sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Não escrever



A arte de não escrever

Sergio Sant´anna





Muito já se escreveu sobre a arte da poesia, ou da narrativa, mas nada sobre essa outra arte tão dura e demandante de rigor que é a de silenciar quando não se tem o que dizer, ou o desejo de dizê-lo, ou, principalmente, os recursos para tanto. Este pequeno ensaio visa a preencher essa lacuna para aqueles que se iniciam na atividade literária, ou aqueles, veteranos, que se vêem impelidos a continuar simplesmente por que começaram.

Aos aspirantes a escritor que se sentem torturados pela desconfiança de que não têm aptidão para o ofício, pode-se dizer que, quase sempre, estão certos. Mas é bom lembrar que somente os que duvidaram da própria incapacidade, através da ação, tiveram a oportunidade de confirmá-la. E também que escrever talvez seja, em grande parte dos casos, muito mais o exercício de uma vontade, às vezes férrea, do que a realização de uma vocação irreprimível, como aquela de um Rimbaud (mesmo assim parou logo) ou de um Jarry, que escreveu o seu primeiro Ubu para gozar um professor.

Poderiam esses dois exemplos insinuar que a grande pergunta ao pretendente a escritor é se as suas palavras fluem, com a espontaneidade do sentimento, dos seus corações e mentes diretamente para a folha de papel ou tela do computador? Se a resposta é sim, deve-se desconfiar em dobro, pois, não suportando a literatura qualquer tipo de primitivismo, é muito provável que as composições nascidas desse fluxo se tornem um lixo ainda mais visguento do que aquele produzido pelo mero esforço. Este último, quando nada, pode servir também para o saudável exercício de cortar palavras, às vezes até a última delas.

Trabalhar com um computador, para os principiantes na informática, implica ainda um outro risco: pelo simples fato de conseguir alinhar frases e parágrafos o artista pode acreditar-se um gênio.

Mas onde se quer chegar? Àquele velho lugar comum, que os escritores repetem em entrevistas, de não sei quantos por cento de inspiração para não sei quantos de transpiração? Ou a alguma definição como a do coreógrafo Maurice Béjart, a propósito de Baudelaire, de que o poeta é um misto de delírio (palavra algo perigosa) e disciplina (palavra algo militar)? Não propriamente, pois não se trata, aqui, de um guia com o objetivo de introduzir ou aprimorar pessoas nos procedimentos do ofício literário, mas, ao contrário, de auxiliá-las no caminho da abstenção, entendendo-a como virtude e fenômeno produtivo do ponto de vista social e individual. À inflação, como se sabe, corresponde uma quantidade excessiva de papel-moeda sem o devido lastro em bens. Literariamente, isso equivaleria a um excesso de palavras para pouco ou nada a dizer, fenômeno bem brasileiro que remonta à Colônia e ao Império – seguindo adentro pela República – com seu bacharelismo beletrista. Trata-se, basicamente, de enrolar as gentes, com o discurso do jurista, do político e do homem de letras, isso quando as três condições não coexistem num só homem, espécime que teve o seu representante mais notável em Rui Barbosa. Uma perda de substância da linguagem, enfim. Em oposição a essa estética do latifúndio trabalhariam os escritores antiinflacionários, ecologistas da palavra, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, tratando de escrever menos e melhor.

O editor Pedro Paulo de Sena Madureira, em palestra, identificou como uma das causas desse mal brasileiro – variante intelectual da saúva – a quantidade de autores ou candidatos a, sem a devida correspondência em leitores, as poucas oportunidades de afirmação social e econômica no país, levando grande número de pessoas a buscar a carreira artística. Como todo mundo domina mais ou menos a língua, ao contrário da música e do desenho, daí para a tentação de escrever um livro é um pequeno passo.

Começa também aí uma série de infortúnios para o sujeito. O primeiro deles seria uma perda imediata da capacidade de viver espontaneamente. Tomem-se alguns exemplos simples como os atos (ou não-atos) de assistir ao anoitecer ou ver e ouvir a chuva. Para qualquer ser humano dotado de sensibilidade, isso pode ser oportunidade para a contemplação, a meditação desinteressada e até a integração com algo mais vasto. Para o escritor, não; para ele, toda vivência, inclusive a convivência com o semelhante, é encarada de forma utilitária, material, passível de transformação, ainda que em frases do tipo: “ Os pneus chiavam no asfalto e as poças d’água refletiam os letreiros luminosos”. Quando se trata da convivência no amor, o risco de perda existencial é ainda maior. Norman Mailer escreveu um conto sobre isso: O caderno de notas. É sobre um jovem escritor e sua namorada. Vale a pena transcrever um pedaço.

“Há uma coisa que eu vou dizer a você”, ela continuou amargamente. “Você magoa os outros mais do que a pessoa mais cruel do mundo faria. E por quê? Vou lhe dizer por quê. É porque você nunca sente nada e faz os outros acreditarem que sente”. Ela percebeu que ele não estava escutando e perguntou, exasperada: “Em que você está pensando agora?”

“Em nada. Estou ouvindo você e gostaria que não estivesse tão zangada.”

Na verdade, ele estava bastante inquieto. Acabara de ter uma idéia para pôr no caderno de notas e isso o deixava ansioso, pensar que se não tirasse o caderno do bolso para anotar o pensamento, poderia esquecê-lo.


O escritor acaba conseguindo fazer a anotação, que é a seguinte:

Crise emocional agravada pelo caderno de notas. Jovem escritor, namorada. Escritor acusado de ser observador, não participante, da vida. Tem idéia que precisa anotar no caderno. Faz isso e a discussão piora. Garota rompe a relação por causa disso.


Pode-se retrucar que a essa perda corresponde um ganho considerável, a possibilidade de viver a existência em dois planos simultâneos: como vida e como obra. O jovem escritor de Mailer procura administrar isso, pois se a idéia do conto é boa, a garota também é legal e o autor-personagem tenta alcançá-la na próxima esquina, Bom, se acaso a houver perdido para sempre, restar-lhe-á o consolo de havê-la aprisionado no papel, ou o de que poderá inventar outras namoradas. A grande sedução da literatura – e eis uma das razões por que é tão difícil não escrever. Você pode amar imaginariamente, viver aventuras, cometer os mais diversos crimes e ainda receber prêmios por isso. Tudo, é lógico, se o resultado for bem-sucedido. Do contrário, corre-se o risco, se a obra for publicada, de emoldurar um daqueles retratos amarelados, fixados num momento infeliz. E, o que é pior, não se poderá mais destruí-lo. Se levarmos em conta que o verdadeiro escritor começa por ser um crítico severo de si mesmo, a grande probabilidade é de que encare com desconfiança, para não dizer desgosto, todos os retratos passados, tentando retocá-los – ou eliminar seus traços – no seguinte e assim por diante. Algo tão infernal quanto um cão querendo morder o próprio rabo. E gasta-se uma vida nisso.

Já o hábito de ler, que também amplia a realidade a mais de um plano – creio mesmo que a vida é muito mais real nos livros e nos filmes – não entra em conflito com o existir, desde que se desfrute da leitura sem segundas intenções, de aprendizado, sobretudo o do ofício de escritor. Neste caso, perder-se-ia a pureza e o prazer primordiais daquela leitura ideal de Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino. E, como a percentagem autores/leitores é totalmente insatisfatória no Brasil, trata-se de aumentar a quantidade destes últimos, provavelmente à custa dos primeiros, com proveito qualitativo para ambos.

Quando se começa a escrever, os outros autores, até os antes admirados, passam, de imediato, à categoria de concorrentes, que, se você não conseguir superar, será tentado a reduzir pela crítica, velada ou pública. O que faz dos salões de cabeleireiro, perto dos literários, templos de inocência. Entre outras vantagens da abdicação – se for sincera, e não mera conformação às evidências – está a de livrar você próprio e os outros das dores amargas da inveja e do ressentimento. É evidente que essa abdicação implica também na renúncia a certos ideais: alguns deles gloriosos, como o de onipotência sobre o verbo, cujo fim último é a perfeição; outros, apenas nobres, como o de dotar a realidade, tão impermeável, de um contorno preciso; outros, como já vimos, de motivação mais íntima, como o de substituir essa realidade por uma mais de acordo com as nossas inclinações.

Mas, ainda que se trate de uma inação, a arte de não escrever não pode ser confundida com a preguiça, pois, ao contrário desta, requer método e força de vontade, e, se se pode falar em exercício, é o da ascese. Em termos mais práticos, seria comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor. O resultado, uma vez vencido o medo inicial, é comparável a jogar-se num espaço sem fim. Se, para além dele, encontra-se a morte, esta também não é um obstáculo sólido. De todo modo, qualquer tentativa de evitá-la, outra grande motivação dos escritores, acaba por revelar-se fútil. Porém, se, apesar de tudo, a necessidade de expressar-se por escrito brota dentro de alguém como uma toxina endógena, é melhor expelí-la em palavras, sabendo sempre que a fonte é inesgotável; que escrever é como matar baratas com o sapato, elas continuam a se multiplicar, como neste ensaio aqui. Diante da contradição em que ele implica, o autor argumenta, em sua defesa, que talvez possa contribuir na formação desses seres tão singulares: os homens e mulheres comuns.







[O texto acima já havia sido publicado no Jornal do Brasil em 19/1/92 e no site Cronópios em 19/8/2006]

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Escrever


“Mas por que você escreve?”


Por Luisa Geisler

Meu começo no meio literário aconteceu por causa do Prêmio SESC de Literatura. Ele funciona por meio de pseudônimos, e os autores dos textos só são revelados se vitoriosos. Você manda seu manuscrito completo e, se ganhar, abrem o envelope com as informações reais. Hoje em dia, é tudo pela internet, até onde sei, mas os envelopes parecem mais dramáticos. Pra mim, insegura, envergonhada e assustada, parecia perfeito. Mandei o livro de contos Contos de mentira com o pseudônimo Brian McElfatrick. Os jurados finais foram Raimundo Carrero e Marina Colasanti, que escreveram belas orelhas pro livro, a coisa toda. Antes do lançamento, ao descobrir que Marina Colasanti estaria em Canoas em um evento literário, resolvi ir agradecer pela seleção, pelos elogios e tal. Quando me apresentei (tremendo), ela respondeu com algo que jamais esquecerei:

— Meniiiiiiiina! — com muitos is mesmo. — Eu achava que você era um homem gay roteirista de quarenta anos!

Por ter sido uma escolha por pseudônimo, Marina jamais tinha sido informada de quem ela tinha de fato escolhido como vencedor. No caso, vencedora. No caso, euzinha. “Inha” porque eu tinha dezenove anos.

E ela tinha argumentos pra cada uma das escolhas. Homem, pois o pseudônimo era masculino; mas gay, por ter algumas questões de feminilidade; quarenta anos por conta de alguns personagens com problemas “adultos” (divórcio, a coisa toda); roteirista por escolhas de linguagem. Não vou problematizar muito, foi um momento especial demais pra isso.

Essa história acabou ganhando uma boa dose de significado pra mim. Após a vitória do Prêmio SESC de Literatura, vieram as entrevistas, e eu ainda não tinha meu FAQ. Entre os comentários sobre a idade, veio a famosa pergunta de por que escrevo.

E a resposta é que eu não faço ideia.

Nem ideia.

Nenhuminhazinha.

Nada.

Desde pequena, escrevia. Eu gostava de ler e fazia meus próprios livros. Fazia grandes desenhos, frases simples, grampeava tudo, vendia pro meu pai por um real. Notem que, desde novinha, foquei em escrever como trabalho e não hobby.

Isso tudo pra dizer que não sei por que escrevia. Não sabia naquela época, não sei agora. Sei que escrevo.

Mas se tenho alguma resposta, é a resposta do homem gay roteirista de quarenta anos. O que mais me interessa em escrever é ser outras pessoas. Sendo insegura, envergonhada e assustada, nada me aterroriza mais do que me identificarem em meus textos. Não, não sou eu. Mas parece muito, alguém dirá. Mas não sou eu. No entanto, ninguém me procura mais nos meus personagens do que eu. Procuro, é claro, pra aniquilar (exterminate, exterminate).

Mesmo quando um personagem tem características minhas, existe um trabalho ficcional de me ver como um personagem. Ver como sou insegura, envergonhada e assustada — e ridícula por tudo isso. Aparo umas arestas que não interessam à ficção e tadam.

Talvez eu escreva justamente pra poder ser outras pessoas. Porque me diverte muito criar um personagem que não fica problematizando cada ideia de cada escolha de palavras [Ike, do Luzes de emergência se acenderão automaticamente].

Outro exemplo: fui bolsista de Iniciação Científica em economia. E sou estudante de ciências sociais. E consigo pensar tanto quanto um leitor de Mises, seguir a argumentação toda em série. E consigo acompanhar a linha de raciocínio da Luciana Genro sem piscar. Quase um duplipensar, pros leitores de George Orwell.

Porque construir um personagem é construir um jeito novo de ver ideias, e talvez eu não consiga ficar com apenas um par de “óculos de ver o mundo”. E, me repito, talvez seja por isso que eu escreva. Porque não consigo decidir se o Ike está mais certo que eu. Porque essa decisão na verdade não existe. Porque uma pessoa que diz que “arte é inútil” não é tão diferente de mim. Pode ser que seja só um lance da idade, ou da insegurança, da vergonha, do medo. Pode ser que mude. Pode ser que o desafio seja me achar no meio dessa bagunça. Mas é muito bom ser homem e mulher e ter vinte e quatro anos e quarenta e ser todas as pessoas e ninguém ao mesmo tempo.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Escrever

Trecho de uma história da leitura 
(negritos meus)

Alberto Manguel


"Uma vez, andando por Praga com o filho de um colega, parou diante da vitrine de uma livraria. Vendo o jovem companheiro inclinar a cabeça de um lado para o outro a fim de ler o título dos livros enfileirados, ele riu: "Então você também é louco por livros, sua cabeça sacode de tanta leitura?". O amigo assentiu: "Acho que eu não poderia viver sem livros. Para mim eles são o mundo". Kafka ficou sério. "Isso é um erro", disse. "Um livro não pode tomar o lugar do mundo. É impossível. Na vida tudo tem seu sentido e seu propósito, e para isso não há substituto permanente. Um homem não pode, por exemplo, dominar sua própria experiência por meio de outra personalidade. É assim que está o mundo em relação aos livros. Tentamos aprisionar a vida num livro, como um pássaro canoro na gaiola, mas não funciona." A intuição de Kafka de que, se o mundo tem coerência, é uma coerência que não podemos compreender plenamente - se o mundo oferece esperança (como uma vez respondeu a Max Brod), ela "não é para nós" -, levou-o a ver, nessa mesma irresolubilidade, a essência da riqueza do mundo. Num ensaio famoso, Walter Benjamin observou que para entender a visão de mundo de Kafka "não se deve esquecer o modo de ler de Kafka", comparado por Benjamin ao do Grande Inquisidor de Dostoievski no conto alegórico de Os irmãos Karamazov: "Temos perante nós", diz o Inquisidor ao Cristo retornado à Terra, "um mistério que não podemos apreender E, justo por ser um mistério, tivemos o direito de pregá-lo, de ensinar ao povo que o que importa não é a liberdade nem o amor, mas o enigma, o segredo, o mistério diante do qual eles devem se curvar - sem reflexão e mesmo sem consciência". Um amigo que viu Kafka ler em sua escrivaninha disse que ele lembrava a figura angustiada de Um leitor de Dostoievski, do expressionista tcheco Emil Filla, que parece em transe enquanto lê o livro que ainda segura na mão cinzenta."


"É famosa a história segundo a qual Kafka pediu ao amigo Max Brod que queimasse seus escritos depois de sua morte; sabidamente, Brod desobedeceu. O pedido de Kafka foi considerado um gesto auto depreciativo, o obrigatório "eu não mereço" do escritor que espera que a Fama lhe responda: "Mas como não? É claro que merece". Talvez haja uma outra explicação. Como Kafka percebia que, para um leitor, cada texto precisa ser inacabado (ou abandonado, como sugeriu Paul Valéry), que na verdade um texto pode ser lido somente porque é inacabado, deixando assim espaço para o trabalho do leitor, talvez quisesse para seus escritos a imortalidade que gerações de leitores concederam aos volumes queimados na biblioteca de Alexandria, às 83 peças perdidas de Ésquilo, aos livros perdidos de Lívio, à primeira versão de A Revolução Francesa de Carlyle, que um amigo da criada deixou cair acidentalmente na lareira, ao segundo volume de Almas mortas de Gogol, condenado às chamas por um padre fanático. Talvez pelo mesmo motivo, Kafka jamais completou muitos de seus escritos: não existe a última página de O castelo, porque K., o herói, jamais deve chegar lá, de tal forma que o leitor continue no texto de múltiplas camadas para sempre. Um romance de Judith Krantz ou Elinor Glyn fecha-se numa única leitura exclusiva, estanque, e o leitor não pode escapar a menos que ultrapasse conscientemente os limites do senso comum (há uns poucos que lêem Princesa Daisy como uma alegoria da viagem da alma, ou Três semanas como um Pilgrim's progress do século XIX). Disso nos demos conta lá em Buenos Aires, junto com aquele primeiro sentimento de liberdade: que a autoridade do leitor jamais é ilimitada. Umberto Eco observou, num epigrama útil: "Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto"."


"Ernst Pawel, no final de sua lúcida biografia de Kafka, escrita em 1984, nota que "a literatura que trata de Kafka e sua obra compreende atualmente cerca de 15 mil títulos, na maioria das principais línguas do mundo". Kafka tem sido lido literalmente, alegoricamente, politicamente, psicologicamente. Dizer que as leituras sempre ultrapassam em quantidade os textos que as geram é uma observação banal, mas algo de revelador sobre a natureza criativa do ato de ler está presente no fato de que um leitor pode se desesperar e outro rir exatamente na mesma página. Minha filha Raquel leu A Metamorfose quando tinha treze anos e achou engraçado; Gustav Janouch, um amigo de Kafka, leu-a como uma parábola religiosa e ética; Bertold Brecht julgou-a como obra do "único escritor realmente bolchevista"; o crítico húngaro György Lukács considerou-a produto típico de um burguês decadente; Borges leu-a como narrativa que reconta os paradoxos de Zeno; a crítica francesa Marthe Robert viu na obra um exemplo da clareza da língua alemã; Vladimir Nabokov considerou-a (em parte) uma alegoria da Angst adolescente. O fato é que as histórias de Kafka, nutridas pela experiência de leitura dele, ao mesmo tempo oferecem e tiram a ilusão de compreensão. É como se elas corroessem a arte do Kafka escritor a fim de satisfazer o Kafka leitor. Em 1904, Kafka escreveu a seu amigo Oskar Pollak:

  "No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz, como diz você? Meu Deus, seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser um machado para o mar gelado de dentro de nós. É nisso que acredito".
 "

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Escrever





O Jogo e a Poesia (J.Huizinga) VIA




"Enumeremos mais uma vez as características que consideramos próprias do jogo. É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão.

Ora, dificilmente se poderia negar que estas qualidades são próprias da criação poética. A verdade é que esta definição de jogo que agora demos também pode servir como definição de poesia. A ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isto poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico. Não é de modo algum uma metáfora chamar à poesia, como fez Paul Valéry, um jogo com as palavras e a linguagem: é a pura e mais exata verdade.

Não é apenas exterior a afinidade existente entre a poesia e o jogo; ela também se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora. Na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico. Seja no mito ou na lírica, no drama ou na epopéia, nas lendas de um passado remoto ou num romance moderno, a finalidade do escritor, consciente ou inconsciente, é criar uma tensão que “encante” o leitor e o matenha enfeitiçado. Subjacente a toda escritura criadora está sempre alguma situação humana ou emocional suficientemente intensa para transmitir aos outros essa tensão. Mas o problema é que não existe um grande número dessas situações. Em termos gerais, pode-se dizer que essas situações surgem do conflito ou do amor, ou da conjunção de ambos.

Ora, tanto o conflito quanto o amor implicam rivalidade ou competição, e competição implica jogo. Na grande maioria dos casos, o tema central da poesia e da literatura é a luta – isto é, a tarefa que o herói precisa cumprir, as provações por que ele tem que passar, os obstáculos que ele precisa transpor. Já é suficientemente esclarecedor o uso da palavra “herói” para designar o personagem principal. A tarefa será extraordinariamente difícil, aparentemente impossível. Em geral, ela é empreendida em consequência de um desafio, de uma promessa ou de um capricho da pessoa amada. Todos estes temas nos conduzem de volta ao jogo agonístico. Uma outra série de motivos de tensão assenta no disfarce da identidade do herói. Ele se apresenta incógnito quer por estar deliberadamente ocultando sua identidade, ou por ele próprio a desconhecer, ou ainda, porque é capaz de mudar sua aparência conforme sua vontade. Em outras palavras, ele usa uma máscara, aparece sob um disfarce, é portador de um segredo. Uma vez mais nos encontramos próximo do velho jogo sagrado do ser oculto que se revela apenas aos iniciados."

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Escrever


É uma notícia antiga, mas lembro de ter visto na TV a história de duas meninas de dez anos que deixaram um bilhete dizendo "não temos um motivo para morrer, mas também não temos um para viver", e pularam de um prédio. Nenhuma das duas sobreviveu. Às vezes, penso nisso. Se eu fosse agraciado com a oportunidade de falar com elas no momento em que pulariam, o que será que eu teria dito ou feito? E se eu tivesse mostrado apenas três quadrinhos de uma tirinha e prometido revelar o quarto quadro apenas se elas decidissem viver para ver? Será que a estratégia daria certo? Mas teria que ser uma história muito engraçada ou intrigante. Como seria bom se, no último quadro, houvesse uma piada daquelas impossíveis de não rir, que as fizesse mudar de ideia e lhes desse forças para que, no dia seguinte, pudessem retornar ao dia a dia, normalmente. Se eu tivesse a habilidade de elaborar histórias assim, faria um enorme sucesso. Quem me dera ter um talento como esse.

Makoto Yukimura, na orelha do mangá Planetes, vol 3.

domingo, 9 de julho de 2017

Escrever




A Origem das Histórias






RESUMO Nos últimos anos, onda de livros tenta encontrar na teoria da evolução explicação para a compulsão humana por contar e ouvir histórias. Argumentos sobre as vantagens adaptativas das narrativas ficcionais são, porém, criticados por pesquisadores e escritores como uma tentativa de "biologizar" fenômeno cultural.





Um dos pontos a respeito dos quais os cientistas que estudam a evolução humana mais discordam é o suposto habitat original de nossos ancestrais. Entre os candidatos estão as savanas abertas (o mais tradicional), as matas ciliares, lagos rasos (segundo uma hipótese amalucada, a do "macaco aquático", nossa falta de pelos e postura bípede teriam surgido como adaptações para a vida semi-imersa) e até a Terra da Nunca.

"Os seres humanos são criaturas da Terra da Nunca. Ela é o nosso nicho evolutivo, nosso habitat especial. Nutre a nossa imaginação; reforça o comportamento moral; cria mundos seguros nos quais podemos praticar nossas habilidades. Vivemos na Terra do Nunca porque não podemos deixar de viver na Terra do Nunca", escreve o norte-americano Jonathan Gottschall, professor de literatura do Washington and Jefferson College, na Pensilvânia.

Se o leitor está se perguntando o que um professor de literatura teria a dizer sobre a evolução do homem, vale ressaltar que Gottschall não está sozinho. Sua obra mais recente, "The Storytelling Animal: How Stories Makes us Human" (o animal contador de histórias: como as histórias nos tornam humanos), é parte de uma pequena onda de livros que, nos últimos anos, têm tentado usar a teoria da evolução para explicar como e por que contamos e ouvimos histórias.

Portanto, "Terra do Nunca", no vocabulário do livro de Gottschall, é só um jeito telegráfico de designar a miríade de mundos imaginários que nasceram e morreram desde que o primeiro contador de mitos se sentou em torno de uma fogueira no Paleolítico.

Entre a maternidade e o túmulo, nossas mentes talvez passem mais tempo passeando por esses mundos do que pelo mundo real. E, para o pesquisador americano e colegas seus como o neozelandês Brian Boyd, da Universidade de Auckland, tal capacidade teve papel importante, até determinante, para que o Homo sapiens se transformasse no maior best-seller evolutivo da história da Terra.


Em suma, eles enxergam a capacidade de inventar histórias como uma adaptação biológica, não muito diferente, para todos os efeitos, de coisas como um polegar opositor ou o andar bípede. Para esses pesquisadores, aplicar os princípios darwinistas às narrativas de ficção é apenas o corolário lógico do projeto de entender o homem como mais uma espécie de grande primata, sujeito às mesmas leis que o resto dos seres vivos.

ADAPTAÇÃO

Ocorre que existem alguns critérios mais ou menos consensuais para tentar determinar se um comportamento pode ser classificado como uma adaptação. O primeiro e mais simples também é, na prática, o mais difícil de confirmar empiricamente: postula-se que uma adaptação deve conferir alguma vantagem reprodutiva, ainda que sutil ou indireta, ao indivíduo que dela se vale.

É aqui que o chavão popular sobre a "sobrevivência dos mais aptos" fica longe de corresponder à compreensão científica de como opera a evolução. Em princípio, características que ajudem um organismo a salvar o seu próprio pescoço, mas façam com que ele fique para trás na corrida para se reproduzir, não são adaptativas.

Só para usar o exemplo mais exagerado, os machos de louva-a-deus costumam se deixar devorar pelas fêmeas durante a cópula. Esse comportamento é alegremente perpetuado pelas futuras gerações de insetos do sexo masculino, porque os machos medrosos demais para encarar tais núpcias de sangue, ao longo do tempo evolutivo, não conseguiam chegar perto o bastante dos órgãos genitais das agressivas moças da espécie.

Outro critério: o comportamento se desenvolve de forma mais ou menos espontânea em todos os membros neurologicamente normais da espécie em questão, com um mínimo de estímulo. Se a espécie possuir uma variedade de tradições culturais (constatadas não só entre nós como também entre chimpanzés, golfinhos e corvos, por exemplo), tais tradições terão relativamente pouco impacto sobre o dito comportamento.

É por isso, entre outras coisas, que a linguagem articulada --mas não a leitura e a escrita, claro-- é vista como uma adaptação típica do Homo sapiens, assim como ocorre com uma lista razoavelmente extensa dos "universais humanos" -traços de comportamento que parecem transcender culturas, como o ciúme e a fofoca.

Há ainda um critério que, sem forçar muito a barra, podemos chamar de econômico. Num mundo de recursos finitos, é preciso "decidir" (quase sempre de modo inconsciente) como alocar recursos, tanto fisiológicos quanto comportamentais. Vale mais a pena bater ou correr? E por aí vai. Ora, se certo comportamento, apesar de custoso, não é eliminado da população pelo escrutínio não muito compassivo da seleção natural, é indício de que os benefícios compensam os custos e, portanto, é provável que se trate de uma adaptação.

Quando aplicamos essa pequena lista de critérios ao fenômeno das narrativas de ficção, afirmam Gottschall e companhia, as coisas começam a se encaixar.

CRIANÇAS

Começando pela naturalidade do fenômeno, crianças pequenas têm verdadeira compulsão por improvisar histórias. "Não precisamos subornar crianças para que inventem histórias como temos de fazer para que comam brócolis", diz Gottschall. "Elas brincam de faz de conta quando não têm o que comer. Brincaram de faz de conta em Auschwitz."

O argumento faz algum sentido, afirma o escritor catarinense Cristovão Tezza, autor do premiado romance "O Filho Eterno". "Já especulei sobre a possibilidade de haver uma relação entre narrativa e aquisição da linguagem, do tipo 'falar é narrar', um conceito que eventualmente uso, com força de metáfora, quando falo da importância da literatura." Tezza diz desconfiar, porém, da associação entre biologia e cultura. "Ao mesmo tempo, sinto-me desarmado para rebater a ideia com força, com o tacape!", ri ele.

À primeira vista, o lado "econômico" da equação não é muito controverso. Dos poetas da Grécia homérica ou da Europa medieval, valorizados pela capacidade de memorizar milhares de versos, até os sucessos de bilheteria turbinados por efeitos especiais e imagens 3D, está claro que as pessoas estão mais dispostas a gastar recursos, tempo e energia com a Terra do Nunca do que pareceria razoável.

Nesse sentido, a visão evolutiva da ficção "concretiza, ou procura atribuir solidez, àqueles clichês que sempre mencionam nossa dependência das narrativas, dependência que realmente parece existir, mas que cada vez mais migra para outros meios de narrar, para outras mídias, como o cinema ou o videogame", diz o escritor mato-grossense Joca Reiners Terron.

Falta ainda, no entanto, o quesito ao mesmo tempo mais simples e mais complicado. Se inventar a Terra do Nunca (ou a Terra-média, ou Nárnia) é uma adaptação, em que exatamente ela favorece o sucesso reprodutivo?

CHEESECAKE

A dificuldade de apontar com precisão esse benefício adaptativo das narrativas inventadas levou até entusiastas da chamada psicologia evolucionista (como é conhecida a visão darwinista da mente humana) a afirmar que tanto a ficção quanto outras formas de arte seriam apenas subprodutos de faculdades mais gerais do cérebro. Steven Pinker, da Universidade Harvard --ao mesmo tempo um dos mais respeitados e o mais pop dos psicólogos evolucionistas--, definiu a arte como "cheesecake sensorial", uma espécie de estímulo artificial criado com o único propósito de fazer os sentidos humanos sentirem mais prazer do que o que pode ser encontrado na natureza.

"Eu acho que a arte vem, em parte, desse impulso que nós temos de tentar sair da prisão dos nossos cinco sentidos", diz o escritor João Ubaldo Ribeiro. "Nós percebemos uma faixa muito pequena da realidade, nossos sentidos são limitados. Isso sempre motivou, por um lado, o uso das drogas e, por outro, a música, a poesia, que não deixam de transcender a lógica do bom senso e subverter a realidade", opina o baiano.

Remodelando o raciocínio para o contexto específico da ficção, a criação de seres imaginários e tramas rocambolescas que nunca ocorreram nem poderiam ter ocorrido seriam "tiltes" dos sistemas cerebrais que nos permitem enxergar motivações e personalidades específicas em criaturas reais --capacidade conhecida como "teoria da mente". Essa sim seria uma faculdade praticamente exclusiva da nossa espécie (há controvérsias sobre a presença de algum rudimento dela nos grandes macacos, por exemplo), com relevante valor adaptativo.

PAVÃO

É possível, por outro lado, atribuir uma função biológica à habilidade narrativa e, de novo, aos pendores artísticos de modo geral, sem interpretá-la como uma adaptação propriamente dita. Bastaria interpretar essas capacidades como uma forma de seleção sexual --em síntese, uma espécie de "cauda de pavão" cognitiva.

É que, no fenômeno da seleção sexual, características aparentemente inúteis podem cair no gosto dos membros do sexo oposto como pista para escolher um parceiro. Ao longo do tempo, surge uma corrida armamentista, na qual manifestações cada vez mais exageradas daquela característica passam a competir pela atenção do(a) possível noivo(a). O resultado são adornos aparentemente despropositados, como as caudas dos pavões ou as galhadas dos alces.

Despropositados? Não exatamente. Paradoxalmente, o tamanho e a complexidade desse tipo de penduricalho podem funcionar como sinal de "qualidade" (saúde, bons genes, muitos recursos) do organismo de quem os ostenta, porque a)produzir o treco requer considerável dispêndio de energia ou b)o adorno é um trambolho tão desajeitado que só um indivíduo de "qualidade" conseguiria andar por aí com ele e ainda assim escapar de predadores e acidentes.

E se a imaginação pródiga e a habilidade linguística de um grande contador de histórias fossem um bom sinal de qualidade genética no "segundo órgão mais importante" do corpo humano (como disse Woody Allen), o cérebro?

As evidências a esse respeito ainda são esparsas, afirma o psicólogo evolucionista Marco Antonio Correa Varella, da UnB (Universidade de Brasília).

"No caso mais próximo que conheço, um estudo alemão, ao analisar a biografia de muitos escritores do país, verificou que o pico da produção, ou seja, a obra mais famosa e importante, ocorre entre 25 anos e 35 anos, e que os que se mantiveram solteiros continuaram a produzir obras literárias por mais tempo do que os que se casaram, padrão também encontrado no caso de cientistas. Ou seja, o ápice da competição por parceiros coincide com o ápice da exibição cultural, pelo menos em homens", conta.

COMPULSÃO

Em seu livro "On the Origin of Stories" ("Sobre a Origem das Histórias"), Brian Boyd, cuja especialidade acadêmica mais "normal" é a obra de Vladimir Nabokov (1899-1977), insiste que faz mais sentido enxergar a compulsão narrativa humana como uma adaptação. Seu principal argumento é a síndrome de Peter Pan da nossa espécie, digamos.

Vimos, com efeito, como narrativas improvisadas de faz de conta aparecem de forma espontânea no comportamento dos filhotes humanos. Para Boyd, a arte de modo geral, e a ficção em particular, não passam de uma forma de "brincadeira cognitiva" que realiza, talvez de forma ligeiramente mais sofisticada, a mesma função das brincadeiras de faz de conta da infância.

Nesse ponto da argumentação, o método comparativo entre espécies, essencial para o pensamento evolutivo, entra em ação novamente. Hoje, sabemos que quase todas as espécies de mamíferos e aves, e talvez até invertebrados como os polvos, gostam de brincar, em especial durante a infância.


A propensão para brincadeiras parece ser um método eficaz para treinar habilidades motoras, cognitivas e sociais num ambiente relativamente seguro, deixando o animal mais jovem em melhor posição para enfrentar desafios reais mais tarde. Experimentos com animais de laboratório mostram que oportunidades abundantes de brincar fazem muita diferença, para melhor, no desenvolvimento, trazendo principalmente flexibilidade comportamental, ou seja, capacidade ampliada de reagir a estímulos e padrões inesperados.


Quando esses dados são traduzidos para o contexto humano, diz Boyd, é importante levar em conta tanto a duração proporcionalmente muito grande da nossa infância quanto a nossa dependência profunda da capacidade mental para sobreviver --habitamos o "nicho cognitivo", ressalta ele.

Mesmo nossos adultos se engajam em brincadeiras em taxa muito superior à que se vê entre outros mamíferos. A própria anatomia da nossa espécie dá a impressão de ser uma versão "pedomórfica" (grosso modo, infantilizada) da anatomia dos grandes macacos. Todos sofreríamos, em certo sentido, de síndrome de Peter Pan.


Os estímulos sensoriais e cognitivos cuidadosamente planejados pelos grandes narradores, portanto, seriam uma versão lúdica de "simulador de voo", uma forma de viver experiências --e aprender com elas-- sem sair do sofá de casa ou da poltrona do cinema.


Para Gottschall, essa função simuladora provavelmente se estende também às peripécias que todos vivemos de forma inconsciente, à noite, quando sonhamos. Uma boa definição operacional de sonho, para ele, seria algo como "alucinações sensório-motoras intensas com estrutura narrativa". "Nós mal conseguiríamos descrever um sonho se evitássemos usar o vocabulário de uma aula básica de teoria literária: personagem, trama, cena, ponto de vista, perspectiva", escreve ele.


"Acho que a ideia tem totalmente a ver, até já escrevi isso", concorda Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e um dos principais especialistas brasileiros na neurobiologia dos sonhos. Ele cita seu próprio texto em inglês sobre o tema: "O sonho e a brincadeira são a fonte original da consciência humana, e contar histórias tem a ver com ambos". E emenda: "A capacidade de imaginar sem ter de atuar é o 'Lego' de nossa mente transformadora do mundo."


Outro aspecto adaptativo importante do ato de narrar é, para Gottschall, o papel social de muitas histórias, em especial as de caráter sagrado: mitos, narrativas de origem, historiografias oficiais (muitas vezes mais criativas do que certos autores de fantasia).


Animais intensamente sociais como nós têm muito a ganhar com a coesão grupal que certas narrativas trazem quando se trata de confrontar outro grupo --e, claro, muito a perder quando certos membros de nosso grupo resolvem usar isso em seu próprio benefício.


"Encarar o ato de contar histórias da mesma forma que a evolução da comunicação animal é estudada nos abre os olhos para a questão de que existe um conflito evolutivo entre quem emite um sinal e quem o recebe. O que emite tende a se favorecer ao manipular o comportamento alheio a seu favor, enquanto o receptor se beneficia extraindo informações honestas relevantes sobre o emissor", explica o psicólogo evolucionista Marco Varella.

CULTURA

Além de tentar desenvolver um modelo mais preciso para o papel evolutivo da compulsão humana por narrativas, Gottschall e companhia terão trabalho considerável para convencer a maioria de seus colegas, pesquisadores da área de humanidades ou escritores, de que não estão tentando "biologizar" indevidamente um fenômeno cuja esfera apropriada é a da cultura, e não da natureza.

Vários dos entrevistados pela Folha sobre o tema falaram sobre os perigos de uma visão determinista do homem e recordaram a celeuma em torno da sociobiologia, movimento científico dos anos 1970 que é precursor da atual psicologia evolutiva e ficou sob fogo cerrado por supostamente justificar práticas sexistas e racistas com base "na natureza humana".


"O mundo está ficando cada vez mais 'naturalizado'. Todo mundo conhece os efeitos do darwinismo aplicado às questões sociais e o fascínio de justificar o senso comum e o preconceito por meio de uma teoria genial", diz o escritor carioca Bernardo Carvalho.


Ele critica a ideia de que certas literaturas seriam mais "naturais" que outras. Gottschall, por exemplo, afirma que os experimentos radicais de certos autores modernos, como James Joyce (1882-1941), são impenetráveis para pessoas comuns por não levar em conta a predileção humana por narrativas com começo, meio e fim.


"Há em Joyce, e em um monte de outros autores, não só modernos, uma teimosia, uma resistência a reduzir o homem às suas funções naturais. E a literatura passa a ser a própria expressão disso. Há, nesses autores, uma vontade muito forte de escapar ao determinismo ao qual o homem está condenado. Não se trata apenas de contar histórias, mas de refletir sobre essa condição trágica", argumenta Carvalho.


"Os darwinistas literários têm o grande mérito de colocar em pauta um problema de crescente interesse: as relações entre natureza e cultura, esferas que foram frequentemente percebidas como domínios estanques e separados", diz Idelber Avelar, professor de literatura latino-americana da Universidade Tulane (EUA). Para ele, o próprio impacto da ação humana na biosfera, ao longo dos últimos séculos, exige tal reflexão.


O problema, adverte Avelar, é que "os darwinistas literários não propõem um questionamento da fronteira entre ciências humanas e naturais, mas sugerem que aquelas devem adotar o modelo destas. Há uma nítida hostilidade às humanidades em seu trabalho. Ao analisar narrativas e poemas, eles terminam sempre pressupondo a conclusão a que querem chegar".


Um pouco mais compassivo, João Cezar de Castro Rocha, do Instituto de Letras da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), diz que é interessante a possibilidade de estudar a literatura pelo prisma evolutivo e que o espectro da sociobiologia não deveria tolher a pesquisa.

"Mas é importante situar o problema numa escala histórica. Não se trata da grande novidade do momento. A discussão, no fundo, tem a ver com a tensão permanente entre saber o que é mais relevante para o ser humano, 'nature' (natureza) ou 'nurture' (criação), e durante muito tempo a balança pendeu para o lado da 'nurture'."


Ele aponta também a dificuldade de traçar cenários mais seguros sobre a evolução humana e, em especial, quando o tema são comportamentos --os quais, por definição, não se fossilizam. Mas admite que o impulso de especular é quase irresistível.


"É fascinante pensar, por exemplo, se o processo que levou à complexidade mental humana foi desencadeado não por um cérebro maior que nos permitiu contar histórias, mas pelo início do ato de narrar desencadeando, com o tempo, mais complexidade cerebral", propõe.