segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Escrever


A Arte do Estilo,

Bráulio Tavares



Uma vez, numa dessas oficinas literárias que faço de vez em quando, um aluno trouxe um conto bacana. Tinha uma boa idéia de enredo, mas o acabamento ainda era meio hesitante. Comentei isso com ele, e ele concordou.


– Eu acho a idéia melhor do que o estilo – disse ele. – Mas onde é que a gente vai buscar estilo? Enfeitando as frases?

Essa é uma questão delicada, porque para muitos leitores “estilo” é sinônimo de efeito. Talvez seja uma influência dos locutores de futebol da TV. Toda vez que um jogador faz uma posição de corpo meio caprichada e bate na bola de maneira acintosa, “self-conscious”, meio exibicionista, o locutor diz que ele “bateu com estilo”.

Neymar é um bom estiloso, neste sentido. Romário também, e Maradona. Já artilheiros como Cristiano Ronaldo e Lionel Messi não são. Batem com perfeição, mas na medida exata do necessário, e parte do seu talento talvez esteja nesta percepção instintiva. Sabem numa fração de segundo a força exata, a colocação precisa, o mínimo volteio necessário do corpo para botar a bola no ponto ideal.

É a arte do não exagerar, não caprichar, não estilizar. “Estilo”, no futebol, é quando o cara quer mostrar 130% de talento num chute.

Transposto para a literatura, estilo (neste sentido, que vou logo dizendo que é equivocado) é visto como sendo uma beirada contínua de excesso que o escritor vai espalhando ao longo da frase. Me parece um erro.

A definição de estilo que eu uso atualmente é: “Maneira pessoal de escrever onde estão trançadas as qualidades e as limitações de um autor”. O estilo é o resultado não só do que o cara sabe fazer muito bem, mas do que ele não consegue fazer direito, e por isso precisa dar uma volta extra para chegar no mesmo ponto.

Ninguém no mundo tem o mesmo conjunto de qualidades e de limitações, por isso não existem dois grandes autores com estilos iguais. Só os medíocres se parecem, porque no gráfico deles tudo tende ao horizontal.

Voltando à Oficina: falei para o aluno que talvez ele pudesse enriquecer o estilo dele lendo alguns autores. “Quem você lê, quando quer se inspirar?,” perguntei. Ele respondeu:

– Ultimamente eu tenho lido Edgar Poe, Jorge Luís Borges, Roberto Bolaño...

Eu maldo que ele só disse isso porque conhecia este blog e deve saber que eu gosto de todos três. Falei:

– Pois eu vou te passar um dever de casa para os próximos 12 meses. Você vai ler a Antologia Poética de Vinicius de Morais, a Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, e qualquer livro de Cecília Meireles.

Por que falei isto? Primeiro, porque a prosa dele não tinha absolutamente nada de Borges, nada de Edgar Allan Poe. O que é uma coisa ótima, porque são dois autores cujo modo de escrever se entranha de tal forma na cabeça de um leitor constante (eu que o diga) que acabam causando mais mal do que bem.

E segundo porque os contos dele eram Roberto Bolaño puro, no sentido de que a maioria dos textos de Bolaño são textos sem pretensão de beleza, de “exuberância verbal”. Bolaño, ou pelo menos o Bolaño dos quatro ou cinco livros que li, escreve com rapidez e limpidez admiráveis. Mas é uma limpidez conseguida ao longo de décadas. Uma limpeza de quem foi se livrando de lastro ao longo da escalada e chega ao topo da montanha com um binóculo e uma mochilinha com propulsores a jato.

Faltava ao jovem contista um pouco de enfrentamento verbal, e esse enfrentamento verbal ele talvez conseguisse lendo poesia. Talvez. A gente receita essas coisas mas não pode garantir o resultado. Porque a prosa de cada autor ressoa de maneira diferente no cérebro de cada leitor.

Resumindo: se você é contista ou romancista, aconselho que leia mais poesia. Mas não é ler por obrigação, é ler gostando.  É ler estudando como os efeitos foram obtidos, como aquelas palavras foram pensadas, por que aquelas palavras e não outras.

A maior parte dos prosadores acha que se a história for boa, as frases não precisam ter ritmo, não precisam ter sonoridade balanceada. Precisam sim, e esta é a parte mais difícil. Idéia boa todo mundo tem. Todo coquetel que eu vou alguém me chega com uma idéia boa para um conto. Mas, e as palavras, autoridade? Que palavras você vai escolher pra passar essa boa idéia adiante?

Reversamente, quando um poeta me pede recomendações de leitura, eu sugiro que leia um romance clássico, leia um Jorge Amado, um Balzac, um Somerset Maugham. Por que? Porque muitos poetas estão no extremo oposto do que discuto aqui: têm as palavras, têm o eu lírico, têm a “melodiosidade”, têm o domínio da cadência, mas falta-lhes assunto, falta vastidão de sentimento, falta verdade coletiva. Ficam versejando sobre o reflexo do sol numa nuvem, e a coisa não sai disso.

Numa edição recente do ótimo jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, Sérgio Sant’Anna, um dos mestres que minha geração de contistas mais estudou, comenta, a propósito do constante diálogo de sua ficção com as artes plásticas:
Sempre me interessei por novos processos, e transformar o visual artístico em palavras me parece o melhor dos mundos. Se eu construir um livro que tenha como inspiração a própria literatura, vejo um grande risco de contaminação, até de certo plágio. Você pode se deixar levar demais pelo outro autor. Inspirando-me nas artes plásticas e no teatro, eu não corro esse perigo. Porque o que eu farei nunca será o que eles fazem.
Escritores inspirados e desafiados pelas artes plásticas têm esse misto de liberdade e impossibilidade: criar com palavras algo que lhes estará vedado para sempre, porque consiste em imagens. E essa impossibilidade (essa limitação) fará desenvolver seu estilo.

Leia-se uma boa parte da obra de Osman Lins, de Georges Perec, de Angela Carter, de Julio Cortázar, de Ariano Suassuna, de J. G. Ballard, de Umberto Eco, de Vladimir Nabokov, de Karen Blixen... São escritores com imensa fascinação pelo visual, pelo plástico, autores capazes de longas descrições pictóricas que jamais equivalerão a uma imagem – daí sua riqueza estilística, como compensação de uma limitação.

Não só a imagem, claro – só para não ampliar ainda mais essa lista já grande, vamos pensar na influência que a música exerce na prosa de Cortázar, de Ariano, de Osman Lins.

Trazidas para a prosa, essas influências “estrangeiras”, a pintura, a música, o teatro, enriquecem a prosa porque a colocam diante de uma tarefa, basicamente, de tradução. E tradução nunca é igual.

Dois escritores que leiam muito Jorge Luís Borges escreverão de um jeito parecido. Dois escritores que ouçam muito Mozart (ou Pixinguinha) podem até achar que estão reproduzindo na sua prosa certos efeitos formais ou estruturais do que ouvem: mas os resultados serão diferentes. Em cada um, a síntese pessoal produz um estilo diferente. 








Imagens: a 1a foto perdi a referência. a 2a é um cavaleiro cruzando o lago Baikal congelado.




sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Escrever

Macroplanejadores e Microgerentes





Martha Batalha
 (VIA_ )


Em palestra para o curso de escrita criativa da Columbia University, a escritora inglesa Zadie Smith dividiu os escritores em dois grupos – os macroplanejadores e os microgerentes. Macroplanejadores só iniciam o processo criativo depois de extenso planejamento. São dedicados no processo de pesquisa, generosos em notas e precisos em seus cronogramas e linhas do tempo.

É possível reconhecer um macroplanejador pelos post-its e moleskines. Lembra aquele colega de escola que todos tivemos, que tinha o caderno mais organizado e usava canetas coloridas para dividir assuntos e matérias. A segurança de estrutura possibilita aos macroplanejadores a liberdade de movimento – não é incomum começarem um romance pelo meio. Na medida em que progridem, as escolhas aumentam – podem escrever múltiplos finais, tirar e incluir personagens, mudar o local de um livro de Londres para Berlim ou alterar a ordem dos capítulos.

Microgerentes são aqueles para quem o livro só acontece no momento presente – uma sentença leva a outra, e a outra. Por isso as primeiras 20 páginas são as mais importantes e difíceis de escrever. Definem perspectiva e voz, e formam a base do processo subjetivo adotado por este tipo de escritor. Um microgerente pode passar meses reescrevendo essas páginas até encontrar o tom que deseja seguir. O resultado pode levar a um início de romance engessado, com frases por demais trabalhadas, em que o leitor consegue perceber o esforço exagerado do escritor. Mas apesar do sofrimento implícito e perceptível, superar estas primeiras páginas conduz a um livro que se escreve com facilidade. Preocupar-se com as 20 primeiras páginas é uma forma de se preocupar com o romance inteiro. Uma forma de encontrar sua estrutura, enredo e personagens, elementos que para um microplanejador estão contidos na sensibilidade de uma sentença.

O escritor James Patterson, que já vendeu mais de 300 milhões de exemplares, é um exemplo de macroplanejador. Constrói seus livros a partir de uma estrutura anterior à elaboração dos capítulos, e durante meses alimenta esta estrutura com apontamentos para cenas e diálogos. Quando termina o processo, afirma, o livro está praticamente pronto. Só é preciso seguir o roteiro estipulado. Ken Follet é outro autor de best-sellers que segue processo semelhante. Primeiro define a estrutura, para depois desenvolver os capítulos.


Pode-se dizer que o gênero destes autores – ficção popular – é compatível com o excesso de planejamento. Tanto Patterson quanto Follet escrevem livros que precisam manter a atenção do leitor a cada quatro ou cinco páginas, e que por isso seguem um padrão. Seus livros lembram os capítulos de uma novela brasileira – toda a noite a trama termina com um suspense que será solucionado no dia seguinte. Alguns dias depois o espectador nem se lembrará do que tanto o preocupava naquela noite de quarta-feira. Haverá outras reviravoltas, descobertas, traições.

Mas nem todos os autores de best-sellers trabalham assim. Stephen King não acredita em planejamento. Para ele, estruturar um romance mata a espontaneidade do processo criativo. King define o processo como um estado de transe que anula o tempo – parte de seu trabalho como escritor, ele diz, é sonhar acordado. O escritor de livros policiais Lee Child trabalha da mesma forma. Certa vez um pesquisador da universidade de Cambridge pediu para acompanhá-lo durante o processo de escrita de um livro. No primeiro parágrafo do livro, Child descreveu a morte de um personagem chamado Keever. O pesquisador perguntou a Child quem era Keever, e o que tinha acontecido com ele. Child respondeu que não tinha a menor ideia – só depois de escrever dois terços do livro é que a trama começou a fazer sentido, até mesmo para ele.

Esse processo de escrita que não passa pelo racional é mencionado por muitos outros escritores. Hemingway dizia que depois de um dia de trabalho é preciso se esquecer completamente do que foi feito, para o subconsciente alimentar o trabalho do dia seguinte. Elena Ferrante descreve sua frantumaglia – pedaços de sentimentos e memórias que habitam a mente de uma pessoa. No caso de um escritor, parte deles obedecem a uma ordem, e começa ali o processo narrativo. Sue Grafton descreve seu relacionamento com o lado direito do cérebro – quando está diante de um impasse na narrativa escreve notas para ele, pedindo ajuda. Zadie Smith fala do meio de um romance, em que acontece um processo de pensamento mágico: “O tempo entra em colapso, você senta para escrever às nove da manhã, pisca e já é de noite. Na tela estão 4 mil palavras, mais do que você escreveu em três meses de trabalho”.

Alcançar e manter este fluxo criativo não é um processo fácil ou contínuo. George Saunders demorou quatro anos para escrever o conto “Dia das mães” (o que ele se permitiu fazer por ganhar a vida como professor, e por ter a paciência e a sabedoria exercitadas em décadas de meditação). Mark Twain acreditava que alguns romances e histórias inacabados precisavam ser esquecidos por alguns meses ou anos, para o autor voltar a eles com nova perspectiva e energia. “Rezar pode ajudar”, afirma Margaret Atwood, num conselho sobre escrita que reconhece o desespero inevitável do processo.



Macroplanejadores diminuem riscos e sofrimento ao tentar controlar os caminhos subjetivos da escrita, mas também perdem no processo parte do prazer. “Existe algo de maravilhoso ao ver uma figura emergir de uma pedra, ao sentir a presença de algo com você, e além de você. Alguma coisa consistente e boa, cujo objetivo parece ser o de levá-lo a uma existência superior”, diz George Saunders, para quem o verdadeiro artista sempre trabalha fora do domínio da lógica.

Para os macroplanejadores a figura também emerge da pedra, mas eles estão ali, já certos do formato que desejam construir. Ou, usando outra metáfora, agora de Zadie Smith – enquanto microgerentes constroem uma casa quarto por quarto, macroplanejadores constroem a casa para depois mudar a mobília de lugar –, podem começar a escrever um romance do meio para o início ou final, mudam o sexo dos personagens, criam diferentes desfechos.

Não existe resposta certa, apenas a escolha de um caminho que torne a escrita viável. “O escritor é aquele que, enquanto trabalha, não sabe o que está fazendo”, afirma Donald Barthelme. Penso que a afirmativa funciona tanto para microgerentes quanto para macroplanejadores. A diferença é que os primeiros dão um passo no escuro, enquanto os últimos acendem a luz, conferem o caminho, e depois fecham os olhos para melhor sentir os passos.


 

 Imagens: análise de composição em quadrinhos por Nick Sousanis - twitter @Nsousanis - VIA

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Escrever







 A respiração narrativa


Raimundo Carrero


Quem já leu o pós-escrito a O nome da rosa, de Umberto Eco, deve ter observado com atenção a técnica da “respiração narrativa” em que ele justifica a redação das primeiras cem páginas do romance famoso. Essas primeiras cem páginas pareciam inúteis e injustificáveis dentro da estrutura da obra. Correu a lenda, depois justificada, segundo a qual, o editor teria solicitado a Eco que retirasse estas páginas porque elas não conduziam a nada. A resposta do autor foi imediata: se o leitor não seguir estas páginas, não sentirá a respiração do texto, que é essencial. Durante a leitura — basta observar com atenção — o leitor, tenso e cansado, é conduzido ao monastério onde a história se desenvolve. Ocorre aí a respiração. Os leitores, quase todos, confessam que sentem vontade de desistir, forçam a leitura assim mesmo: forçam a leitura, mas param um pouco aqui, um pouco ali, cansam, e se perguntam: quando a história vai começar? O enredo, com certeza, não começou, mas a história e seu desenvolvimento estão em andamento. Daí a ansiedade, a expectativa. Eu mesmo passei por isso. Tive que começar e recomeçar inúmeras vezes. Às vezes me irritando: “não suporto mais esta conversa mole”, mas não desisti e segui, com angústia, mas segui.

Imagino a pergunta: “História é diferente de enredo?”. Sim, é diferente. E muito diferente. História é a narrativa plana, em que não há episódios intrigantes, suspenses, mudanças de planos, que são naturais no enredo, também chamado de intriga. No enredo acontecem ações sobre ações, que chamamos de cenas sobre cenas, às vezes cortadas por cenários sobre cenários, alongando ou reduzindo a narrativa, como se pode fazer numa sinfonia ou numa ópera. Na história, por exemplo, os cenários prevalecem sobre as cenas, que significam movimentos interiores rápidos e, às vezes, desarmônicos, tudo para seduzir e impressionar o leitor, sem tempo para respiração longa. Isso mesmo, respiração longa. Vejam bem: terminamos na técnica da respiração narrativa.

Quando era muito jovem, ginasiano, como se dizia na época, li um romance policial — de cujo título nem lembro mais — que me tomou o fôlego. Fôlego? Sim, ainda mais uma vez circulando em torno da respiração. Foi a leitura de uma manhã, sentado num banquinho, encantado com o enredo. Um romance policial é um romance de intrigas, de cenas. Por isso, Autran Dourado escreve mais ou menos assim: “enquanto o leitor se encanta com o enredo, o autor rouba a carteira do leitor”. Enredo. Já disse: cenas sobre cenas sobre cenas, onde até os cenários forjam intrigas e situações. Mas um romance é também um romance de história, com planos psicológicos, existenciais e vulgares, em que não se leva a uma conclusão espetacular, magnífica, mas a um plano superior de Beleza e de Encantamento.

O livro de Eco é romance de história — daí as primeiras cem páginas — e romance de enredo — vejam-se as ações dos monges.

Sempre que dou exemplos, gosto de mostrá-los para situar melhor o leitor, mas é óbvio que não poderei fazer isso com as cem páginas de Eco. Mesmo assim, leiam e analisem, por favor, as palavras iniciais do romance para ficar mais claro, embora o texto seja obscuro, sobretudo pelas citações em latim:

“No princípio era o verbo e o Verbo estava junto a Deus e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio junto a Deus e o dever do monge fiel seria repetir cada dia com salmodiante humildade o único evento imodificável do qual se pode confirmar a incontrovertível verdade. Mas videmus nunc per speculum et in aenigmate e a verdade, ao invés de cara a cara e, manifesta-se deixando às vezes rastros ( ai, quão inelegíveis) no erro do mundo, tanto que precisamos calculá-los, soletrando os verdadeiros sinais, mesmo lá onde nos parece obscuros e quase entremeados por uma vontade totalmente voltada para o mal”.








Imagens: análise de composição em quadrinhos por Nick Sousanis - twitter @Nsousanis - VIA

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Escrever


"O Soneto de Arvers" por Bráulio Tavares



"Meu pai tinha esse livro, uma compilação de Mello Nóbrega, quando eu estava na minha fase áurea de memorização de sonetos, entre os dez e os quinze anos. Não só sabia a diferença entre decassílabo e alexandrino como podia criar exemplos passáveis de cada um. Nas primeiras vezes em que folheei a obra ela me fascinou porque os sonetos eram todos diferentes e todos iguais. Um dia parei para ler a sério e percebi que o soneto era um só, escrito pelo poeta francês Félix Arvers, e o que havia ali eram algumas boas dezenas de traduções portuguesas e brasileiras. Além de uma lista de paráfrases, paródias, possíveis citações, etc.  São no total 130, ao que parece.

O soneto de Arvers é merecidamente famoso como soneto de salão: “Tenho na alma um segredo, e um mistério na vida...”  O poeta conta sua paixão por uma mulher, à revelia dela, e diz que um dia ela própria, a inspiradora desses versos, irá lê-los num livro, e pensará consigo: “Quem será essa mulher?”, e não compreenderá. É um bom soneto, que entre nós poderia ser de um Bilac ou de um Guimarães Passos.
Uma visão radical da tradução literária pode nos sussurrar que um soneto em francês não é mais do que um conjunto de instruções, levemente esboçadas, para alguém escrever um soneto semelhante em português. Foi o que fizeram nossos tradutores de Félix Arvers. Uns mexiam na estrutura das rimas, outros a desobedeciam por inteiro, outros eram mais realistas que o rei. Trechos longos eram revirados de dentro pra fora para fazer tempos verbais coincidirem. Mas os elementos estavam todos ali. Havia uma coisa elástica, inquebrável, complexa, era uma idéia que vinha expressa de cem maneiras diferentes e parecidas. E essencialmente iguais, em termos do tipo de impacto a que um soneto se propõe. O soneto é como o conto para Cortázar: tem que vencer por nocaute. Ainda mais porque o soneto tem tamanho fixo, previsível, todo mundo sabe quando vai terminar.
Na mesma época eu tinha lido sobre a Pedra de Roseta, na História do Mundo Para as Crianças de Monteiro Lobato. O livro sobre o soneto de Félix Arvers era uma pedra-de-roseta poética. Quando eu não sabia uma palavra do original francês, era só procurar seus correspondentes topológicos nas traduções, e eu tinha em mãos um dicionário poético. E quando eu abria o livro, minha leitura não estancava na folha aberta à minha frente, ela penetrava como um laser (que não existia ainda) nas páginas amontoadas embaixo e via a estrutura da historieta de Arvers coleando, bruxuleando, saltando de página em página e se recompondo, inteira ou cheia de ruídos, em cada nova versão.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Escrever

A melhor maneira de divulgar seus contos

1 ) Esses dias um amigo meu me dizia que não se lembrava de nenhum grande escritor cuja carreira se baseasse unicamente em contos. A maioria dos nomes que imediatamente associamos ao conto, segundo ele, é de cultores de alguma outra prática literária. Borges e Poe também eram poetas e ensaístas, Tchekhov e Bábel dramaturgos, Otto Lara e Walsh eram jornalistas. Os russos (Tolstoi, Dostoievsky, Turguêniev), os americanos (London, Faulkner, Hemingway, Fitzgerald), os brasileiros (Machado, Rosa, Lima Barreto, Clarice), e muitos outros (Cortázar, Calvino, Wells, Kafka, Woolf, Flaubert), todos eram também romancistas. Deve existir por aí um exército de contistas “puros”, eu mesmo conheço um bocado, mas estávamos falando dos notáveis, aqueles que aparecem em quase todas as listas e antologias. Só me lembro de três: O. Henry, Schulz e Munro, que talvez tenham deixado por aí cartas ou diários, não necessariamente com intenções de publicar.


2) No caso da maioria dos romancistas citados acima: se falamos de contos em geral, rapidamente nos lembramos deles; se falamos deles, rapidamente nos lembramos de seus romances. Seus contos só aparecem adiante. O conto não vende, e editor nenhum quer publicar, ainda mais se o autor é inédito; uma regra boba dos mercados editoriais. Talvez seja esse o motivo pelo qual os contistas se dedicam também a outras atividades. Só que mais bobo ainda é encarar o conto como um treinamento para obras maiores. Um treinamento (em nosso caso, rascunhos e primeiras versões) é aquilo que não se mostra; os contos são obras definidas. Quem os lê não espera ali um preparo para algo maior; o conto não é um teaser: deve funcionar por si só.
 


3) Dizem que um escritor chamado Paustovsky, ao visitar Isaac Bábel, se espantou com uma pilha de manuscritos: “Finalmente escrevendo um romance?”, perguntou Paustovsky. “São os rascunhos de um conto”, respondeu Bábel. Não estavam ali todas as versões; eles contaram apenas vinte e duas. Ao leitor, entretanto, só interessa a versão final – treinamento é cada versão que ele jogou fora.


4) O conto geralmente é esquecido com mais facilidade. Primeiramente, pelo leitor. Uma mera questão de formatação – é mais difícil se lembrar de todas as 50 narrativas breves de um volume de Lydia Davis que de um romance do mesmo tamanho, com seus personagens definidos e seu único enredo. Lemos um conto numa revista ou antologia, junto com dezenas de outros textos, e naturalmente nos esquecemos de alguns. O livro como um todo é mais resistente.


5) Em seguida, pela História. As antologias de Borges, Hitchcock e Bráulio Tavares estão forradas de grandes contos desconhecidos. O romance Lolita foi inspirado num conto homônimo de um autor alemão sem muita fama. O outrora famoso contista e poeta Delmore Schwarz é bem menos conhecido que os romancistas que ele influenciou. Um bom escritor poderá fazer uma carreira baseada em um único romance, mas dificilmente conseguirá forjar uma carreira baseada em um único conto, ainda que estejamos falando apenas de obras-primas. Você compraria um livro com (ou por causa de) apenas um conto?


6) De acordo com Borges, não sem uma grande dose de ironia: “Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos”. O trecho está no prólogo à primeira parte de Ficções. Borges inventou muitos romances, mas não escreveu nenhum deles.


7) Um romance é mais difícil de escrever que um conto. Sempre achei isso muito óbvio, e nunca entendi porque tem gente que afirma que não. Poderão discordar comparando O Jogador de Dostoiévsky, escrito num mês, com o tal conto de Bábel e suas vinte e duas versões; mas são exemplos extremos, escolhidos cautelosamente. Quantos romancistas não arrancam seus cabelos diariamente, durante anos, na criação de uma única obra? Quase todos. Dá muito mais trabalho fazer vinte de versões de um romance. Do mesmo modo, é mais difícil criar um longa-metragem que um curta, uma sinfonia que uma sonata, uma graphic novel que uma tirinha. É mais difícil simplesmente porque é mais longo.

8) Anunciá-lo, porém, parece interferir diretamente na autoestima de alguns realizadores das formas breves. Só que dizer que o romance dá mais trabalho não é de maneira alguma declarar superioridade; o que conta é a forma final. Não troco “Funes, o Memorioso” por muitos romances que devem ter dado um trabalho danado pra escrever. Acreditar que o mero gênero literário é indicador de superioridade é o mesmo que atribuir valor a um livro apenas porque levou muito tempo para ser escrito, ou ainda que dizer que um escritor é bom porque escreve com velocidade.

9) Não é incomum encontrar, em qualquer área, pessoas que atribuem autenticidade ao trabalho do amador, à obra feita nas coxas, sem nenhuma justificativa. No mesmo caminho, muitos estranhos me enviam contos, ensaios ou poemas sem eu pedir, ou os publicam por conta própria, anunciando de antemão que não foram revisados. Isso soa como uma defesa antecipada contra as críticas inevitáveis. Se não foi revisado, é porque não está pronto. Até sair algo bem feito, é muito difícil. E se não está pronto, por que enviar aos outros? Pior ainda, por que publicar?

(Essas últimas notas foram levemente baseadas nesse ótimo texto de Sérgio Rodrigues e nesse de Carol Bensimon. Aos que discordam, sugiro fazer o teste empírico: escreva um conto e um romance, o melhor possível, depois reescreva tudo e revise o quanto for necessário. Por fim, me diga qual deu mais trabalho). 


10) Machado de Assis escreveu 218 contos (publicou em livro “apenas” 76), sendo os mais conhecidos “A cartomante” e “A missa do Galo”. Faulkner escreveu 125 contos. O mais famoso é “Uma Rosa Para Emily”. Agora me pergunto: esses contos seriam tão lidos se seus autores também não tivessem escrito obras-primas do romance? Dom Casmurro traz público para “O Alienista”. Luz em Agosto sustenta Lance Mortal. Se não fossem seus clássicos, o irregular livro de contos policiais de Faulkner provavelmente estaria esquecido. É por isso que as grandes editoras só publicam volumes de contos de escritores já estabelecidos. É preciso se tornar Salinger antes de conseguir publicar Nove Estórias.


10) As melhores listas são feitas à margem. Os centros tendem a supervalorizar o que lhes é próprio. Uma lista francesa geralmente terá muitos franceses; uma alemã, muitos alemães; uma lista norte-americana ignorará todos os estrangeiros, quando não for inevitável. Já a lista da Bravo! “100 contos essenciais da literatura mundial” tem russos, ingleses, italianos, americanos, franceses, argentinos, árabes, alemães, gregos, japoneses e até brasileiros. Na lista estão Xaiver de Maistre, Buzzati, Yourcenar e Schitzler, autores, cada um, de um único romance realmente famoso, tanto que eu nem sabia que escreviam contos. Se não fossem os romances que lhes deram fama, estariam eles na lista? Não podemos afirmar, mas W. W. Jacobs escreveu um grande conto chamado “A Pata do Macaco”, que está na Antologia de Borges/Casares/Ocampo, mas em nenhuma outra lista que eu conheça. Apenas com seus contos, sem o Pedro Páramo, como nos lembraríamos de Juan Rulfo?

11) “Antologia” e “coleção” são palavras dúbias. Vamos considerar aqui “antologia” como a reunião de contos de autores diversos, e “coleção” como reunião de contos de um mesmo autor. As coleções podem ser organizadas de duas maneiras: os contos num volume sem correlação interna e num volume fechado, com uma ordem e uma unidade estabelecida. Os contos de Tchekhov variam de acordo com a edição, e tenho “A Dama do Cachorrinho” em duas coleções completamente diferentes, ambas com esse título. Já em todos os volumes de Ficções, os contos estão na mesma ordem e quantidade. Javier Marías publicou de antemão todos os seus contos, porém Quando fui mortal tem uma unidade bem particular, que não muda de uma edição para outra. Otto Lara Resende não publicou antes nenhum dos contos de Boca do Inferno, que foi planejado para funcionar como um todo, em livro, e obedece a uma unidade rígida – eles não devem ser lidos isoladamente. Os contos de A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan, podem ser lidos separadamente, mas juntos formam um romance. Os livros de contos de detetive de Walsh, Borges, Chesterton e Conan Doyle não somente seguem a uma unidade, como também seus principais personagens são os mesmos. Já de Poe, apesar da manutenção do título, nunca vi duas edições de Histórias Extraordinárias em que o índice se repete. Eu tendo a gostar mais das coleções planejadas. Minhas favoritas quase sempre têm um tema unificador muito claro: Cathedral, de Carver (casamento); As Cosmicômicas, de Calvino (axiomas da ciência); Boca do Inferno, de Otto Lara Resende (perversidade com/de crianças); Sagarana, de Rosa (sertão mineiro); Adeus, Columbus, de Roth (judeus da costa leste); Todos os fogos o fogo, de Cortázar (nem sei explicar, mas tem); Três Contos, de Flaubert (idem); Vidas Imaginárias, de Schwob (a história do mundo); O Livro de areia, de Borges (história da literatura e gaúchos); Ao longo da linha amarela, de João Filho (o delírio soteropolitano); Perus, Malagueta e Bacanaço, de João Antônio (os subúrbios de São Paulo).


12) Ando pensando bastante sobre o conto porque finalmente estou escrevendo aquele livro que foi aprovado no edital. Tenho já um livro de contos pronto (abaixo falo mais dele), e fiz um projeto em que reuni os melhores contos soltos que tinha e tentei unificá-los. Agora, com o projeto em andamento, percebi que alguns deles simplesmente não cabem no contexto geral. Estou escrevendo outros, para completar a coleção, e estou lendo contos obcecadamente (esses livros das fotos, entre outros). Antes mesmo de aprovar meu projeto, tinha enviado sem muitas expectativas um conto para a belíssima revista Flaubert. Acabei publicando outro conto lá, e nem me lembrava mais desse. O conto se chama “Suspiros que cortam o ar”, e é o primeiro de um livro sobre cangaceiros, rixas, vinganças, bangue-bangue, essas coisas, que escrevi já faz algum tempo. É um de meus contos favoritos desse livro. Ele saiu exatamente essa semana, quando estou mergulhado em meu projeto, e já tinha planejado estas notas sobre contos. Foi uma boa surpresa. Ele pode ser acessado neste link (página 65).


Agora, respondendo à dúvida do título, a melhor maneira de divulgar seus contos é publicar antes um romance. Mas se você já publicou um romance, não faz mais sentido querer divulgar seu último conto com tanto afinco, pois o romance terá mais alcance e urgência. Provavelmente deu mais trabalho de escrever. Então qual a melhor maneira de divulgar seu romance?


Oras, publicar um conto na New Yorker.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Escrever



Teu protagonista não convence. Refaça.


(Correspondência do escritor Daniel Galera para o editor André Conti. VIA)



Amigo André,

Folgo em saber que vai retomar o projeto do teu romance. Talvez tu não lembre bem, mas já me falou sobre ele em detalhes, da mesma forma que não me lembro bem dos detalhes, pois estou seguro de que estávamos os dois bêbados e, provavelmente, transtornados. É o da Múmia? Mas não, prefiro que não repita nada, quero ser surpreendido quando tu me mandar o original. Acho que nem preciso dizer que a amizade estará anulada caso tu não me inclua entre os teus primeiros leitores. Pode até me mandar o conto do poeta concreto, pra eu ir esquentando. Saberei ler no contexto, não tema.

Aliás, interessante tu ter escrito isso: “Na faculdade eu escrevi contos, não sei onde estava com a cabeça. São uns textos pretensiosos, forçados, ainda bem que só um foi publicado.” Eu também escrevi uns contos na faculdade. Eu também não sabia onde estava com a cabeça. Eram uns textos pretensiosos, forçados. Ainda bem que... não, peraí. Vários foram publicados. Alguns até entraram no meu primeiro livro e podem ser lidos por todo mundo, porque deixo o PDF lá no meu site. Sem drama, um livro também é seus defeitos, como uma pessoa.

Mas o que eu queria mesmo dizer é que admiro medularmente o que no fim das contas tu escolheu ou foi levado, qual títere, a fazer: ser editor. Eu tive minha temporada como editor, com o Mojo, quando criamos a Livros do Mal, e eu tirava um prazer enorme daquilo. Mas é difícil, e não é pra qualquer um, e uma hora eu senti que precisava escolher entre editar livros dos outros ou tentar escrever os meus. Não que sejam atividades excludentes, não necessariamente. Pode-se ter talento para as duas. Mas dificilmente alguém terá energia para as duas. Para se entregar de coração, apontar a vida para as duas ao mesmo tempo. E tu não me convenceu, assim como não convenceu a si mesmo, quanto tentou dizer na tua última carta que ser editor não é um trabalho criativo à sua maneira. Um dos maiores lugares-comuns sobre o trabalho do escritor, propagado com alguma frequência por mim mesmo, porque falo sem pensar, é que o escritor trabalha sozinho. “Escolhi isso porque não sei trabalhar com os outros.” O escritor trabalha com o editor.

Todos os meus livros foram melhorados por editores, em diferentes graus, mas sem exceções. Vale até para os primeiros, independentes, que certamente foram melhorados pelas sugestões do Mojo, que até hoje está entre os meus primeiros leitores, mas que na época da Livros do Mal também era uma espécie de editor pra mim. Graças ao Luiz e à Marta, cortei toneladas de mimimi, explicações desnecessárias, redundâncias, advérbios e adjetivos excessivos, cenas bobas e cafonices dos meus livros. A primeira versão do Cordilheira foi praticamente recusada. Talvez ela tenha sido recusada. Não lembro bem, bloqueei a memória. Mas os seis meses de trabalho adicional baseado nos comentários editoriais me permitiram fazer um livro melhor. Sem a tua ajuda, os diálogos da Cachalote simplesmente não seriam o que são.

Uma vez, num debate do qual participei, alguém sugeriu que os meios digitais acabariam matando a figura do editor, pois o autor poderia levar o trabalho direto ao leitor, sem intermediários etc. E eu disse que podem até matar o editor, não duvido que aconteça, mas em pouco tempo ele será ressuscitado por autores trêmulos e desamparados. O mercado poderá mudar à vontade que o editor estará encaixado em algum lugar, talvez como uma espécie de consultor freelancer cujo trabalho será respeitado como o das melhores casas editoriais.

Mas é claro que a ambição da autoria deve seduzir todo editor. Todo livro que nos encanta, que se conecta de verdade com nosso ser vital, parece ter sido escrito com facilidade justamente porque ocorre uma interseção dos dois conjuntos, a subjetividade do autor e a do leitor, uma interseção que sempre esteve lá ou que é engendrada pelo próprio livro ao afetar o leitor de maneira substancial durante e/ou depois da leitura. Parece meio inevitável que alguém tenha optado por dizer aquelas coisas daquela maneira. No entanto, o editor conhece tão bem como o autor a dificuldade de converter a visão de mundo em linguagem, ou o reino ideal da imaginação em uma narrativa pronta, escrita no papel. Pra quem dedica tempo da vida a criar histórias, a imaginação vai se tornando a referência, uma realidade total da qual as palavras não dão conta por mais que se expanda, reorganize e lapide o texto. Se tu (André) pensa no teu romance, aposto que vê toda a história ali, na nuvem diante da testa ou na tela atrás das pálpebras, todos os personagens, as relações entre cada elemento da história, todo o diagrama holográfico, absolutamente tudo que deseja comunicar. Aquilo existe, e parece tão palpável.

Mas aí tu senta na frente do teclado.

É por isso que eu amo os editores, porque eles sabem disso, mesmo que não tenham a ambição de serem autores. Eles entendem o processo, suspeito que podem até mesmo sentir o processo e se colocar no lugar do autor em muitos casos, mas estão, grosso modo, livres da vaidade, do desespero, do narcisismo, da segurança, da insegurança, da convicção, da ansiedade, da teimosia, da cegueira, da euforia, da arrogância, da humildade, do medo, da pretensão, para não dizer da eventual megalomania, bloqueio criativo, terror, paranoia, delírio e por vezes loucura do autor. Mas eles entendem o papel que uma, algumas, várias ou todas essas coisas podem desempenhar no trabalho do autor e estão – são os únicos, na grande maioria dos casos – em posição de ajudar.

Esses tempos andei pensando seriamente, pela primeira vez, numa pergunta tão repetida que a gente se acostuma a responder com leviandade ou galhardia: por que fui escrever em vez de fazer outra coisa? (Não que se escolha qualquer coisa nessa vida, nem preciso dizer, mas é imperioso agir como se tudo fosse uma escolha, então continue comigo.) Tudo bem, eu sempre fui meio quieto, tinha vontade de me expressar etc., mas a verdade é que tentei várias outras maneiras de fazer isso antes de escrever. A ideia de ser pintor, designer ou músico me seduzia muito mais do que a figura do escritor na adolescência, mas foi só na escrita que encontrei alguma recompensa verdadeira. Em parte, foi a descoberta de uma inclinação até então desconhecida para lidar com essa linguagem específica, ok, essa parte é fácil.

Mas o principal, acredito hoje, tem a ver com esse isolamento radical do momento criativo, a separação crítica, na literatura, entre o ato expressivo e o instante da fruição alheia. Que é o oposto, talvez, do que acontece com o ator, que pode até se preparar em reclusão, mas terá de desempenhar para a plateia, para a equipe de filmagem ou pelo menos para o diretor ou operador de câmera em algum momento. Mesmo um pintor, ele pode trabalhar em reclusão, mas se pensamos na obra, ela se oferece inteira a quem espiar pela fresta durante o processo, a pessoa bate o olho num quadro inacabado e ali está ele, inacabado mas inteiro, um fotograma total daquela etapa do trabalho.

O escritor de literatura não apenas pode trabalhar em reclusão, ele é quase obrigado a fazer isso, e não se pode bater o olho num original inacabado, não se pode apreendê-lo de imediato, é preciso ler, percorrer todo o percurso da obra inacabada numa situação que exclui o autor tanto quanto o processo criativo do autor exclui o leitor. O autor estará sozinho no que faz até o fim do processo e em geral por um bom tempo após o fim do processo também, e pode haver meses entre o ponto final e aquele dia em que o primeiro leitor da obra se aproxima e diz alguma coisa.

Caso não tenha ficado rocambolesco demais pra entender, foca nisso, nessa cisão extrema dos lugares que ocupam o autor enquanto trabalha e o leitor quando lê. Eu acho que é isso que me fez aderir à escrita. Que haja esse isolamento e esse descompasso e que, apesar disso, se possa ler um conto, um romance ou um poema e não apenas ter a impressão de que foi fácil, óbvio ou inevitável que alguém o tenha inventado e escrito daquela maneira, mas de que ele foi escrito para nós ou, em casos extremos, sublimes, por nós mesmos. E houve um momento da minha vida em que concluí que era desse jogo que eu precisava tentar participar, no papel de autor, e que seria melhor transitar nisso e fracassar do que ser bem-sucedido em qualquer outra coisa.

Os bons editores que conheço entendem isso, arrisco dizer. Fica claro quando tu começa a tocar nesse tipo de assunto, meio envergonhado, na defensiva, crente da inutilidade do esforço, imaginando com os leitores ririam, e como os críticos ririam, e como teus amigos e teus pais ririam, e como qualquer transeunte que fosse abordado aleatoriamente riria, mas não os editores, eles escutam esse tipo de coisa e dizem tudo que precisa ser dito com um aceno de cabeça curto, às vezes na vertical, às vezes na horizontal, ou na diagonal ou para todos os lados, dependendo do caso, e com isso tudo está dito, porque tu sabe que eles também sabem, e agora vamos ao que interessa: teu protagonista não convence. Refaça.

Tchê, talvez essa seja minha última carta por um tempo. Preciso dar um pouco de atenção pro meu livro e me enfiar num canto por umas semaninhas. Espero que entenda. (Percebe agora como toda essa carta visava única e somente a persuasão afetiva e a chantagem emocional?) Mas podemos seguir falando por mensagens de texto no celular, o chamado “torpedo”.

Melhoras aí no mindinho.

My best wishes,

Danny G.