sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Escrever



Os dez mandamentos para um escritor iniciante 

 José Nêumanne Pinto


1.
Recuse a mediocridade, pois para escrever bem é preciso ter tolerância zero para o erro

Conheci o prazer de fruir a boa literatura antes de aprender a ler. Minha mãe dizia de cor poemas nas noites escuras e quentes do sertão na calçada da casa onde morávamos em Uiraúna (PB). Ali travei contato com Augusto dos Anjos, Jansen Filho, Casimiro de Abreu e, principalmente, Antônio Frederico de Castro Alves, os favoritos dela. Na primeira infância, me arrisquei a escrever logo depois de me ter iniciado no prazer da leitura. Foi aí que percebi que para escrever bem é preciso ler o máximo possível. Mas, de preferência, só ler coisas boas. A má leitura é nociva à boa escrita. O primeiro duro desafio para o autor iniciante é separar o joio do trigo. Certa vez, em Buenos Aires, o genial Jorge Luis Borges me disse que a imprensa é uma desgraça da humanidade, pois bom mesmo era o tempo dos papiros, pergaminhos e dos palimpsestos (principalmente neste caso, pois um texto teria de superar o outro para ser inscrito em cima dele), quando reproduzir a escrita dava muito trabalho, não era mecânica, como passou a ser por causa do prelo. Um dos escritores favoritos de Borges, o britânico Chesterton, escrevia muito para jornais, mas dizia que quando desejava saber o que se passava na humanidade, lia a Bíblia.
Os grandes escritores acabam por adquirir autonomia para o exercício seletivo do livre arbítrio em meio à profusão de publicações que a indústria editorial oferece. Cada dia fica mais fácil reproduzir escritos e cada dia mais proliferam textos ruins, que os autores praticamente impõem aos editores e estes aos leitores. Qual terá sido o efeito disso na enorme oferta de livros pela indústria editorial e na queda de qualidade? O grande poeta paraense Ruy Barata dizia nos “botecos literários” de Belém: “Uma livraria tem um poder enorme; para o bem ou para o mal. Sua vida inteira pode depender da escolha que, dentro dela, você vier a fazer”.
Ou seja, o autor iniciante precisa ser vacinado contra a pior das pragas literárias, a contaminação da mediocridade. A mediocridade é ostensiva, exibicionista e tirânica. O medíocre não se contenta em sê-lo. Ele quer ter cúmplices. Danou-se: senti-me incorporando Nelson Rodrigues ao lhes afirmar isso. Mas voltemos ao rés do chão. Eu tenho fama de ser malvado e até grosseiro, mas até hoje nunca tive coragem de rejeitar de cara um livro ruim que me oferecem. Minha mãe ficava furiosa com minha mania de corrigir os erros de português da conversa de suas amigas. Talvez por isso, sinto certa dificuldade até para não colocar na estante a má obra, capaz de contaminar as melhores na minha biblioteca.
Prometi a Isabel que vou jogar fora todos os livros medíocres em nossa casa. Vai ser uma limpeza e tanto. Neste particular, há o que chamo de ponto de corte, como se estivesse corrigindo uma prova de vestibular: é o erro gramatical. Já recebi livro com erro gramatical no título, na capa. Vou continuar recebendo, mas não guardarei mais. Um escritor que comete erro gramatical é como se fosse um mecânico que não sabe como funciona o motor nem para que serve o combustível. Para a mediocridade a tolerância tem que ser zero.

2.
Vença a maldição da fuga do profeta

Um de meus textos favoritos é o Sermão da Sexagésima, do padre Antônio Vieira. Nele o grande pregador diz que há dois tipos de sacerdotes, os párocos e os missionários. É uma lição de vida. Ao contrário do que reza o ditado, o profeta pode, sim, ser ouvido em sua terra. Márcia Lígia Guidin, colaboradora deste Rascunho, me pediu para lhes contar que o bom escritor não precisa sair de sua cidade para publicar. Concordo com ela. Marisa Lajolo (pesquisadora, assessora do prêmio Jabuti e autora de Do mundo da leitura para a leitura do mundo) e a vida lhe dão razão: Waldemar Solha mora em João Pessoa e mantém a alta qualidade de seus textos de crítica e ficção. Relato de Prócula, editado originalmente pela Girafa, uma editora da qual fui sócio, é um exemplo. O poeta amazonense Aníbal Beça nunca saiu de Manaus, é pouco conhecido no resto do Brasil, mas famosíssimo no Caribe. Assim também ficaram em Belém os magníficos poetas João Jesus de Paes Loureiro, Pedro Galvão e Ruy Barata, que ciceroneou uma visita de Elizabeth Bishop à Amazônia e isso está registrado nas cartas dela.
Socorro Acioly, 39 anos, nascida em Fortaleza, que estreou com O pipoqueiro João, publicado pela Nação Cariry, quando tinha 8 anos, não precisou sair de Fortaleza para ganhar com seu livro Ela tem olhos de céu, o prêmio Jabuti de Literatura Infantil de 2013. Outro exemplo em Fortaleza é o da editora Tupynankin, do cordelista Klevisson Viana. Moram em Recife o médico cearense Ronaldo Correia de Brito, autor de Galiléia, Prêmio São Paulo de Literatura; o historiador Frederico Pernambucano de Melo, que escreveu Guerreiros do sol; e a psicanalista Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque, autora do primoroso romance Luz do abismo, os dois últimos editados por mim na Girafa. Everardo Norões, que nasceu no Crato e viveu na França, Argélia e Moçambique, agora foi publicado pela Confraria do Vento, pequena editora carioca, da qual é sócia a recifense Karla Melo, e venceu o prêmio Portugal Telecom com a coletânea Entre moscas, superando Antônio Prata e outros cronistas de grandes jornais. O poeta Mario Quintana nunca saiu do Rio Grande do Sul nem o folclorista Câmara Cascudo do Rio Grande do Norte. Dalton Trevisan ganhou fama internacional morando em Curitiba. O poeta Manoel de Barros morreu há pouco tendo passado a vida inteira em seu Mato Grosso natal. Muita gente na província tende a encarar o avião para o Sudeste como o caminho da salvação. Este é “um ledo e ivo engano”, como diziam antigamente os gozadores bem informados na Praça do Rotary, na Campina Grande de minha adolescência.


3.
Não se desespere com as tentativas malogradas de convencer um editor de sua genialidade ignota

Chegamos agora ao desafio da estreia. Primeiramente, não se apresse, pois não há limite de idade. Ana Luisa Escorel, paulistana, 70 anos, filha da professora Gilda e de Antonio Candido de Melo e Souza, o mais venerado crítico literário brasileiro, venceu o Prêmio São Paulo de 2014, o de maior valor monetário, com o romance Anel de vidro, ao lado de Verônica Stigger, gaúcha, de 41 anos, estreante, com Opisanie swiata, título que supera em complexidade A intertextualidade das formas simples, de nossa amiga Betinha Marinheiro.
Wander Soares, que dirigiu a Saraiva, me pediu que contasse que há dois meios de editar um livro no Brasil hoje: a autopublicação e a maratona da aprovação por uma editora estabelecida, não necessariamente no Sudeste ou no Sul. A primeira pode ocorrer de duas maneiras: assumir a missão de imprimir e vender ou pagar para um profissional fazer isso. Há editores que por dinheiro fazem qualquer negócio. Outros, não: exigem qualidade. Lembro-me de um jantar com meu saudoso amigo Luiz Augusto Crispim no qual ele me contou que, sendo um autor bem vendido de compêndios na área jurídica na Saraiva, teria de financiar a própria edição de livro de poesia ou ficção desde que, primeiro, passasse pelo crivo de qualidade do grupo editorial. Ele tinha que apresentar um bom livro e pagar por sua edição. Assim também agia o badalado editor Massao Ohno, que pontificou em São Paulo nos anos 60 e 70. Mas há também editores que, tendo a edição paga, editam qualquer coisa.
A maratona é dura e exige paciência. Mande o texto para um editor e saiba que só terá noção do destino dele se aquele editor resolver publicá-lo. Receber o texto recusado de volta, nem pensar. Custa caro. E muito editor nem o lerá. Mais fácil será jogá-lo no lixo. Mas nunca perca a esperança. Faça cópias e mande para outros. Se não conseguir furar o bloqueio, que não é fácil, poderá optar também pela nova opção do livro editado por internet. Muita gente tem apelado para isso com êxito. Não há mais editores como José Olympio, que publicou tudo o que os grandes autores brasileiros, que frequentavam sua livraria no centro do Rio, escreviam. Nem como Ênio Silveira, que se tornou um ícone da resistência de esquerda à ditadura militar na Civilização Brasileira, cujos livros eu lia sofregamente à época de minha adolescência em Campina Grande, comprando-os na Livraria Pedrosa. Aliás, não há mais Livraria Pedrosa. Nem a Livraria Teixeira na rua Marconi, no centro de São Paulo, que eu costumava frequentar nos anos 70 ao lado do poeta Ronaldo Cunha Lima, que trabalhava no Banco Industrial de Campina Grande, no mesmo quarteirão. Agora as livrarias são shopping centers que vendem de tudo, também às vezes livros. Sou rato de livraria desde a infância e agora tive de me acostumar a um novo hábito: mesmo diante de estantes cheias, nunca encontro o livro que procuro, como encontrava antes. Agora tenho de encomendá-lo. Qualquer livraria, salvo raras exceções, só vende o que lhe é pedido. Nem assim, tem compra firme nem o livro é faturado. Quando fui editor na Girafa, começou o hábito da consignação. Agora sem consignação não há salvação. O editor só conseguirá entregar o livro se o receber de volta se não vender. E mesmo que venda muito, ele não fatura a reposição, mas põe em consignação. É o novo jeito de fazer negócio.
Ainda segundo Wander Soares, que dá consultoria a grandes editores, há mais duas novidades hoje em dia. A primeira é a globalização. Cada vez mais mandam no mercado editorial brasileiro as multinacionais, principalmente europeias, mas também americanas. E a globalização tem mão inversa: agora o editor brasileiro aposta no mercado externo. De modo geral, ele ainda sonha com a publicação de um autor que lhe reserve um lugar na história da literatura. Mas isso é cada vez mais raro. O livro é cada vez mais um negócio globalizado. Por isso, não se usa mais a palavra “originais”. Hoje está na moda o projeto. Você apresenta um projeto, o editor faz o cálculo se pode ser lucrativo ou se ao menos paga as despesas. E aí pode decidir a seu favor. Ou não. Feiras de livro como a de Frankfurt, na Alemanha, são vitrines poderosas neste novo negócio globalizado.
A figura do editor, que acompanha o autor, aconselha, de certa forma e influi, até corrige textos, como fazem Pedro Paulo de Sena Madureira, que está fora do mercado no momento, e seu discípulo José Mário Pereira, da Topbooks, que editou meu último livro, O que sei de Lula, é cada vez mais rara. Hoje predomina o publisher, o profissional que faz negócio com o livro. Uma coisa, contudo, não mudou: o assessor, como Wander, ainda aponta, indica, influi. Este é capaz de ler as primeiras cinco páginas, quando muito, de um projeto e saber se vale a pena continuar, ou não. Ou seja, mesmo nesta época da cultura de massa, da globalização das grandes editoras (espanholas, italianas, inglesas, americanas, etc.), o livro ainda tem a importância que tinha no passado, a despeito das mudanças de rota.
Meu editor e amigo José Mário Pereira, que é sócio da mulher, Christine Ajuz, que trabalhou comigo no Jornal do Brasil, é otimista em relação à sobrevivência do livro como suporte de conteúdo. Ele me mandou uma mensagem respondendo a algumas perguntas a respeito do tema e nela me escreveu: “Mesmo diante dos vaticínios tempestuosos de alguns, que dizem que o livro no seu formato tradicional logo vai acabar, nunca se imprimiu tanto. Mesmo os que se valem de instrumentos eletrônicos para ter acesso a certos livros acabam por comprar também o livro em papel. Há estatísticas que comprovam esse fato. Mesmo com a facilidade de se obter informação pela televisão e pelo computador, o livro continua sendo o meio mais eficaz de apreensão e fixação do conhecimento. As grandes bibliotecas do mundo todo continuam a comprar livros, embora estejam preocupadas também em digitalizar o seu acervo. Nos Estados Unidos, por exemplo, compra-se tudo que se publica no Brasil. As bibliotecas americanas disponibilizam para o pesquisador livros brasileiros raros, que aqui se demora a localizar em nossas melhores bibliotecas. Wilson Martins costumava dizer que só escreveu a História da inteligência brasileira porque o fez nos Estados Unidos, onde era fácil pesquisar e o sistema de empréstimo entre bibliotecas realmente funcionava”.
Zé Mário tem razão. O Sindicato Nacional dos Editores (Snel) e a Câmara Brasileira do Livro (CBL) costumam encomendar pesquisas sérias sobre o desempenho e a expansão do nosso mercado livreiro e, ao que tudo indica, a indústria editorial brasileira passa por um período de grande vitalidade. São muitas as feiras editoriais que se realizam país afora, a começar pela Bienal do Livro, e, ao que se sabe, o resultado final tem deixado contente o mercado. Essas feiras ainda ajudam a democratizar o livro junto às classes menos favorecidas, pois nelas muitos livros são vendidos com descontos que estimulam a compra.
De acordo com pesquisa bastante confiável da CBL e do Snel, em 2013 foram vendidos no Brasil 279 milhões e 660 mil exemplares de livros — 4,13% mais do que os 278 milhões e 560 mil vendidos em 2012. Deste total, o governo comprou 200 milhões e 300 mil em 2013, um número bem maior do que os 166 milhões e 350 mil comprados em 2012. O faturamento total — considerando vendas ao governo, em livrarias ou por outros métodos — foi de R$ 5 bilhões e 350 mil em 2013, um aumento real de 1,52% em relação ao apurado em 2012. E o preço real de capa aumentou 1,7% de 2012 para 2013.
Convenhamos que não é um mau resultado, mesmo se se considerar que o perfil desse crescimento não foi alentador, pois mostra o declínio de obras de qualidade e o constante aumento da produção de livros religiosos, de autoajuda e didáticos. Neste último, o crescimento, mesmo tímido, se deve quase todo aos programas de compra e distribuição de livros do governo federal, que é o maior comprador das editoras no País e um dos maiores do mundo, só perdendo neste particular para o México.

4.
Persevere, pois ainda é possível um autor desconhecido publicar seu livro

Antes de abordar este quarto mandamento, contar-lhes-ei três histórias clássicas de descobertas de autores que se consagraram.
O poeta e banqueiro Augusto Frederico Schmidt descobriu Graciliano Ramos lendo no Diário Oficial a prestação de contas dele como prefeito de Palmeira dos Índios. O poeta achou o texto bem escrito e tratou de escrever ao prefeito alagoano para dizer que, se tivesse algum romance na gaveta, o enviasse para ele ler. Foi aí que resolveu editar Caetés, livro de estreia do mestre Graça.
Nos anos 50, o jornalista alagoano Audálio Dantas fazia uma reportagem para a Folha de S. Paulo na favela do Canindé em São Paulo quando conheceu Maria Carolina de Jesus, que lhe mostrou anotações em papéis amarfanhados. Foram o ponto de partida para Quarto de despejo, um dos livros de maior sucesso no Brasil em todos os tempos.
Em 1975, o poeta Carlos Drummond de Andrade compareceu ao lançamento de Contato, de Marly de Oliveira, que Pedro Paulo de Sena Madureira editou na Imago por indicação de uma amiga comum, a romancista Nelida Piñon. Ao se retirar do coquetel, o poeta pediu que Pedro o acompanhasse até o táxi e na calçada pediu permissão para mandar ao editor amigo originais que havia recebido de uma mineira desconhecida de Divinópolis, Adélia Prado, por cuja poesia ele tinha ficado fascinado. No dia seguinte, ao chegar ao escritório cedo, o editor encontrou uma cópia em xerox de Bagagem. O livro foi lançado em maio, mês de Maria, de 1976, junto com Vazio pleno, de Rachel Jardim. A noite de autógrafos foi uma das mais concorridas à época: Cecília Meireles, Oscar Niemeyer, Juscelino Kubitschek, Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna, entre outras figuras ilustres, compareceram à festa. Adélia, que não tinha conseguido publicar seu livro pela editora do Pasquim antes, ainda faz tanto sucesso que dia destes participei de um público entusiasmado que a ouviu e aplaudiu no enorme teatro do Tuca, lotado, em São Paulo. Negando a teoria de que o profeta tem de sair de sua terra para ser ouvido, até hoje Adélia mora em Divinópolis e só sai de lá para ser ouvida e aplaudida no mundo inteiro, mas depois volta ao interior de Minas, onde nasceu e vive.
Raimundo Gadelha acha impossível que estas histórias se repitam hoje em dia. Segundo ele, somente se houvesse uma “trama mirabolante” de uma instituição com poder para tal e de olho nos desdobramentos (financeiros, principalmente) de que, a médio e longo prazos, poderia se beneficiar. Márcia Lígia Guidin, da Miró Editorial, que acaba de editar o excelente romance O incrível testamento de Dom Agápito, de Helder Moura, lançado originalmente pela Chiado, editora portuguesa, discorda dele: “Creio que estes casos podem acontecer de novo, embora seja mais difícil encontrar padrinhos suficientes, de vez que há escritores demais”, disse-me ela.

Ilustração: Robson Vilalba

5.
Esteja atento para aproveitar as oportunidades que aparecem

Este foi o meu caso. Sempre fiz sucesso como jornalista, mas tudo o que eu queria era ser reconhecido como literato. Embora nunca tenha misturado uma coisa com outra, até porque estas coisas não se misturam, nunca tive vergonha de usar o poder conquistado no jornal para abrir espaço no universo das letras.
Aos 30 e poucos anos, eu era secretário de redação do poderoso Jornal do Brasil no Rio e procurei Pedro Paulo de Sena Madureira, com quem eu tinha trabalhado em 1969 na Editorial Bruguera em Olaria, em pleno vapor na Nova Fronteira, para editar um livro de poesia, Os solos do silêncio, prefaciado pelo respeitado poeta, crítico e tradutor José Paulo Paes. Pedro aprovou o livro, mas saiu da Nova Fronteira depois de brigar com Sérgio Lacerda, filho do ex-governador e herdeiro da editora. Sérgio escreveu para meu patrão, Nascimento Brito, insinuando que eu teria um caso homossexual com o ex-editor dele. No fim, para evitar confusão, o livro foi editado pela Secretaria de Cultura da Paraíba no governo Milton Cabral. O secretário era Lula Crispim. E o governador, ao receber o exemplar autografado das mãos de meu pai, balançou-o no ar, como se fosse um bezerro para pesar, e reclamou que era fino e leve demais para ter algum valor. Meu primeiro grande sucesso foi a cobertura que fiz como editor de política do Estadão da campanha presidencial de 1989 e foi editado por Pedro Paulo na Siciliano. O resultado, o livro Atrás do palanque, passou seis meses na lista de dez mais vendidos da revista Veja. Isso e mais o prêmio Senador José Ermírio de Moraes da Academia Brasileira de Letras de 2005, que ganhei com o romance O silêncio do delator, considerado o melhor livro de 2004, me garantiram recepção razoável de editores para meus livros, já perfazendo hoje um total de uma dúzia.
Nem tudo o que aconteceu comigo acontecerá automaticamente com qualquer outro iniciante. Mas meu exemplo serve para mostrar que um bom trabalho no jornalismo ou em publicidade pode favorecer o escritor a realizar seu sonho de estrear no mercado livreiro.
Neste sentido, como aconteceu comigo, hoje muitos autores são descobertos devido à atuação profissional deles na imprensa, na internet ou na televisão. É o caso da atriz Fernanda Torres, por exemplo, cujo romance de estreia, Fim, vendeu mais de cem mil exemplares e agora está sendo lançado em várias línguas. Gregório Duvivier, que virou best-seller, Daniel Galera, autor de grande fortuna crítica, e outros de que se fala muito agora foram descobertos via presença na mídia, e não porque procuraram, como se fazia tradicionalmente, uma editora ou um editor.

6.
Nem tudo está perdido para quem tem fé, talento e força de vontade

Para autores nunca publicados episódios similares ao da corrente que revelou Adélia Prado — de Drummond a Pedro Paulo – são cada vez menos prováveis. Mas não impossíveis. Zé Mário garante que as editoras recebem e avaliam muitos originais, que agora também são encaminhados via internet de todo o Brasil e às vezes até de fora do país. O acesso ao mercado editorial se democratizou. É bom lembrar que muitos autores estão colocando seus textos na internet, às vezes livros inteiros. E nesse processo se tornam conhecidos, despertando o interesse das editoras quando se trata de obra de valor literário indiscutível.
“Sim, é possível e até não é tão difícil assim.” O grande problema, segundo Raimundo Gadelha, da Escrituras, é o que fazer com isso, se este é um país que, além de ler muito pouco, tem uma população que, em condições normais de temperatura e pressão, cresceu “aprendendo a ler mal”.
Além do mais, ainda conforme Gadelha, tornou-se quase insolúvel a questão da distribuição do livro no Brasil e no mundo. E ela se tem agravado depois de o livro ter passado a receber o mesmo tratamento dado à chamada fast food. Esgota-se cada vez mais a possibilidade de grandes e perenes obras. Em seu lugar ganha força a “leitura de rápido consumo” e, para os empresários das redes de livrarias, menos importa a qualidade do que um giro rápido pelos caixas.
Mas a boa literatura ainda tem seu lugar no mercado. Qualidade também ajuda a vender, embora não seja suficiente isoladamente.


7.
Mande textos para os inúmeros concursos literários

Tais concursos hoje em dia podem ser uma boa fonte de renda (há prêmios bem suculentos, como o São Paulo de Literatura) para quem os vença. Além disso, eles servem realmente de peneira para que autores desconhecidos e de talento sejam publicados e, depois, façam sucesso. Ser desconhecido, vencer um concurso e ser publicado é, sem dúvida, o primeiro passo e representa uma conquista da maior importância. Mas voltamos ao velho problema da distribuição… Tirando o orgulho e a satisfação pessoal do autor, de que vale a editora publicar se a maioria das livrarias não aceita, mesmo em consignação, os livros?
Outro caminho é participar das feiras literárias. Sem elas a situação, certamente, estaria ainda pior, embora sejam cada vez mais realizadas para o turismo do que para a cultura. Elas ajudam o escritor iniciante, porque dentro delas, ou na periferia delas, sempre se encontra espaço para divulgação do que está se produzindo de bom. Feiras no interior do País, por exemplo, ajudam a aproximar os bons escritores dos bons leitores e desse diálogo acaba se sabendo o que se produz de bom localmente.

8.
Não se envergonhe de não conseguir viver de direitos autorais

Viver de direitos autorais é ainda mais raro do que publicar um livro e até mesmo fazer sucesso com ele. Os direitos de meu livro Atrás do palanque, apesar do sucesso, não substituíam meu salário como jornalista. A profissionalização é um desafio enorme para o estreante. No Brasil durante muitos anos Jorge Amado era o único escritor que podia viver confortavelmente de seu ofício. Hoje a situação melhorou um pouco. Há Paulo Coelho, conhecido internacionalmente. Tive a oportunidade de testemunhar filas dobrando o quarteirão para conseguir autógrafos dele em Paris. Fui muito amigo de Marcos Rey, que conseguiu isso. Dia destes Isabel e eu nos encontramos com a viúva dele, Palma Donato, num café de shopping, e ela não estava insatisfeita com a renda produzida pelos livros do autor de O enterro da cafetina e O último mamífero do Martinelli.
Lembro-me ainda de Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Antônio Torres e Fernando Morais, que vivem de escrever. Ruy Castro também aceita entrar nesta lista, mas observa: “Eu que não escreva para jornais para ver se o rendimento dos livros chega para as despesas…” Restrinjo a lista aos literatos, porque sabemos que os autores de livros religiosos, didáticos e de autoajuda vendem o suficiente para viver bem. Além de autores de livros polêmicos em nosso conturbado ambiente político — caso de Assassinato de reputações, do delegado Romeu Tuma Jr, meu velho amigo e grande sucesso nos perfis sociais.
Mas o escritor estreante não deveria, a meu ver, sonhar tanto com isso. A profissionalização é a loteria dos que já ganharam outra loteria. Nossa tradição não privilegia o escritor profissional. Temos geniais amadores de que nos orgulhar. Machado de Assis era funcionário público, como o era Drummond, e Joaquim Nabuco, diplomata, como João Cabral de Mello Neto, e político, como José Américo de Almeida, o melhor texto da Paraíba. Por falar em paraibano, Augusto dos Anjos, foi mestre-escola no interior de Minas, tendo sido, portanto, colega de ofício de Isabel, minha mulher. José Lins do Rego era promotor. João Guimarães Rosa, médico e diplomata. Ariano Suassuna era professor universitário. E por aí afora. Um grande escritor não terá de ser um profissional de ofício. Os exemplos de gênios amadores provam isso.



9.
Não espere nada da crítica literária publicada nos meios de comunicação

Não poderia terminar sem lamentar a extinção da crítica literária nos meios de comunicação — e particularmente na imprensa, na qual milito. Antigamente todos os bons jornais tinham o seu crítico literário de plantão e o seu suplemento literário. Antônio Olinto escreveu durante anos a fio a coluna Porta de livraria no Globo do Rio. Álvaro Lins, Antonio Candido, Agripino Grieco, Afonso Arinos de Melo Franco, Augusto Frederico Schmidt e José Guilherme Merquior escreveram muito em jornal. Este último, por exemplo, estreou no famoso Suplemento dominical do Jornal do Brasil. A época dos grandes suplementos foi gloriosa para a nossa literatura. Havia também revistas como a Senhor, na qual Merquior também escreveu, ao lado de Ferreira Gullar, Paulo Francis e Ruy Castro. Hoje temos o Rascunho e a Piauí, mas os grandes jornais reduziram muito o espaço para livros. Adotou-se há muito a resenha, quase sempre mais informativa do que analítica. Este, infelizmente, é um fenômeno quase internacional, apesar da perenidade de jornais culturais do nível do New York Review of Books, nos Estados Unidos, onde escreveu Edmund Wilson, e os ingleses London Review of Books e Times Literary Supplement.
Hoje nos limitamos à crítica acadêmica. E nem sempre ela tem sido de boa ajuda, embora ainda seja o último baluarte, ou balaústre, como diria meu amigo Bob Coutinho, dono do restaurante Plataforma Grill, em São Paulo, da tentativa de informar o público sobre o que se faz de bom na literatura brasileira.
Preciso aqui abrir parênteses para preencher uma lacuna da qual fui alertado pelo colega escritor e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, Aleilton Fonseca. Sou velho amigo e fã de Aleilton, que foi o autor de uma das melhores resenhas sobre meu romance premiado pela ABL O silêncio do delator, fazendo parelha com gente como Wilson Martins, Ledo Ivo e Bráulio Tavares. Não tenho sequer diploma universitário, et pour cause, nenhuma vivência acadêmica. Passou-me, por isso, despercebida a lacuna percebida por Aleilton após ler, como muitos outros amigos meus, a versão do texto que li na Academia Paulista de Letras. Peço, pois, vênia a ele e a meus leitores para citar parte de sua mensagem encaminhada por e-mail:
“Faltou um mandamento que falasse da via universitária e escolar para escritores que existem e são correntes nesse nicho. É um espaço de leitura, crítica e estudos quase invisível, mas importantíssimo, porque constrói reputações e memórias em jovens — que no futuro repercutirão o nome e as obras dos autores agora lidos e estudados. Eu — como autor — praticamente só existo nesse nicho”, escreveu ele, que se considera “parte do grupo de autores que — embora invisíveis na imprensa literária — são reconhecidos dentro de escolas e universidades, como tema de estudos, artigos e trabalhos de grupo, sendo convidados como palestrantes”.
A obra de Aleilton é tema de dissertações de mestrado até no Paraná. Já foi estudada na França, na Alemanha, no Canadá e no Paraguai. Ele tem textos publicados em cinco línguas e livros editados na França, Bélgica e Canadá e inspirou tese de doutorado na UFBA. Seus livros são adotados em várias escolas e seus textos, utilizados em cursos de pós-graduação. Há três anos, um livro seu cai no vestibular da UNEB, na Bahia. Fez palestras como escritor em cinco universidades francesas — Sorbonne, Nanterre, Toulouse, Rennes e Nantes. Como escritor foi à Hungria e em 2015 irá à Itália, Portugal, Espanha e França. Seu livro Les marques du feu foi adotado no Lycée des Arènes, em Toulouse, onde os alunos fizeram uma exposição de arte (escultura, pintura, gravura, vídeo, quadrinhos etc.), tudo baseado nos contos dele.
O depoimento de meu amigo baiano, a meu ver, entrou como uma luva neste texto, depois de feito, lido e analisado por muitos amigos, que funcionam como uma espécie de rede de proteção neste salto de trapézio, formando, como brinca Isabel, minha rede social pessoal e intransferível, ao modelo da adotada também por Evandro da Nóbrega, para quem “Nóbrega burro é como baiano burro: nasce morto”.
Em situação similar à de Aleilton, este amigo ainda me fez o favor de relacionar os colegas Francisco Dantas, romancista de Sergipe, que, embora editado pela Companhia das Letras anos atrás, foi relegado a segundo plano, porque não teve boas vendas, dizem, mas ainda é muito estudado por acadêmicos; Carlos Ribeiro, de 56 anos, romancista baiano, contista, jornalista, professor da UFRB, com várias obras, estudado em mestrado e em doutorado; Aramis Ribeiro Costa, de 64 anos, romancista e contista fabuloso e hoje presidente da Academia de Letras da Bahia; Antonio Brasileiro e Roberval Pereyr, poetas de Feira de Santana, Bahia, ambos muito estudados e adotados nas universidades locais, com vários livros publicados e alguns prêmios. Na mesma situação são ainda encontrados na velha São Salvador meu antigo colega no Jornal do Brasil Florisvaldo Mattos, Myriam Fraga, na opinião de Aleilton, e não tenho como duvidar dele, “esplêndida, talvez a melhor poeta mulher do Brasil atual”, Luís Antônio Cajazeira Ramos, Gláucia Lemos e Fernando da Rocha Peres. Ele chamou atenção também para Claudio Aguiar, pernambucano, atual presidente do Pen Clube, com romances importantes e sem a devida atenção; Iacyr Anderson Freitas, poeta de Juiz de Fora, Minas Gerais; e Evaldo Balbino, outro mineirinho, da UFMG, contista, poeta e ensaísta, que recebeu alguns prêmios. Cito ainda entre escritores que fazem sucesso acadêmico, mas não furaram a muralha que protege a elite literária nacional, o poeta cearense Adriano Espínola, meu companheiro de saraus de sábado na Livraria da Travessa, de Ipanema. E, last but not least, Aleilton relacionou Rinaldo de Fernandes, maranhense radicado na Paraíba, professor da UFPB, meu parceiro na organização da antologia Os cem melhores poetas brasileiros do século, editada em 2001 pela Geração Editorial, de São Paulo. Rinaldo está no meio termo: como crítico e ficcionista é celebrado na academia. Como autor de antologias, já conquistou um lugar ao sol no mercado livreiro. Chico Buarque do Brasil, que inclui um poema meu, chegou a ficar entre os livros mais vendidos no caderno Ideias e Livros, do extinto Jornal do Brasil. Tanto num caso, o circuito acadêmico, quanto no outro, o círculo literário, sem sair do Nordeste, Rinaldo realizou seu sonho de adolescente: “Hoje, onde chego encontro leitores, gente que conhece e lê o meu trabalho”.

10.
Frequente academias e tire proveito do convívio dos acadêmicos ou de suas atividades

Acho que as academias, mesmo sendo muito enxovalhadas (como o foi a ABL pelo coleguinha Mário Sérgio Conti na Folha de S. Paulo, por ocasião da posse de Ferreira Gullar), cumprem um papel positivo para a divulgação da literatura e a criação de espaços para a manifestação dos escritores. Prefiro aqui apelar para o depoimento de meu último editor, José Mário Pereira, que me escreveu pontificando: “A Academia Brasileira de Letras edita livros, promove vários seminários durante o ano, desenvolve intercâmbio com universidades estrangeiras e abre seus espaços à visitação do público. O Pen Club também tem se mostrado muito ativo. Idem a Academia Carioca de Letras, que acaba de empossar Martinho da Vila. Isso para lembrar o que acontece no Rio de Janeiro. E poderíamos citar ainda o exemplo de São Paulo, de Pernambuco, da Paraíba e de muitas outras instituições culturais espalhadas pelo País verdadeiramente comprometidas com a divulgação do que se produz de bom na literatura, nas artes, na música, no folclore, etc. Os jovens escritores têm sabido se reunir em blogs, via facebook, e esse entrosamento acaba resultando num melhor conhecimento do que está acontecendo com quem começa a escrever e tem interesse em ver divulgado o seu trabalho”.




sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Escrever



A magia precisa de regras? Brandon Sanderson e Mistborn dizem que sim


Affonso Solano

(...)

"Gosto de magia. Aposto que você também. E ainda que exista um prazer inocente em sermos feitos de bobo por alguém usando cartola, creio que a ficção fantástica seja o lugar onde nós realmente gostamos de vê-la em ação, construindo as metáforas que nos ajudam a compreender o mundo real.

No entanto, gosto de parafrasear Homer Simpson quando digo que, assim como o álcool no mundo real, a magia pode ser a causa e a solução de todos os problemas na ficção fantástica. Nas mãos do sábio, uma força criativa. Nas do inexperiente, destruidora. E eu não me refiro exclusivamente ao lado de dentro da história.

Durante a CCXP 2016, quando abordado por um jovem aspirante a autor que me apresentava seu trabalho, questionei-o sobre as regras do sistema mágico do livro que ele estava escrevendo.
“É magia, ué”, respondeu ele, dando de ombros. “Não tem regras”.
“Então por que Gandalf simplesmente não “fez uma mágica” e desapareceu da torre onde Saruman o aprisionou?”, retruquei."

(...)


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Um dos maiores proponentes da discussão é Brandon Sanderson. Autor da excelente série de livros Mistborn, Sanderson propõe – de forma divertida – três “Leis” da Magia que sintetizam e apontam os holofotes para os elementos-chave do assunto:

1) Primeira Lei de Sanderson: a habilidade do autor resolver um conflito com mágica é 
DIRETAMENTE PROPORCIONAL a quão bem o leitor compreende tal mágica.

Exemplo: a forma como (no filme d)o Doutor Estranho barganha com Dormammu, utilizando-se de um artefato previamente apresentado durante a trama.

Enquanto ferramenta de escrita, a magia é capaz de envolver os leitores em um jogo deliciosamente imersivo OU afastá-los com Deus Ex Machinas impossíveis de digerir. Como bem sugeriu John Campbell, um dos mais influentes e importantes editores da história da ficção científica (e crítico ferrenho do gênero aqui em discussão), a fantasia medíocre é aquela que “inventa uma nova regra sempre que precisa de novas regras”. Sem esforço não há mérito, e a mente humana – no jogo constante em busca de consistência, padrões e simetria – tende a se desligar da obra como se lhe arrancassem o plugue da Matrix.

2) Segunda Lei de Sanderson: limitações > poderes.

Exemplo A: No mundo de Harry Potter, magos e bruxas utilizam varinhas com o intuito de canalizar a magia, aumentando a precisão e a potência dos feitiços. Ainda que a magia “a mãos livres” exista, sua prática é volátil e extremamente difícil – mesmo para os mais poderosos e experientes.

Exemplo B: Superman (sim, superpoderes também funcionam da mesma forma que “sistemas mágicos”) enfrentando um robô gigante qualquer? Bacana. Vê-lo enfrentar um robô gigante cuja bateria central é feita de Kryptonita? Melhor.

Exemplo C: “Regra número um: não posso matar ninguém... então não peça! Regra número dois: não posso fazer ninguém se apaixonar por você, lindão. Regra número 3: não posso trazer ninguém de volta dos mortos... Não é uma imagem bonita, EU NÃO GOSTO DE FAZER!!”. – Gênio da lâmpada, Aladdin

O que a magia PODE fazer tende a ser menos interessante do que ela NÃO PODE. Limitações provocam conflitos – faz personagens (e escritores) contornarem dificuldades e lutarem por objetivos de forma inteligente.

3) Terceira Lei de Sanderson: expanda o que você já possui antes de criar algo novo.

Exemplo: A Força, em Star Wars.

Antes de abrir o baú criativo e libertar outros poderes mágicos em seu universo, por que não examinar como a sociedade reage a UM, primeiro? Determinada cultura com tendências violentas pode usá-lo como arma, enquanto outra mais pacífica talvez o enxergue como forma de engenharia ou cura. Sistemas mágicos memoráveis tendem a ser aqueles com relativamente poucos poderes, porém muito bem aprofundados pelo autor. Se sua mágica pode transformar pedra em pão, como isso afeta o mundo ao redor dos personagens? Como a economia, a política e outros itens da estrutura social reagem a algo assim?

A magia precisa de regras? Faço parte da escola que responde “sim” – o que não significa que não possamos distorcê-las. Apesar do uso da palavra “leis”, Brandon Sanderson reforça em entrevistas que, da mesma forma que é possível violar regras gramaticais ou musicais e resultar em um resultado positivo, escritores podem (e devem) experimentar com as limitações dos seus sistemas mágicos. Conhecer profundamente a estrutura, todavia, será sempre crucial para que possamos violá-la – da mesma forma que um ilustrador precisa dominar a anatomia humana básica antes de ilustrar o Hulk.
Um Hulk bem desenhado, pelo menos.

Via Omelete

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Escrever






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A ficção científica costuma ser descrita, até mesmo definida, como extrapolação. Espera-se que o escritor de ficção científica pegue uma tendência ou um fenômeno do presente, purifique-o e intensifique-o para efeito dramático e estenda-o para o futuro. “Se isto continuar, eis o que acontecerá.” Faz-se uma previsão. O método e o resultado assemelha-se aos do cientista que alimenta ratos com grandes doses de suplementos purificados e concentrados, a fim de prever o que pode acontecer às pessoas que comem aquilo em pequenas doses e por um longo período. O resultado parece ser quase sempre câncer. Assim ocorre com o resultado da extrapolação. Obras de ficção científica de estrita extrapolação chegam mais ou menos onde chega o Clube de Roma: em algum ponto entre a extinção gradual da liberdade e a extinção total da vida na Terra.

Isto talvez explique por que muitas pessoas, que não lêem ficção científica, a descrevam como “escapismo”, mas, quando questionadas mais a fundo, admitem que não lêem ficção científica porque é “muito deprimente”.

Qualquer coisa levada a seu extremo torna-se deprimente, quando não cancerígena.

Felizmente, embora a extrapolação seja um elemento da ficção científica seja um elemento da ficção científica, não se trata, de forma alguma, de sua essência. A extrapolação é racional e simplista demais pra satisfazer a mente criativa, seja a do leitor ou a do escritor. Equilíbrio é o tempero da vida.

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Trecho da Introdução de Ursula Le Guin em "A Mão Esquerda da Escuridão" Veio DAQUI

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Escrever

3388) Melodrama de ação (5.1.2014)




Braulio Tavares



Melodrama de ação é toda narrativa baseada na aventura com ação física intensa, variada, exibicionistamente descrita. Por ação física entenda-se brigas individuais e batalhas coletivas, perseguições, fugas, travessia de lugares perigosos, condução de veículos em situações desfavoráveis, enfrentamentos com feras ou com flagelos da natureza... Ninguém captura isto tão bem quanto o cinema, e querer que não haja filmes de ação é bobagem de intelectuais desocupados. (O que, aliás, é um oxímoro. Todo verdadeiro intelectual tem sempre o que fazer, ao invés de ficar implicando com bobagens.)

O termo melodrama designava um tipo de teatro musicado (“melo” = música) que ficou associado a histórias implausíveis, com perigos exagerados, sentimentalismo, personagens “de papelão”, histórias cheias de improbabilidades, coincidências, fatalismos, sem preocupação de verossimilhança, e pretendendo apenas produzir sensações fortes, dar sustos, criar suspense... Uma boa sátira ao melodrama é o conto “A chinela turca” de Machado de Assis.

O melodrama tradicional é do tempo do romance folhetim (que redundou nas telenovelas e nas séries de TV, com sua estrutura de finais em suspenso) e do teatro de Grand Guignol, com sua violência gráfica, explícita, hoje transposta para filmes B de terror, “gory”, “slash”. Mas eu diria que o melodrama de ação mais importante de hoje é o filme de super heróis, e que os efeitos especiais cumprem uma função parecida com a que a música orquestral cumpria naquele teatro de 150 anos atrás.

O filme de super heróis é um melodrama onde tudo está subordinado à ação: roteiro, interpretação, direção. Movimentação incessante, destruição reiterada de objetos e cenários, e um plot que se limita a, mediante situações psicológicas extremas (vinganças, ódios, crueldades, ambições desmedidas, presença de vilões megalomaníacos) justificar ações extremas onde a violência está sempre pronta para explodir. 

Algumas características do gênero: 1) o herói Doppelganger (homem pacato x justiceiro, duas pessoas que são uma só); 2) uma galeria de vilões com traços inconfundíveis, grotescos; 3) ação hipérbólica (não basta que dois personagens briguem, a briga precisa destruir um quarteirão inteiro); 4) soluções mágicas para impasses dramatúrgicos (enredos tipo “com-um-puxão-Jack-partiu-as-cordas-que-o-aprisionavam”, segundo Peter Nicholls); 5) cenas de 2ª. unidade obrigatórias (o estúdio exige cenas específicas para ocupar técnicos e laboratórios caríssimos); 6) emoções grandiloquentes e vulcânicas engastadas num tecido de irrelevância, onde a platéia imatura possa aconchegar-se à idéia de que “é tudo brincadeirinha”.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Escrever


Do que não falamos quando falamos de crítica

Antonio Xerxenesky



O Crítico Literário Hipotético tem quarenta e dois anos. É doutor em letras, e leciona na faculdade onde se formou, tentando ensinar qualquer coisa para alunos desinteressados de 18 anos. É moderadamente feliz em seu casamento; fantasia com duas alunas suas, mas não tem coragem de fazer nada, ao contrário de seus colegas. Sofre de úlcera. Recentemente, uma dor de dente o tem incomodado muito. Pode ser bruxismo, mas ele não quer usar aparelho dentário aos quarenta e dois anos. Ele escreve resenhas para jornais e revistas importantes. Sente que a crítica literária no âmbito da academia é muito restrita – uma forma de comunicação que não atinge mais do que meia dúzia de pessoas. Suas ideias naquele mundo não repercutem ou reverberam. Por isso escreve também as infames críticas jornalísticas – pelo dinheiro que não seria. Recebe caixas e caixas de livros com lançamentos. As editoras nem mais perguntam se ele quer receber o lançamento X ou Y, apenas mandam os livros.


Um jornal encomendou uma resenha do livro novo de Philip Roth e também do Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. O Crítico Literário Hipotético começa a ler o Romance Promissor do Jovem Escritor Bacana. Observa a foto do rosto do Jovem Escritor Bacana na orelha do livro. Lembra-se que já viu o rapaz em algum evento literário, cercado de admiradores. Lembra-se das declarações polêmicas que o jovem fez nas redes sociais. Pela trigésima página, larga o livro, sem vontade de ler mais, e decide começar o novo de Roth. Como sempre, Roth trata do medo da morte, das doenças que chegam com a idade (o crítico se recorda de sua úlcera), do desejo sexual que parece minguar com o passar dos anos (o crítico se recorda de suas duas alunas, aquelas duas alunas específicas), da relação entre um homem mais velho e uma garota mais jovem (o crítico passa a enumerar, mentalmente, livros nos quais um professor seduz uma aluna: Desonra, de Coetzee; Partículas elementares, de Houellebecq; Sobre a beleza, de Zadie Smith; uns dois ou três livros do próprio Roth). No fim de semana, o crítico senta e escreve duas resenhas. Fala sobre a função da literatura, a perplexidade do escritor perante o mundo. Fala de Kafka, Borges e Piglia. Fala do cuidado estilístico, da dificuldade em construir personagens críveis. Não menciona, em momento algum, a úlcera, as alunas que povoam sua imaginação. Não comenta a vergonha que consideraria usar um aparelho dentário aos quarenta e dois anos.


***

Não sou um crítico profissional. Costumo escrever resenhas aqui e acolá e tenho uma produção acadêmica tímida. Valorizo e aprecio a profissão de crítico. Sonho com uma carreira nessa linha, inclusive. De modo geral, me dão a liberdade de escolher quais livros quero resenhar, e sempre prefiro livros que acho que vou gostar (de um autor que já me agrada, ou algum desconhecido sobre o qual ouvi bons comentários). Se achar que o livro não vale um tostão, direi isso com todas as letras, embora considere um desperdício dar espaço para livros que não merecem a atenção do leitor. Afinal, como todos estão cansados de saber, os cadernos culturais são terrivelmente magricelas. Porém sempre me ponho a pensar o seguinte: quanto da minha vida pessoal não está influenciando aquilo que escrevo e minhas maneiras de ler um livro?

A visão “biografista” que tenta buscar relações entre a obra de um autor e sua vida pessoal está morta e enterrada desde o advento das teorias do formalismo russo. Mas e a biografia do crítico? A úlcera do Crítico Hipotético não pode ter deixado o sujeito indisposto para certas leituras? O fato de que ele passou dos quarenta não o deixará levemente rancoroso em relação a um jovem escritor que é visto como uma “promessa”? Seus problemas amorosos não ecoarão em sua cabeça ao se deparar com narradores de Roth, sempre homens brancos de classe média com problemas de relacionamento?
Se, de fato, todas estas questões influenciam o julgamento crítico, o que ele pode fazer? Deveria abordar uma perspectiva totalmente pessoal e subjetiva, começar uma resenha dizendo: “Ontem eu estava andando na rua e…”? Ou então buscar uma leitura mais interpretativa da obra analisada, se distanciando, assim, de julgamentos de valor? É o que tenho tentado fazer em minhas últimas resenhas, com o slogan mental: “Mais interpretação, menos guia de compras”. Mas nossas interpretações não seriam igualmente abaladas por motivos extraliterários?

Nunca vou me esquecer de quando emprestei minha cópia de O passado, do Alan Pauls, para um amigo mais jovem. O passado figura entre meus livros favoritos de todos os tempos, e a obra não transmitiu nada a esse meu amigo. Ele não extraiu nenhuma interpretação empolgante do livro. Era apenas um romance bem escrito e nada mais. Teria a falta de um relacionamento amoroso turbulento no passado o impedido de fazer uma leitura mais rica do livro de Pauls? É o que especulo. Quando contei aos meus pais que detestei Desvarios no Brooklyn, de Paul Auster, eles retrucaram que eu não estava na idade certa para ler aquele livro. Quanto importa a idade? Quanto pesa a bagagem emocional? Não sei, não faço ideia. Talvez, quando descobrir, possa me considerar um crítico de verdade.


VIA


sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Escrever


João Pereira Coutinho


“Escreve sobre aquilo que conheces.” Eis o conselho-clichê do escritor sênior para o escritor júnior. Faz sentido, não faz?
Se escrevermos sobre aquilo que conhecemos  - as pessoas que nos rodeiam, os lugares que habitamos, as alegrias ou tristezas que tivemos ou temos - , existe pelo menos a promessa romântica da autenticidade. A ficção contemporânea é isso, ou quase isso: reportagens sobre nós próprios, mesmo que os personagens estejam mascarados com outras identidades.
Um escritor de classe média, que habite os subúrbios da metrópole e que, sei lá, tenha um gosto especial por jogar boliche aos sábados, acabará por escrever um romance sobre um escritor de classe média, que habita os subúrbios de uma metrópole, e que descobre subitamente que a sua paixão pelo boliche é um sentimento reprimido pelo badminton.
Nada disso é grave. Exceto pelo pormenor óbvio de que nem todas as vidas são interessantes. As nossas livrarias estão cheias de obras ensimesmadas e onanistas porque o escritor seguiu o conselho-clichê de escrever sobre aquilo que conhece. O desafio deveria ser outro: escrever sobre aquilo que se desconhece. O que implica curiosidade, descoberta. E, palavra fundamental, imaginação.
Aposto que Lionel Shriver, autora do brilhante “Precisamos Falar sobre o Kevin”, concorda comigo. Mas Shriver foi ainda mais longe no festival de escritores de Brisbane, na Austrália. Tema de sua palestra: apropriação cultural. Ou, traduzindo, será que é legítimo um autor usar personagens, comportamentos ou valores de outras culturas?
Exemplo: um escritor branco que vive em Nova York pode narrar o mundo  - interior ou exterior -  de um negro que habita em Nova York, São Paulo ou Johannesburgo?
Shriver afirma que sim e ataca violentamente as vestais da “apropriação cultural”. Se a literatura aceita se autocensurar para não correr o risco de “apropriação cultural”, o que resta são livros de memórias  - ou, acrescento eu, exercícios nulos de autoficção.
Nomes como Truman Capote ou Graham Greene, para usar dois escritores citados por Shriver, seriam impensáveis para a tribo que luta contra a “apropriação cultural”. Capote não teria direito a escrever sobre o “white trash” criminal da América “profunda”; Greene estaria impedido de viajar para os trópicos e incluir os indígenas nas suas narrativas.
Lionel Shriver tem razão. Literária e filosoficamente. Comecemos pelo princípio: se a literatura aceitasse o mandamento de que nenhum escritor pode espreitar o quintal do vizinho, as bibliotecas ficariam vazias.
Estamos em 2016. Festejamos os 400 anos da morte de Shakespeare. Devemos tolerar que o bardo da Inglaterra isabelina tenha escrito sobre portadores de deficiência homicidas (Ricardo 3º), judeus gananciosos (Shylock) ou generais mouros facilmente enganáveis (Otelo, claro)?
E que dizer de Cervantes, outro centenário, que cometeu o supremo abuso de dar corpo e voz a aristocratas alienados (como o Quixote) e a escudeiros analfabetos, mas sensatos (o impagável Sancho)? Como justificar a “apropriação cultural” de Shakespeare, Cervantes  - mas também de Homero, Dante, Goethe ou Dickens?
Ver na “apropriação cultural” um problema seria retirar à literatura a sua força maior: a possibilidade de entrarmos em universos distintos, sejam mentais ou materiais, para assim compreendermos a única coisa que interessa a um criador  - a natureza humana.
Mas a fraude da “apropriação cultural” também revela um paradoxo filosófico: em nome de um “respeito” pela singularidade do outro, esse multiculturalismo demente é uma forma perversa de racismo. Brancos só escreveriam sobre brancos. Negros sobre negros. Índios sobre índios.
No fundo, o sonho de qualquer racista: instituir uma espécie de “apartheid” intelectual que proíbe qualquer gesto empático para suplantarmos a diferença e nos imaginarmos “no lugar do outro”.

O discurso de Lionel Shriver contra a imbecilidade da “apropriação cultural” provocou polêmica imediata. E o festival australiano, horrorizado com a sensatez, distanciou-se das palavras de Shriver e organizou uma nova mesa para responder às suas colocações. O ataque ficou a cargo das escritoras Yassmin Abdel-Magied e Suki Kim.

Quem?

Leitor, não vale ir ao Google. Obviamente, são duas autoras que só escrevem sobre aquilo que conhecem.




(Imagem: Betye Saar. Via)

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Escrever



5. O conto maldito e o conto benfazejo

Sergio Sant´anna







I

Quantas vezes não nos espreita o conto maldito, do qual queremos fugir, mas algo assim como uma sina nos obriga a atravessá-lo? O conto dos crimes hediondos, como a sevícia e morte de mulheres e crianças, que preferíamos não escrever, como se o fazendo déssemos realmente à luz o monstro e seus atos. Não a escrita lúdica, proporcionando o prazer das histórias noires, policiais, como se o assassinato pudesse ser considerado uma das belas-artes, como no livro de Thomas de Quincey, e, sim, o lance brutal de uma lâmina espetando a carne indefesa, enquanto se abusa do corpo de quem não ousa nem gritar em seu pavor. O conto do qual somos simultaneamente autor e presa, pois passamos por ele como um flagelo e, no entanto, são apenas palavras que nós mesmos encadeamos. Mas, nessas palavras, como que se materializam, por exemplo, o maníaco que atrai o menino de nove anos, com a promessa de lhe dar uma bola de presente, e este menino e sua dor muda, pois sua boca foi tapada por uma das mãos do algoz. E não bastasse essa dor de carnes rasgadas, ao ser violentado, tão logo termina o sexo macabro há a faca que lhe penetra as costas até o coração. Um crime tão nefando que clamaria aos céus, houvesse um pastor nos céus  cuidando dos meninos aqui na Terra. Mas, houvesse Deus, não seria Ele responsável também pelo estuprador e assassino, pela extrema abjeção dessa criatura Sua? Não deveria Ele acudi-la em sua confusão e infâmia?


II

Mas por que teríamos tanto pudor ou desprezo pelo conto benfazejo, em que um homem deitasse o rosto na barriga da mulher grávida, auscultando os ruídos naquele lago profundo e milagroso, enquanto a mulher, por sua vez, lhe acariciaria os cabelos e, nesse momento, todas as possíveis desavenças seriam esquecidas assim como toda angústia para dar lugar a um entendimento mudo dos seres com o melhor de sua natureza?


 




(Conto do livro O Homem-Mulher (Cia das Letras).)

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Ler



Uma obra de arte que valha o tempo que se gasta com ela provoca, mais do que admiração pelo autor, um certo nervosismo, uma ansiedade por símbolos e interpretações. Esse ponto foi bem explorado pela escritora norte-americana Susan Sontag em seu famoso ensaio “Contra a interpretação” de 1966. No texto, a autora tomava a obra de Franz Kafka como o exemplo mais didático desse tipo de sentimento (ou sentimentalismo) na literatura. Confrontado com a elipse e as tramas abertas do escritor tcheco, cada leitor apressava-se em buscar em usa obra o espelho que melhor o refletisse. Interessados em política liam Kafka como um cronista sombrio da burocracia moderna, um crítico precoce do totalitarismo; adeptos da psicanálise enxergavam em seus livros o medo do pai opressor (o pai de Kafka era, ao que tudo indica, um tirano); os mais religiosos viam no destino arbitrário do protagonista de O Processo a justiça tortuosa e inefável de Deus. A ironia contida em todas essas interpretações é a mesma. Se o objetivo fosse só ilustrar um sistema fechado de sentidos, seria sempre mais fácil, por questões de educação e polidez, explicar os símbolos, e poupar o leitor de centenas de páginas.

Pode-se ver um pouco dessa ansiedade interpretativa na celebração recente da obra de Raduan Nassar fora do país. Desde que foi publicado pela primeira vez em inglês, em janeiro deste ano (2016), na coleção Modern Classics da editora Penguin, o autor tem chamado mais e mais a atenção de leitores estrangeiros. Em março, Nassar foi indicado ao Man Booker International Prize, o prêmio literário mais prestigioso do Reino Unido; em maio venceu o Prêmio Camões. Resenhas elogiosas apareceram no Independent, The Times e The Guardian. Nesses textos, críticos estrangeiros lutam para decifrar o poder narrativo do escritor brasileiro, até então pouco conhecido por lá. As análises sobre Um Copo de Cólera, o melhor livro de Nassar, são particularmente interessantes.


A história é conhecida. Um homem recebe uma mulher em sua chácara. Os dois transam, depois tomam banho. Na manhã seguinte, em um momento contemplativo, o homem vê saúvas destruindo a cerva viva da propriedade. Ele se irrita (“filhas da puta, filhas da puta!”), e o equilíbrio do casal, frágil desde o início, desaba. O homem e a mulher começam um bate-boca. A discussão termina em violência.

Nassar conta essa história simples numa prosa bela e excêntrica, de frases longuíssimas que formam capítulos inteiros, sem nunca perder a cadência. Assim como em Kafka, assim como em Thomas Bernhard, o estilo peculiar e virtuoso despejado em uma trama cristalina e concisa (o livro, em formato pequeno, tem apenas 84 páginas) produz um efeito de absinto despejado em estômago meio vazio – e a embriaguez do leitor, como toda embriaguez, contará com uma ponta de megalomania. Símbolos, parábolas, alegorias políticas: toda sugestão valerá como explicação. Em sua resenha no Guardian, Nicholas Lezard, que considerou Um Copo de Cólera um dos livros mais eróticos que ele já leu, lembra que a novela foi publicada durante a ditadura militar brasileira, e alude à relação de poder entre o casal, uma relação de “controle e resistência”. Stefan Tobler (tradutor do livro para o inglês), em texto para o Independent, vê na discussão furiosa entre o casal “as terríveis questões de gênero e classe” e “as desigualdades da sociedade brasileira”.

As interpretações são válidas (e as resenhas resultam bem mais engenhosas que esses trechos sugerem). Mas a ninguém ocorre pensar que a história talvez seja mais mundana e concreta. Um homem, uma mulher, a transa, a manhã seguinte, as saúvas, o bate-boca, o tapa.


Língua peçonhenta – Alejandro Chacoff – Piauí 119


(Imagem via Pinterest)

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Escrever




Para contar histórias, por Braúlio Tavares




 De vez em quando comento aqui os conselhos técnicos de escritores e roteiristas sobre a arte da narrativa. Não existem conselhos, regras ou preceitos universais. O que serve num caso não serve em outro. O que serve para literatura não serve para roteiro, e o que serve para teatro não serve para quadrinhos. Se você quiser contar a mesma história em cada uma dessas linguagens vai ter que começar do zero em cada caso. Não importa se é a história do Dilúvio, a de Rumpeltiltskin, a da Guerra de Canudos ou a do macaco e o leão.

  Emma Coats, roteirista da Pixar, tuíta de vez em quando pequenas pílulas de advertência técnica. Parecem coisas bobas ou óbvias, mas o escritor/roteirista principiante é mais consciente dos grandes problemas do que dos pequenos. É como um cara que vai fazer um rally pelo deserto, comprou GPS, traçou plano de navegação, e pode até desdenhar conselhos bobos como “leve um estepe” ou “encha o tanque”. Mas é na falha do óbvio que os grandes projetos desmoronam.

 Diz Emma: “Simplifique. Mantenha o foco. Pule os desvios. Você vai pensar que está desperdiçando um material valioso mas isto o deixa livre.” Anos atrás eu estava escrevendo algo, estava ansioso para mostrar o que ia acontecer quando o personagem chegasse a um Castelo, mas o diabo do personagem não chegava de jeito nenhum. Cada noite que eu sentava para escrever ele parava pra dar de beber ao cavalo, pra pedir informações aos camponeses na beira da estrada, para dormir, para comer... Era como um desses videogames onde não existe teleporte e você tem que percorrer fisicamente todas as distâncias. Foi com um grito de libertação que um dia perdi a paciência e escrevi: “E assim foi o trajeto de Fulano até o dia em que, numa curva do caminho, viu o Castelo à sua frente.” Fiquei com um pouco de remorso por não fazer o relatório do que aconteceu a ele em todos os minutos da viagem, mas a verdade é que nada daquilo tinha interesse para a minha história. Bastaram alguns parágrafos, dando uma idéia do ambiente, da cavalgada, e pulei logo para o Castelo. Não precisava daquelas dez laudas que escrevi e depois tive que jogar no lixo.

 Literatura tem algumas frases mágicas. Uma delas é “Vários dias depois...” Você não precisa contar ao leitor o que aconteceu nesses vários dias, a menos que tenha acontecido algo relevante para a história. Se não for o caso, pule direto para o próximo fato importante. O leitor não vai notar, e se for um leitor experiente vai até agradecer. Eu resumiria o conselho de Emma Coats na fórmula: “Escreva somente o que for necessário para a história que você está contando.”

domingo, 8 de abril de 2018

Escrever


Viajantes e Adivinhos



...(Ricardo Piglia) gostava de dizer que há dois tipos de narrador, o viajante e o adivinho. Um se desloca e tem que regressar para contar o que viu; o outro interpreta os rastros e os sinais incompreensíveis a sua volta. Mas ambos estão atrás de uma história em que eles mesmos se envolvem, por meio da qual ficam suspensos entre o início e o fim, como o “Eu” que se equilibra, instável, entre a infância e a afasia.


Pedro Meira Monteiro sobre Ricardo Piglia, na Piauí 111 de dezembro de 2015.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Escrever

Objetivamente subjetivo


VEIO DAQUI



Em seis segundos, você vai me odiar. Mas em seis meses, será um escritor melhor.

De agora em diante – pelo menos pelo próximo meio ano – você não poderá usar “verbos de pensamento”, incluindo: pensar, saber, entender, perceber, acreditar, querer, lembrar, imaginar, desejar e centenas de outros que você ama.
Essa lista também deve incluir: amar e odiar. E pode se estender a ser e ter, mas nós vamos chegar nesse mais tarde.
Até mais ou menos o natal, você não poderá escrever: “Kenny se perguntou se Mônica não gostava que ele saísse à noite…”

Em vez disso, você terá de desmembrar isso em algo como: “Nas manhãs que se seguiam às noites em que Kenny estava fora depois do último ônibus, quando ele teria que pegar uma carona ou pagar por um carro para chegar em casa e encontrar Mônica fingindo dormir – porque ela nunca dormia daquela forma tão tranquila – naquelas manhãs, ela sempre colocava apenas sua xícara de café no microondas. Nunca a dele.

Em vez de fazer seus personagens saberem qualquer coisa, você deve agora apresentar detalhes que permitam que o leitor os conheça. Em vez de fazer seus personagens quererem alguma coisa, você deve agora descrever a coisa para que seus leitores passem a querê-la também.

Em vez de dizer: “Adam sabia que Gwen gostava dele.”, você terá que dizer: “No intervalo entre as aulas, Gwen se encostava no armário de Adam quando ele se aproximava para abrí-lo. Ela rolava os olhos e partia, deixando uma marca negra no metal, mas também seu perfume. O cadeado ainda estava quente pelo contato com suas nádegas. E, no próximo intervalo, Gwen estaria encostada ali, outra vez.”

Para resumir, pare de utilizar atalhos. Apenas detalhes sensoriais específicos: ações, cheiros, gostos, sons e sensações.
Normalmente, os escritores usam esses “verbos de pensamento” no início dos parágrafos (dessa forma, você pode chamá-los de “afirmação de tese”, e eu vou protestar contra eles mais tarde). De certo modo, eles afirmam a intenção daquele parágrafo. E, o que se segue, ilustra essa intenção.

Por exemplo: “Brenda sabia que ela nunca cumpriria o prazo. O trânsito estava terrível desde a ponte, passadas as primeiras oito ou nove saídas. A bateria do celular havia se esgotado. Em casa, os cachorros precisariam sair para um passeio, caso contrário haveria uma grande bagunça para limpar depois. Além disso, ela prometeu que aguaria as plantas para o vizinho…”

Você percebe como essa “afirmação de tese” tira o brilho do que se segue? Não faça isso.
Se não tiver jeito, corte a sentença de abertura e coloque-a depois de todas as outras. Melhor ainda, mude para: “Brenda nunca cumpriria o prazo.”

Pensar é abstrato. Saber e acreditar são intangíveis. Sua história sempre vai ser mais forte se você mostrar apenas as ações físicas e os detalhes dos seus personagens e permitir que seu leitor pense e saiba. E ame e odeie.
Não diga ao leitor: “Lisa odiava Tom.”

Em vez disso, construa seu caso como um advogado na corte, detalhe por detalhe.

Apresente cada evidência. Por exemplo: “Durante a chamada, no instante logo após a professora dizer o nome de Tom, naquele momento antes que ele respondesse, bem naquele instante, Lisa sussurrava “seu merda” justo quando Tom respondia “Presente”.

Um dos erros mais comuns de escritores iniciantes é deixar seus personagens desacompanhados. Ao escrever,  você pode estar sozinhos. Ao ler, sua audiência vai estar sozinha. Mas seus personagens devem passar muito pouco tempo sozinhos. Porque um personagem desacompanhado começa a pensar, a se preocupar ou a se perguntar.

Por exemplo: “Enquanto esperava pelo ônibus, Mark começou a se perguntar quanto tempo a viagem tomaria…”.
Uma construção melhor seria: “A programação dizia que o ônibus chegaria ao meio dia, mas o relógio de Mark dizia que já eram 11:57. Dali dava para ver até o fim da rua, até o shopping, e ele não via nenhum ônibus vindo. Sem dúvidas, o motorista estava parado em algum retorno no fim da linha, tirando uma soneca. O motorista estava dormindo e Mark estava atrasado. Ou pior, o motorista estava bebendo e, quando ele parasse ali, bêbado, cobraria setenta e cinco centavos por uma morte horrível em um acidente de trânsito.”

Um personagem sozinho deve mergulhar em fantasia em memória, mas mesmo nesses casos você não pode usar “verbos de pensamento” ou qualquer um de seus parentes abstratos.

Ah, e você não pode se esquecer dos verbos lembrar e esquecer. Nada de frases como “Wanda lembrou-se de como Nelson costumava escovar seu cabelo”.

Em vez disso, diga: “Quando estavam no segundo ano da faculdade, Nelson costumava arrumar o cabelo dela com escovadas suaves e longas”.

Outra vez: desmembre. Não utilize atalhos.

Melhor ainda, coloque o seu personagem junto com outro personagem rapidamente. Coloque-os juntos e deixe a ação começar. Deixe a ação e as palavras mostrarem seus pensamentos. Saia da cabeça deles.

E, enquanto estiver evitando os “verbos de pensamento”, seja muito cauteloso ao utilizar os verbos ser e estar.

Por exemplo:

“Os olhos de Ann eram azuis” ou “Ana tinha olhos azuis”
versus
“Ann tossiu e sacudiu uma mão em frente seu rosto, espantando a fumaça de cigarro de seus olhos, olhos azuis, antes de sorrir…”

Em vez de usar os sem graça “ser” e “ter”, tente enterrar esses detalhes dos personagens em suas ações ou gestos. Para simplificar, isso é mostrar sua história, em vez de contar.

E daqui para frente, depois que você aprender a desmembrar seus personagens, você vai odiar os escritores preguiçosos que se contentam com: “Jim sentou-se ao lado de seu telefone, perguntando-se se Amanda não ligaria.”

Por favor. Por enquanto, me odeie com todas as suas forças, mas não use “verbos de pensamento”. Depois do natal, sinta-se livre, mas eu apostaria dinheiro que você não vai voltar atrás.

(…)

Como tarefa do mês, vasculhe suas escritas e circule cada “verbo de pensamento” que você encontrar. Depois, encontre uma forma de eliminá-los. Mate-os através do desmembramento.

Em seguida, vasculhe algum livro de ficção e faça o mesmo. Seja impiedoso.

“Marty imaginou um peixe saltando sob a luz da lua…”
“Nancy lembrou-se do sabor do vinho…”
“Larry sabia que ele era um homem morto…”

Encontre-os. Depois, descubra um jeito de reescrevê-los. Torne-os mais fortes.

– Chuck Palahniuk