domingo, 5 de março de 2017

Escrever



"O grande romance brasileiro – Nelson Ascher



Digamos que, em algum Simpósio literário promovido pelo governo eslovaco em Bratislava, após fazer amizade com uma escritora finlandesa ou búlgara, eu conseguisse, mencionando a mesóclise e o infinitivo pessoal, convencê-la dos esplendores de nosso vernáculo.

Se, do mais humilde camponês ao mais poderoso mandarim, os habitantes da China imperial supunham viver no centro do mundo e não mostravam muito interesse pelas terras bárbaras situadas além da muralha, os europeus, antes de se tornarem turistas com meias brancas e sandálias em busca de sol, costumavam ser diferentes, e sua curiosidade por paragens e povos exóticos não tinha limites. Paulo Rónai, por exemplo, tão logo aprendeu sozinho, em Budapeste nos anos 30, o português com o auxílio de gramáticas e dicionários, se pôs a traduzir poesia brasileira, não a de Portugal.

Meses depois do simpósio recebo um e-mail redigido em português escorreito pela búlgara ou finlandesa anunciando que ela aprendera nosso idioma e gostaria agora de ler mais acerca do Brasil. Só que ela preferiria se aprofundar não em obras historiográficas ou tratados sociológicos, mas em romances. Feliz da vida por ter convertido uma estrangeira à brasilidade ou ao brasilianismo, remeto-lhe Machado, Mário, Oswald, Graciliano, Guimarães Rosa e Clarice.

Passadas várias semanas, ela me responde: "Obrigada. Os autores que você me mandou são magníficos e, se tivessem escrito em inglês ou francês, seriam universalmente reconhecidos. Lendo-os com atenção e concentrando-me nas entrelinhas fui capaz de vislumbrar algo da especificidade de seu país. Não me entenda mal: mesmo quem não saiba nada sobre sua terra pode se deliciar com eles. Mas aí é que está o problema, pois, embora eu tenha me deliciado, nem por isso creio saber hoje mais a respeito do Brasil do que antes de lê-los".

Ela acrescenta que pensava em livros como os de Thomas Mann ou Arthur Schnitzler, William Faulkner ou Scott Fitzgerald, Alberto Moravia ou D.H. Lawrence, Louis Ferdinand Celine ou Mario Vargas Llosa. Em suma, narrativas que, sem prejuízo da qualidade estética, oferecessem um painel amplo e razoavelmente explícito do período histórico e da sociedade em que se ambientam.

Quais são, me pergunta ela, os melhores romances brasileiros sobre a era Vargas, a construção de Brasília, o golpe de 64, a ditadura militar e a transição para a democracia? Onde estão as sagas que descrevem a trajetória de diversas gerações de uma família italiana, árabe, japonesa ou judia desde sua chegada a Santos no início do século 20 até os anos 90?

E as histórias de ascensão e queda individual cujo pano de fundo sejam as transformações de São Paulo ou do Rio? Ela tampouco acredita que não haja uma única variante local notável de um subgênero tipicamente latino-americano, o romance sobre ditadores como "O Outono do Patriarca", de García Márquez, ou "O Senhor Presidente", de Miguel Angel Asturias. “Impossível", ela sublinha, "afinal vocês tiveram o ditador mais interessante de todo o subcontinente: quem são Perón, Trujillo, Pinochet e Castro comparados a Getúlio?".

Como é que devo retrucar? O dr. Samuel Johnson disse certa vez a um jovem autor que seu manuscrito era bom e original, mas a parte boa não era original e a parte original não era boa. Pois bem: o Brasil produziu ficção boa e realista, mas a ficção boa não é especialmente realista e a ficção realista... Insatisfeita com minha não-explicação, a finlandesa ou búlgara insiste: "Por quê?".

Se bem que tente me desculpar argumentando que não tenho culpa, que minha família chegou a estes trópicos apenas 50 anos atrás, ela me cobra mais detalhes.

Eu arrisco: talvez o país seja demasiadamente extenso e incompreensível, talvez o material necessário para estudá-lo nem sempre estivesse à mão, talvez os autores se sentissem intimidados pelos mestres europeus e norte-americanos ou se dirigissem a um público que, além de reduzido, conhecia o contexto tão bem quanto eles, talvez achassem o país maçante, repetitivo, imutável. Até nossos temas de exportação favoritos, secas e retirantes, miséria e favelas, já foram devidamente explorados, com variações regionais, na Rússia tzarista ou nos EUA dos tempos da Depressão.

Sua réplica não demora: "Cada obstáculo citado seria, em outros lugares, tomado como um desafio. Por que você não pára de reclamar como bom brasileiro (ela começou a entender nosso espírito nacional) e faz alguma coisa? Escreva um romance!". Como não adiantaria lhe retorquir que não sou do ramo, que não tenho jeito para a ficção (ela diria: "Isso não é desculpa"), resta-me somente expor-lhe as razões que levam algumas pessoas a não escreverem romances.

O romance, um gênero intrinsecamente enciclopédico que Hans Magnus Enzensberger qualificou de educação sentimental da classe média, pode ser sobre tudo. Esse tudo, no entanto, reduz-se em 99% dos casos, a três assuntos principais: a grandeza humana, a sordidez humana (da qual o ridículo humano é uma subcategoria) e o tédio da existência humana. Para falar da grandeza humana, eu, sem conhecê-la de primeira mão, seria forçado a recorrer ao plágio e chegaria, com sorte, ao realismo socialista. Quanto à sordidez humana, é duro para a imaginação competir com o noticiário, e copiá-lo, como Truman Capote fez em "A Sangue Frio", parece redundante. Escrever sobre o tédio, por sua vez, contribui apenas para aumentá-lo.

Tendo lhe enviado minha tréplica, não espero ver e-mails da búlgara ou finlandesa tão cedo em minha caixa de correio.
"


(Para completar, também tem esse link do Rodrigo Gurgel a respeito)