sexta-feira, 20 de julho de 2018

Escrever



5. O conto maldito e o conto benfazejo

Sergio Sant´anna







I

Quantas vezes não nos espreita o conto maldito, do qual queremos fugir, mas algo assim como uma sina nos obriga a atravessá-lo? O conto dos crimes hediondos, como a sevícia e morte de mulheres e crianças, que preferíamos não escrever, como se o fazendo déssemos realmente à luz o monstro e seus atos. Não a escrita lúdica, proporcionando o prazer das histórias noires, policiais, como se o assassinato pudesse ser considerado uma das belas-artes, como no livro de Thomas de Quincey, e, sim, o lance brutal de uma lâmina espetando a carne indefesa, enquanto se abusa do corpo de quem não ousa nem gritar em seu pavor. O conto do qual somos simultaneamente autor e presa, pois passamos por ele como um flagelo e, no entanto, são apenas palavras que nós mesmos encadeamos. Mas, nessas palavras, como que se materializam, por exemplo, o maníaco que atrai o menino de nove anos, com a promessa de lhe dar uma bola de presente, e este menino e sua dor muda, pois sua boca foi tapada por uma das mãos do algoz. E não bastasse essa dor de carnes rasgadas, ao ser violentado, tão logo termina o sexo macabro há a faca que lhe penetra as costas até o coração. Um crime tão nefando que clamaria aos céus, houvesse um pastor nos céus  cuidando dos meninos aqui na Terra. Mas, houvesse Deus, não seria Ele responsável também pelo estuprador e assassino, pela extrema abjeção dessa criatura Sua? Não deveria Ele acudi-la em sua confusão e infâmia?


II

Mas por que teríamos tanto pudor ou desprezo pelo conto benfazejo, em que um homem deitasse o rosto na barriga da mulher grávida, auscultando os ruídos naquele lago profundo e milagroso, enquanto a mulher, por sua vez, lhe acariciaria os cabelos e, nesse momento, todas as possíveis desavenças seriam esquecidas assim como toda angústia para dar lugar a um entendimento mudo dos seres com o melhor de sua natureza?


 




(Conto do livro O Homem-Mulher (Cia das Letras).)