Faltaram dois dos Conselhos Literários Fundamentais. Para ler os anteriores, clique AQUI.
(Quem fez foi o Sérgio Rodrigues, do Todoprosa e autor de "O Drible". Imagem de Jean François Bory via Gramatologia)
IX
Pense nas palavras como amantes jogo-duro, seres neuróticos e
esquivos que, para cada noite de prazer desbragado a apontar o infinito
da posse plena, destinam ao insensato que com elas se envolve trezentas
noites de gagueira e frio e fome não saciada, de cabelos puxados no meio
do deserto no mais atroz desespero. Desconfie das palavras. Se declaram
amor, exija mais, cobre provas, invente caprichos. Se lhe dão as
costas, vá atrás. Sendo preciso chegar a tanto, implore, humilhe-se, mas
guarde uma secreta porção de orgulho ferido: ela lhe será útil quando,
após a próxima reconciliação, vocês brigarem de novo. Se desconfiar que
as palavras lhe são infiéis, é porque são mesmo. Entregam-se a qualquer
um que as saiba afagar, as vagabundas: o que são os clássicos da
literatura universal senão os autos de seu ancestral pendor pela
galinhagem? É só você que elas desprezam. Diante de suas cantadas
subitamente ineptas, reviram os olhinhos, tingem os lábios de frio
desdém. Revirar-lhes os olhinhos de prazer, morder seus lábios gulosos
será então, para sempre, a ideia fixa do escritor, o padrão-ouro de sua
vida. Coitado. Se tiver habilidade e sorte, conseguirá ter com as
palavras uns poucos momentos memoráveis, o que é ótimo, contanto que não
lhe suba à cabeça. É importante não esquecer que elas sempre vencem no
fim, sempre esnobam, vão se entregar aos outros, ao mundo, a ninguém,
deixando atrás de si, como uma cauda de cometa, o mudo turbilhão de
indiferença que é a herança de todos os seus amantes.
X
Desista se for capaz. Pode ser que, após ponderar os conselhos
anteriores e testá-los em exercícios práticos diários, angustiosos e
inconclusivos, você encontre no fundo da última gaveta da alma uma
migalha de sanidade e vislumbre, ainda que por meio segundo, a
possibilidade de uma vida de plenitude imediata em que escrever não seja
necessário, mais até do que isso, em que escrever seja tão
inconveniente quanto a música de mau gosto que vaza pela parede do
vizinho no meio da noite. Nesse caso, é altamente recomendável agarrar a
miragem e trabalhar dia e noite para fazer da fresta um caminho, da
centelha uma rota de fuga para um mundo de coisas que existem antes das
palavras ou à margem delas: amores sem versos declaratórios de
impossível originalidade, luares desprovidos de citações, equações
sonoras de Thelonious Monk fruídas com a paz resignada dos que não
buscam tradução para o intraduzível. Se for bem sucedido, você verá que
esses e outros benefícios superam com folga aquilo que terá deixado para
trás: a luta corporal contra o vento, as admirações minadas de ódio, as
recompensas risíveis, a certeza do fracasso final e, acima de tudo, o
doloroso e progressivo descolamento irônico entre o eu e qualquer ideia
possível de eu. Se for capaz de desistir, não pense duas vezes:
simplesmente desista. Mas pode ser que a esta altura seja tarde demais,
caso em que já não caberão conselhos e só me restará lhe deixar aqui
como despedida, semelhante meu, meu irmão, um voto de boa sorte.