Kurt Vonnegut via Sergio Augusto
"Garanto a você que nenhum esquema narrativo moderno, nem mesmo a
ausência de enredo, dará ao leitor satisfação genuína, a menos que uma
daquelas tramas à moda antiga seja contrabandeada para dentro da
história. Não defendo a trama como representação acurada da vida, mas
como forma de manter o leitor lendo. Quando eu dava aulas de criação
literária, costumava recomendar aos estudantes que fizessem seus
personagens desejar alguma coisa imediatamente
– mesmo que apenas um copo d’água. Personagens paralisados pela
ausência de sentido da vida moderna ainda precisam beber água de vez em
quando. Um dos meus alunos escreveu um conto sobre uma freira que ficou
com um pedaço de fio dental preso entre os molares inferiores e não
conseguia se livrar dele o dia inteiro. Achei isso maravilhoso. A
história lidava com questões muito mais importantes do que fios dentais,
mas o que mantinha os leitores presos era a ansiedade de saber quando o
fio dental seria finalmente removido. Era impossível ler aquele conto
sem sentir um incômodo entre os dentes. (…) Se você exclui a trama, se
elimina o desejo de alguém por alguma coisa, você exclui o leitor, o que
é uma coisa muito feia de fazer."
Não sei se a última frase, com sua generalização implacável, estará
correta: há leitores de todo tipo e alguns deles devem sentir prazer com
histórias (vamos manter a palavra, à falta de outra) absolutamente
destituídas de conflito, desejo ou mesmo personagens, blocos de arte
conceitual em que tudo o que se passa na página ocorre num plano
meramente formal. Excluir essa possibilidade também seria um erro: se a
literatura for alguma coisa, será o reino da liberdade autoral absoluta.
O que acredito que Vonnegut quis dizer é que, ao eliminar o
personagem e seu desejo por algo que ele não tem – condições básicas
para se estabelecer com o leitor um pacto narrativo de suspense e, por
fim, (in)satisfação –, a literatura exclusivamente conceitual deixa ao
relento uma imensa maioria de leitores. Isso me parece inquestionável e
não vale apenas para o realismo: nada impede que, em vez de um copo
d’água, o personagem deseje com ardor e acabe conseguindo, sei lá,
cavalgar um unicórnio ou se transportar para dentro de um videogame.
Uma rápida consulta às listas dos livros mais vendidos, quase todos
feitos de trama pura ou quase isso, basta para comprovar o que foi dito
acima. O que complica a questão é que essa preferência popular tão
categórica pela contação de histórias leva muita gente – sobretudo
críticos, mas também escritores – a menosprezar o enredo, o entrecho, a
intriga, o mistério, a surpresa como ferramentas menores da literatura,
recursos identificados com o lado ingênuo ou menos sério da arte. Algo
que deve ser eliminado ou, no mínimo, não sendo merecedor de grande
atenção, resolvido rápida e porcamente a fim de deixar o terreno livre
para o que de fato importa – seja lá o que isso for. Não duvido que em
tal erro de julgamento resida parte da explicação para que as listas de
mais vendidos do início deste parágrafo estejam há anos tão
melancolicamente despovoadas de brasileiros.
A ideia de “contrabando” sugerida por Vonnegut me parece uma
estratégia artística mais inteligente. Aquela freira às voltas com seu
fio dental torturante pode ter vivido ao longo do conto, que não nos é
dado conhecer, todo tipo de conflito casca-grossa – teológico, sexual,
linguístico, cognitivo, o diabo –, mas o leitor se veria menos disposto a
acompanhá-la em tais profundezas se não estivesse preso à história pelo
fio prosaico que ela traz entre os dentes. Estamos diante de um
inequívoco MacGuffin.
Termo mais conhecido pela turma do cinema, MacGuffin é uma palavra
popularizada por Alfred Hitchcock para designar aquele elemento da
história que impulsiona a ação dos personagens e que, no fim das contas,
descobrimos não ter tanta importância assim, pois o verdadeiro foco da
narrativa era outro. O que vale para o cinema e a TV vale também para a
literatura – ou para qualquer forma de contar histórias. Não por acaso,
um MacGuffin clássico é a estatueta que dá título ao romance “O falcão
maltês”, de Dashiell Hammett, e também ao filme de John Huston nele
baseado (batizado de “Relíquia macabra” no Brasil). Descobrimos perto do
fim que a preciosidade em nome da qual tanto sangue foi derramado é
falsa, mas isso já não tem muita importância.
Uma boa frase de autoria duvidosa, popularizada por John Lennon na canção Beautiful boy,
sustenta que “vida é aquilo que acontece enquanto você está ocupado
fazendo outros planos”. Pois história – ou pelo menos um tipo bastante
interessante de história – é aquilo que acontece enquanto estamos
ocupados imaginando o que será feito do MacGuffin. Nesse meio tempo pode
acontecer nas páginas o que o autor quiser ou puder fazer acontecer,
inclusive a arte literária mais rigorosa e exigente. Com a vantagem de
que, nesse caso, o leitor vem junto.