chegou
impetuoso, arma em punho. só assim os encararia de novo. ainda estavam vivos
pelo corpo, os sulcos das navalhadas. lanhando. os olhos sempre vermelhos. mais
vermelhos que da última vez, menos intensos que da próxima. era assim o único
jeito de encará-los. chegar perto o bastante pra não ser percebido, e se
infiltrar em seus delírios. arreganhou os dentes. jamais estaria acuado de novo.
olhou cada um dos metafísicos, e ardeu em paz. era ali que estaria hoje, e
sempre.
a
mulher delirava. manchava o espaço com poesia e fumaça de cigarro. isso antes
de mudar sua voz. antes. corria seminua, fosse inverno ou verão. respeitava sua
origem alemã, trepava e suspirava espanhola. era uma vestal. avó e vestal.
dominava o ar à sua volta, só falava o necessário e metia a porrada com força.
amava e batia. derrubava e derretia. se houvesse um dos metafísicos menos
agressivo, certamente não era ela. a única coisa que a deixava vulnerável era
uma caixa revestida de couro, que levava pendurada no pescoço e onde guardava
não só seus vibradores, mas também um estojo ainda menor, no qual carregava uma
coleção de vozes e ocasiões, que misturava com algum psicotrópico.
o
mais enigmático dos metafísicos, era também o menos visível. seu maior dom o fazia
sumir por meses. alguns diziam ser coisas do espírito, retiros, chás da
amazônia. mas todos nós sabíamos que ele procurava nas coxas, e também nas
bundas de suas vítimas, a fatia perfeita, a mais precisa do universo. o certo é
que ele não viesse mais por ter encontrado em seu corpo aquilo que caçara há
anos em suas vítimas, e como não pararia até repetir o feito um milhão de vezes
bem sucedidas, estava já sem os músculos das pernas.
mal
se fechou na toalha em que as pessoas limpavam gorduras, derrubavam vinho ou
assoavam o nariz, e o silêncio parecia o fim do gozo. esperou alguns minutos,
suando. e quando o tecido estava prestes a se desfazer sob sua bunda, pôs a
cabeça pra fora e foi beijado por uma criatura de óculos que falava e cheirava
a sexo. limpou a boca com os pelos do antebraço, maiores do que seus dedos e
olhou em volta. estava num quarto onde as paredes eram de veludo vermelho,
algemas, chicotes e anões pelados. ele e a criatura, agora lambendo seu pescoço
e cortando palavras do jornal para que depois de contadas, ela as enviasse em
cartas cheias de paus, peitos, estocadas, lambidas, bucetinhas e pentelhos
ralos. um arrepio e era ele transformado no próprio pau, latejando, trocando
cartas sobre uma guerra que não venceria, com a criatura que despertava tesão
com suas palavras. estava ficando chapado com o cheiro de mil gozos. era bom.
foi mordido nos lábios, sangrou de excitação e fechou os olhos naquela dor,
quando abriu era um dinossauro que agora baforava vapores e quilômetros de
cabos de fibra ótica e luzes de led em sua cara.
estava
em uma caverna, uma toca que tinha no fundo uma luz azulada proveniente da
parede feita de monitores, todos conectados em interfaces interplanetárias,
blogs de um minuto e em sites de putaria. o dinossauro vivia bem, embora sua
biblioteca sufocasse olhos desacostumados. antes era bem maior – o dinossauro
ajeitando os óculos e coçando a bunda com uma parafernália que ficava presa em
sua boca e lembrava uma caneta. daí ela foi diminuindo na medida em que fui
comendo os exemplares e na medida em que os carteiros deixaram de vir, o
dinossauro tomando uma gelada e oferecendo a mama a um cara de jaleco branco
que lhe tirava os vermes das costas, e comia o que sobrou entre seus dentes. no
lado oposto à parede de monitores, bem na entrada, tinha uma sombra que
ameaçava entrar, mas não se decidia. era outro metafísico, exigindo impaciente
pela espera.
esse tinha asas e ameaçava voar a qualquer
minuto, de sua boca, quando ele tossia, ou sorria, escorriam amazonas, dragões
e muitos magos. seu porte real, sua altura e força eram marcas de tantas lutas
escondidas, ou não, sob tatames e em seu passado. mas já não era esse o seu
tempo e embora ele pudesse matar com três movimentos – sua santíssima trindade
–, preferia mil palavras a qualquer tipo de movimento, já que agora era o mais
novo filho da terra de todos os santos. tinha aparecido pra voar comigo, pra mostrar
o mundo lá do alto. eu confiava nele, sabia que não me deixaria cair. no
caminho me contava lendas de tesouro e magia e disse que a essa altura, só
pousaríamos em segurança quando chegássemos às planícies do rei.
antes do nosso destino final, os olhos ainda
seriam enganados duas vezes. só assim a jornada seria entendida. por nós dois.
mesmo os metafísicos, já sofreram, sofrem, ou sofrerão, de abstinência de
sentido. e quando um mar inteiro deixou de lado o azul, pra transformar suas
ondas em leite e fazer brilhante um ponto escuro, uma ilha, um lugar fechado a
códigos e regras do contrário. entrei sozinho no palácio que era um clarão,
visto de fora. e por dentro era a primeira noite antes das estrelas. as portas
eram todas de espuma por fora, e por dentro crivadas de pregos. assim era todo
o primeiro pavimento, que se dividia em duas metades quase iguais. onde havia
piscinas, certamente eram de óleo quente, onde o tapete era mais felpudo, no
final era ainda um bicho vivo, um tigre, um gigolô, um herói de quadrinho banda
b; no segundo piso, tudo o que parecia uma coisa era, na verdade, uma versão
pornográfica dela mesma e depois ela mesma não era a mesma coisa pornográfica e
logo voltava a ser aquilo que nunca tinha sido pois era exatamente oposta a ela
mesma, como uma moeda girando antes de cair. um grupo de seis velhos em
suspensórios, boinas e calças no meio da bunda, davam bengaladas em tudo o que
se movesse a menos de um metro de distância, e cuspiam, e se abraçavam com
saudade, e já não era eles mesmo escorregando na própria baba, nem reclamando
dos tempos, ou peidando sem perceber, tudo o que havia era os soldados de
coturnos-paetês com lâminas nas pontas, suando em tiras de couro que se
espalhavam estrategicamente por onde os olhos pousariam, a única coisa de fora
eram seus paus enormes que eles seguravam feito uma bengala, enquanto dividiam
o mesmo suor, entre os vasos de porcelana, nos parapeitos da janelas, se
segurando nas cortinas vermelhas, ou cavalgando algum móvel, e na frente do
garoto com enxaqueca/um velho com gases de alegria, que achava tudo tão
divertido que seu sorriso parecia eterno/que achava que todas as pessoas deviam
explodir ao som daquelas gargalhadas falsas de programas de auditório,
gozando/gozando com a orgia/reunião do clube de bocha que seus súditos
involuntários/escravos livres se esforçavam/se esfregavam pra fazer parecer/pra
fuder pra valer uma revista em quadrinhos para adultos/como num filme pornô
sobre prostitutos. era um ambiente adorável e muito bem decorado. entretanto
fui embora quando ele autorizou que eu subisse ao terceiro pavimento.
o
metafísico alado tinha deixado um bilhete dizendo: fui ali. volto já. guardei
na cueca e entrei no primeiro vaporetto que passou e logo estava desembarcando
em uma rua extremamente movimentada, cheia de prédios pontiagudos, botecos,
travestis, lojas de artigos pra putas, putas, e um exu que vigiava tudo em
silêncio, onde todos falavam uma língua diferente, cheia de rr e de alguma
coisa que podia muito bem ser raiva, não fosse pelo calor que emanava de cada
coisa que se movia. e todas elas eram exatamente o mesmo rosto moreno, de
cabelo curto e preto, cavanhaque de resolver conflitos violentos, olhos de
dobermann prestes a atacar, e um abraço de urso que derretia os cubos de gelo e
transformava-os na cerveja que era consumida ali pelas tantas, pelas putas,
pelos bêbados, pelos padres e, principalmente, pelos tradutores responsáveis
por estabelecer contato com os outros povos, fossem eles hostis e assustados,
ou não. mesmo sem entender nada do que diziam e me assustando cada vez mais com
o que ouvia, tinha um carinho de ficar, uma vontade, mas não dava, atrás do
bilhete tinha um p.s.: como sempre, o rei está cansado de te esperar. vai logo,
porra!
ao
sair daquela rua e do frio que lembrava alguma parte da europa, entrou na
primeira casa com cara de comercial de margarina, cercas brancas, meia dúzia de
porcos nos fundos, e um galo trepando na cerca. queria morder aquele lugar,
devorar cada clichê sem medo da dor-de-barriga, sem medo de ser feliz. e tinha
os olhos do menino, sete ou oito anos, grudados no copo de leite sobre a mesa,
como uma cadeira de cinema, e o diretor dizendo espera, espera, espera, vai
agora!, e o moleque, depois de ver as ondinhas no copo, o tremelique do suco da
vaca, disparava pra janela e contando os palhaços de perna de pau contra a luz
do sol da manhã, ouvia uma musiquinha igual aquela caixinha da sua vozinha, de
repente todo estrondo de um claquete, e o som engordando, suando e bufando seus
ãos, seus foms, e uééínnnss, e então nada mais. o garoto com o pijama do flash
gordon carregava nos olhos um dispositivo semelhante a uma câmera de trinta e
cinco milímetros com bateria o bastante para filmar apenas um coisa do circo
inteiro, algo que há anos tinha imaginado para um filme e nunca conseguia
autorização de rodar. mesmo naquela vez que disparou atrás do bundão gigante e
a dona clotilde, que tinha um dispositivo semelhante na língua, fez o favor de
avisar às autoridades sobre as más intenções do garoto que nem tinha escovado
os dentes ainda, ou sequer tinha alimentado os porcos do quintal. além de
filmar, o dispositivo tinha um sensor e disparava exatamente quando era a vez
do paquiderme, seu fedor de muito estrume e aquele bundão, pra sempre
registrado nos olhos do garoto que havia anos sonhava em fazer um filme erótico
sobre bundas de elefantes, e agora ia esfolar o pinto para comemorar a
conquista. quando notou que estava sendo observado, o garoto falou com sua voz
que mais parecia vapor e silêncio, só assim viverei em paz. então, com lágrimas
nos olhos, deixei seu sorriso de metafísico. logo chegaria ao meu destino.
***
nas planícies do rei
cada
fala era um êxtase, e sol sempre se punha às três da tarde, minutos depois dele
acordar e sorrir pro ocaso na janela de vidro fumê, e pro casaco de pele humana
sobre as costas da cadeira, indiferente à cinta-liga feita de lâminas de
barbear, que ele usava sob a saia, dividindo o saco e o pinto ao meio,
combinando com a coroa, e antes, só um pouquinho antes, do trono que carregava
colado na bunda. o rei falava com a certeza de quem sofre o tempo inteiro e com
a gravidade dos shakespearianos. sabia de todas as coisas que faria antes de
morrer, era pai de dois seres intergalácticos, que o escolheram como hospedeiro
das suas intenções de dominação da existência. e tudo isso estava expresso em
seus gestos e nos tons pastéis que o cercavam. o rei vivia às margens de um rio
de águas turvas, naquilo que parecia ser uma choupana com cobertura de palha,
fogueira no oitão, e uma cobrinha de fumaça saindo da janela de moldura branca
e cruz no centro, e na verdade era um bunker coberto de fios de eletricidade,
cabos de rede, de antenas, de computadores, servidores maníacos, e todo tipo de
aparelho que o conectasse à sua rede internacional de banheiros, espalhados nos
quatro cantos do planeta. do lado de fora, no lugar de árvores havia o conforto
de uma privada, e dos arbustos floriam os mais diversos tipos de papel, com
cheiros, cores, comestíveis, pra desenhar, pra escrever, além dos favoritos,
feitos com hidratante. não havia cores ali, pelo menos não do jeito que o rei
imaginava o lugar. na sua visão, tudo seria um eterno nanquim, ou então, uma
penumbra, vazada apenas por uma luz que desenhava extraordinariamente bem os
rostos de pessoas ordinárias, imbuídas em orgias galopantes, de mulheres
escancaradas, lambuzando-se em caralhos latejantemente poderosos, que faziam às
vezes de controle remoto, colheres, desodorantes, garrafinhas, batons, e tudo
mais que coubesse em seus orifícios, todo fetiche era tão banal quanto assuar o
nariz, ou limpar a bunda, e os gogo-boys, que delícia, declamando pessoa,
byron, espanca, morissey, bruno e marrone , e também o wando, que sem ele
ninguém geme. e o rei sorria. mijava de rir, eternamente rindo, com sua capa do
super-homem e sua imensa vontade de ter um pica tão grande quanto a do batman.
mas nada disso existia. comandava uma divisão do paraíso e tudo não passava de
literatura e intenção. na verdade, e não era segredo pra ninguém, o rei
reportava-se estritamente à estrela de onde vieram os dois seres
intergalácticos que o escolheram como pai humano. ante a figura do metafísico
mais respeitado, senhor dos veículos por onde a insanidade dos outros seria
vomitada, e também dono de uma voz de dar tesão em coroinha, parou e fez a
única pergunta que seu estado mental e os duendes azuis lhe permitiam.
vossa majestade sabe por
que vim?
(por Tiago Araújo. Imagem de um destes tumbrls da vida)