prejudicial, assim como começar
demasiado tarde. Creio que no caso de Resíduos eu tive sorte: “o confronto”
veio no ponto preciso, quando eu sabia exatamente o bastante.
Em retrospecto, identifico todos os tipos de influências e
fontes de inspiração. A seguir, dois dos menos óbvios:
1) Em meados dos anos 1970, ainda adolescente, assisti a um
filme chamado A conversação, um suspense dirigido por Francis Ford Coppola. No
filme, Gene Hackman é um especialista em vigilância autônomo, o cara a quem
apelam os que querem grampear e gravar em segredo as conversas de outros.
Hackman deseja obsessivamente ser o melhor em seu campo — “o maior grampeador
da América” —, mas fica cada vez mais incomodado ao perceber que as gravações
que ele fornece a seus poderosos clientes podem gerar graves consequências, até
mesmo assassinato. Creio que o personagem de Hackman foi um modelo inicial para
Stevens, o mordomo.
2) Certa noite, quando eu já dava o Resíduos por terminado,
ouvi Tom Waits cantando “Ruby’s arms”. É uma balada sobre um soldado que não
acorda sua amada ao sair para embarcar no trem de madrugada. Até aí, nada de
estranho. Mas a música é interpretada na voz roufenha do típico deslocado
americano totalmente incapaz de reconhecer suas emoções. A certa altura, quando
o cantor declara que seu coração está partido, isso é quase insuportavelmente
emocionante, por conta da tensão entre o sentimento em si e da enorme
resistência em, obviamente, conseguir ser capaz de expressar isso em palavras.
Waits canta o trecho com magnificência catártica, e é possível sentir toda uma
vida de estoicismo durão desmoronando frente a uma tristeza esmagadora. Ao
ouvir isso, eu reverti uma decisão que tinha tomado, a de que Stevens
permaneceria emocionalmente travado até o fim amargo. E eu decidi que em apenas
um ponto — e um que eu teria que escolher com muito cuidado — sua rígida
barreira iria rachar, e um até então trágico e oculto romantismo seria
vislumbrado.
b)Sergio Rodrigues
VIA Todoprosa
A lição de Ishiguro: quanto menos
vida real, melhor
Entre os temas sobre os quais os escritores são chamados a
responder com frequência, o da “rotina de trabalho” deve estar no topo da lista
ou bem perto dele. São muitas as perguntas que cabem nessa categoria. Você
escreve todos os dias? Tem uma meta de produção? Um número fixo de horas?
Manhã, tarde ou noite? Observa algum ritual, alguma superstição? Desconecta-se
da internet para escrever? Desliga o celular?
Sim, o interesse por tal tipo de informação sobre os
bastidores da escrita é em grande parte fetichista, uma forma de atribuir à
criação literária uma aura mágica (“Como você consegue?”), recusando a ideia de
que escrever é nada mais que um trabalho – com suas peculiaridades, claro, mas
um trabalho. Como ocorre em todo ofício, cada trabalhador deve encontrar os
métodos e rotinas que mais lhe convenham.
O risco do fetichismo é levar os incautos a se fixar no
acessório e descuidar do principal. Dizem que Ernest Hemingway gostava de
descascar um certo número de laranjas antes de começar a escrever, mas pode-se
afirmar com absoluta certeza que nenhuma atividade envolvendo frutas cítricas
jamais levou ninguém a desenvolver um estilo tão cortante e conciso quanto o do
autor de “Por quem os sinos dobram”. Descascar lápis e mais lápis, apontando-os
para escrever e reescrever até os dedos doerem, sim.
Em 2013, comentei aqui no blog um divertido texto em que a
escritora inglesa Zadie Smith contava ter recebido de uma amiga, em seus tempos
de aspirante, a informação de que Ian McEwan limitava sua produção diária a
escassas quinze palavras. Era uma informação falsa, claro, mas Zadie ficou
muito impressionada com aquilo. O limite absurdo a angustiou por anos a fio.
Nada disso quer dizer que não haja informações aproveitáveis
nos bastidores da criação literária. O blog da Companhia das Letras publicou
esta semana um texto fascinante do escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro (foto
acima), chamado “Como escrevi ‘Os resíduos do dia’ em quatro semanas”, que
recomendo a todos. Não se trata de receita: além de não haver dois escritores
iguais, não há dois livros iguais do mesmo escritor, o que complica o jogo ao
infinito. Mas o artigo tocou numa corda que para mim soou profundamente
verdadeira.
Com o apoio de sua mulher, Ishiguro decidiu levar adiante o
plano ousado de, por quatro semanas, isolar-se de tudo – telefone,
correspondência, contato com amigos, afazeres domésticos – e escrever todos os
dias, de segunda a sábado, das 9h às 22h30, parando uma hora para o almoço e
duas para o jantar. A ideia era atingir “um estado mental em que o meu mundo
fictício seria mais real para mim do que o real de fato”. Deu certo.
Reconheci imediatamente esse estado mental estranho como
algo que experimentei nos momentos mais ricos da minha própria experiência de
escrita: as semanas de férias que passei sozinho numa casa na serra fluminense,
sem trocar uma palavra com ninguém, quando escrevi “As sementes de Flowerville”
e, mais tarde, “Elza, a garota”; e sobretudo os quinze dias de solidão numa
pousada em Paraty, entre setembro e outubro de 2012, que deram forma definitiva
à maçaroca desconexa que “O drible” tinha se tornado.
Os livros não foram inteiramente escritos naqueles dias de
isolamento – o de Ishiguro também não. Mas foi em tais momentos de atenuação
induzida da realidade, de volume do mundo reduzido ao quase inaudível, que tive
os maiores acessos de lucidez e tomei as decisões mais importantes sobre eles.
Uma medida de desconexão com o real parece ter sido necessária para que eu
mesmo passasse a acreditar nos meus “mundos fictícios”, deixando-os quase ao
alcance dos sentidos – e se nem o autor acredita neles, como esperar que o
leitor o faça?
Sem querer romantizar nada, muito menos a loucura, acho que
o escritor americano E.L. Doctorow não se refere a nada diferente disso quando
diz que “escrever é uma forma socialmente aceita de esquizofrenia”. É possível
que contistas e poetas tenham histórias diferentes para contar. No caso dos
romances, com o fôlego longo que exigem, fico tentado a enunciar uma lei
universal: a de que alguma medida de alienação controlada é imprescindível ao
processo criativo. Como conciliar isso com as demandas da vida real, eis o
problema que cada um precisa resolver sozinho.
c)Carol Bensimon
VIA Blog da Cia
Romances a jato, competições
estranhas e a carta dos Beats
13 janeiro 2015
Kazuo Ishiguro escreveu sobre escrever um romance em quatro
semanas. Em um texto originalmente publicado no Guardian e reproduzido neste
blog, o autor conta como concebeu Os resíduos do dia em um rígido esquema que
previa 10 horas de escrita diária, nenhum convívio social e a suspensão
temporária de todas suas obrigações domésticas (como cozinhar e limpar a casa).
Quem leu Os resíduos do dia sabe que esse é um livro ambientado no interior da
Inglaterra, período entreguerras, com foco na rotina segregada de um mordomo,
na acepção mais britânica e radical da palavra. Estou dizendo isso para que
ninguém se iluda com essa sensação de que
um-livro-ótimo-foi-escrito-em-quatro-semanas, eu também posso fazer etc.: o
próprio texto de Ishiguro deixa claro que ele havia sido tragado anteriormente
por uma extensa pesquisa (“livros de e sobre mordomos britânicos; sobre
política e relações exteriores no entreguerras; muitos panfletos e ensaios da
época, notadamente o de Harold Laski sobre Os perigos de ser um cavalheiro.
Havia pilhado as prateleiras de livros usados da livraria do bairro [Kirkdale
Livros, ainda uma próspera independente] em busca de guias sobre o interior da
Inglaterra entre os anos 1930 e 1950”). Além disso, foi preciso tempo depois
(ele não especifica quanto) para que suas “frases horríveis, diálogo dantesco,
cenas que não davam em nada” fossem transformadas no romance que conhecemos
hoje.
O.k., esse livro então não foi escrito em quatro semanas.
Mas vamos supor que sim, que o que conta de fato é essa espinha dorsal da obra,
não a pesquisa anterior, não o trabalho de formiga de depois, mas o jorro das
quatro semanas em que todo o resto da vida parou. A questão que me deixa a
pensar a partir disso é: por que nos importamos tanto com o fato de que esse
livro foi escrito em quatro semanas? Por que o fato de Kazuo Ishiguro, ótimo,
reconhecido autor de relativo sucesso comercial, ter escrito um de seus livros
(não todos) em quatro semanas subitamente parece significar que qualquer um
pode fazer a mesma coisa com qualquer livro? Será que não é mais fácil para
qualquer um tentar escrever um livro em dois ou três anos, uma vez que esse
tempo de escrita parece ter gerado mais livros significantes do que as raras
quatro semanas de imersão?
Algumas coisas — escrever romances é uma delas — nos
demandam muito tempo. Isso é mais difícil de aceitar hoje do que foi em
qualquer outra época. É a época do TED, em que pessoas ficam num palco feito
baratas tontas e com a fala acelerada tentando transmitir “uma ideia geral”
sobre algo que provavelmente consumiu boa parte de suas vidas. E é como se
pedissem desculpas o tempo todo por estarem ocupando tanto tempo (15 minutos?)
das nossas vidas!
* * *
Existe um evento nos Estados Unidos chamado National Novel
Writing Month. Ele acontece em novembro desde 1999 e convoca as pessoas a
escreverem um romance de 50.000 palavras em um único mês. Segundo um artigo da
crítica literária Laura Miller, que contesta fervorosamente essa competição
pueril e sem sentido, 21.683 pessoas cumpriram a meta em 2013.
As considerações de Miller valem a leitura porque, além de
demonstrarem o quanto é infrutífera uma ação que prevê a escrita alucinada de
novelas ruins, tratam de um tipo que eu, ingênua, acreditava mais presente no
mundo literário brasileiro: o aspirante a escritor que não lê.
— O que você lê?
— Ah, eu não tenho tempo para ler. Estou me concentrando na
minha escrita.
* * *
Difícil encontrar na internet o tempo que grandes clássicos
da literatura universal levaram para ser escritos, mas as dicas para elaborar
um romance em poucas semanas estão por todos os lados. Não tenho a mínima
paciência para elas, no entanto me senti impelida a clicar em um link que
listava seis romances famosos escritos em menos de um mês (de novo a lógica TED
de encarar a vida: por que não nos preocupamos mais com os romances famosos que
demoraram anos para chegar a sua forma final?). E lá estava On the road.
Ora, claro que eu já ouvi muitas vezes aquela história sobre
o rolo de papel interminável e Jack Kerouac por sei lá quanto tempo
datilografando sem parar. Mas acontece que, nos últimos meses, por conta de uma
série de leituras (isso, leituras!), acho que entendi melhor uma porção de
coisas envolvendo esses caras da Geração Beat. E inclusive, numa sincronia
quase irreal, descobri uma história fascinante: em 1950, Jack Kerouac recebeu
de Neal Cassidy uma carta. O.k., isso não era propriamente um acontecimento,
uma vez que eles trocavam cartas com regularidade. Mas essa carta específica em
que Cassidy descreve seu relacionamento com uma mulher chamada Joan Anderson ia
entrar para a história porque a prosa de Cassidy no documento alucinado de 18
páginas causou uma pequena revolução na literatura de Kerouac e de Allen
Ginberg. De repente, eles entenderam que era daquele jeito que tinham de
escrever. Nessa altura, Jack já tinha escrito sobre suas aventuras na estrada.
Então, em 1951, ele sentou e reescreveu tudo sob influência da Joan letter de
Cassidy. Mas tudo tinha começado em 1948.
O final dessa história eu relato apenas porque é uma boa
história, ainda que ela também nos diga alguma coisa sobre tempo, sobre
descontrole e a aceitação de tudo isso. Kerouac emprestou a carta para
Ginsberg, que estava igualmente fascinado por ela. Em algum momento, Ginsberg
mandou a carta para uma editora de São Francisco. A carta se perdeu, era única,
ninguém mais além de um punhado de pessoas jamais leu essa carta. E então foi
achada dois meses atrás. Dois meses atrás. Alguém morreu, a filha vasculhou as
coisas do pai, lá estava a carta. Depois de mais de 60 anos. A carta ia a
leilão, mas há alguma discussão nesse momento a respeito de direito autoral,
sabe-se lá o que vai acontecer agora. De qualquer maneira, espero que a carta
esteja acessível para o grande público em breve. E que nenhum aspirante a
escritor assista a uma futura apresentação do TED sobre ela em vez de ler a
maldita carta de 18 páginas.