sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Não escrever



A arte de não escrever

Sergio Sant´anna





Muito já se escreveu sobre a arte da poesia, ou da narrativa, mas nada sobre essa outra arte tão dura e demandante de rigor que é a de silenciar quando não se tem o que dizer, ou o desejo de dizê-lo, ou, principalmente, os recursos para tanto. Este pequeno ensaio visa a preencher essa lacuna para aqueles que se iniciam na atividade literária, ou aqueles, veteranos, que se vêem impelidos a continuar simplesmente por que começaram.

Aos aspirantes a escritor que se sentem torturados pela desconfiança de que não têm aptidão para o ofício, pode-se dizer que, quase sempre, estão certos. Mas é bom lembrar que somente os que duvidaram da própria incapacidade, através da ação, tiveram a oportunidade de confirmá-la. E também que escrever talvez seja, em grande parte dos casos, muito mais o exercício de uma vontade, às vezes férrea, do que a realização de uma vocação irreprimível, como aquela de um Rimbaud (mesmo assim parou logo) ou de um Jarry, que escreveu o seu primeiro Ubu para gozar um professor.

Poderiam esses dois exemplos insinuar que a grande pergunta ao pretendente a escritor é se as suas palavras fluem, com a espontaneidade do sentimento, dos seus corações e mentes diretamente para a folha de papel ou tela do computador? Se a resposta é sim, deve-se desconfiar em dobro, pois, não suportando a literatura qualquer tipo de primitivismo, é muito provável que as composições nascidas desse fluxo se tornem um lixo ainda mais visguento do que aquele produzido pelo mero esforço. Este último, quando nada, pode servir também para o saudável exercício de cortar palavras, às vezes até a última delas.

Trabalhar com um computador, para os principiantes na informática, implica ainda um outro risco: pelo simples fato de conseguir alinhar frases e parágrafos o artista pode acreditar-se um gênio.

Mas onde se quer chegar? Àquele velho lugar comum, que os escritores repetem em entrevistas, de não sei quantos por cento de inspiração para não sei quantos de transpiração? Ou a alguma definição como a do coreógrafo Maurice Béjart, a propósito de Baudelaire, de que o poeta é um misto de delírio (palavra algo perigosa) e disciplina (palavra algo militar)? Não propriamente, pois não se trata, aqui, de um guia com o objetivo de introduzir ou aprimorar pessoas nos procedimentos do ofício literário, mas, ao contrário, de auxiliá-las no caminho da abstenção, entendendo-a como virtude e fenômeno produtivo do ponto de vista social e individual. À inflação, como se sabe, corresponde uma quantidade excessiva de papel-moeda sem o devido lastro em bens. Literariamente, isso equivaleria a um excesso de palavras para pouco ou nada a dizer, fenômeno bem brasileiro que remonta à Colônia e ao Império – seguindo adentro pela República – com seu bacharelismo beletrista. Trata-se, basicamente, de enrolar as gentes, com o discurso do jurista, do político e do homem de letras, isso quando as três condições não coexistem num só homem, espécime que teve o seu representante mais notável em Rui Barbosa. Uma perda de substância da linguagem, enfim. Em oposição a essa estética do latifúndio trabalhariam os escritores antiinflacionários, ecologistas da palavra, como Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto, tratando de escrever menos e melhor.

O editor Pedro Paulo de Sena Madureira, em palestra, identificou como uma das causas desse mal brasileiro – variante intelectual da saúva – a quantidade de autores ou candidatos a, sem a devida correspondência em leitores, as poucas oportunidades de afirmação social e econômica no país, levando grande número de pessoas a buscar a carreira artística. Como todo mundo domina mais ou menos a língua, ao contrário da música e do desenho, daí para a tentação de escrever um livro é um pequeno passo.

Começa também aí uma série de infortúnios para o sujeito. O primeiro deles seria uma perda imediata da capacidade de viver espontaneamente. Tomem-se alguns exemplos simples como os atos (ou não-atos) de assistir ao anoitecer ou ver e ouvir a chuva. Para qualquer ser humano dotado de sensibilidade, isso pode ser oportunidade para a contemplação, a meditação desinteressada e até a integração com algo mais vasto. Para o escritor, não; para ele, toda vivência, inclusive a convivência com o semelhante, é encarada de forma utilitária, material, passível de transformação, ainda que em frases do tipo: “ Os pneus chiavam no asfalto e as poças d’água refletiam os letreiros luminosos”. Quando se trata da convivência no amor, o risco de perda existencial é ainda maior. Norman Mailer escreveu um conto sobre isso: O caderno de notas. É sobre um jovem escritor e sua namorada. Vale a pena transcrever um pedaço.

“Há uma coisa que eu vou dizer a você”, ela continuou amargamente. “Você magoa os outros mais do que a pessoa mais cruel do mundo faria. E por quê? Vou lhe dizer por quê. É porque você nunca sente nada e faz os outros acreditarem que sente”. Ela percebeu que ele não estava escutando e perguntou, exasperada: “Em que você está pensando agora?”

“Em nada. Estou ouvindo você e gostaria que não estivesse tão zangada.”

Na verdade, ele estava bastante inquieto. Acabara de ter uma idéia para pôr no caderno de notas e isso o deixava ansioso, pensar que se não tirasse o caderno do bolso para anotar o pensamento, poderia esquecê-lo.


O escritor acaba conseguindo fazer a anotação, que é a seguinte:

Crise emocional agravada pelo caderno de notas. Jovem escritor, namorada. Escritor acusado de ser observador, não participante, da vida. Tem idéia que precisa anotar no caderno. Faz isso e a discussão piora. Garota rompe a relação por causa disso.


Pode-se retrucar que a essa perda corresponde um ganho considerável, a possibilidade de viver a existência em dois planos simultâneos: como vida e como obra. O jovem escritor de Mailer procura administrar isso, pois se a idéia do conto é boa, a garota também é legal e o autor-personagem tenta alcançá-la na próxima esquina, Bom, se acaso a houver perdido para sempre, restar-lhe-á o consolo de havê-la aprisionado no papel, ou o de que poderá inventar outras namoradas. A grande sedução da literatura – e eis uma das razões por que é tão difícil não escrever. Você pode amar imaginariamente, viver aventuras, cometer os mais diversos crimes e ainda receber prêmios por isso. Tudo, é lógico, se o resultado for bem-sucedido. Do contrário, corre-se o risco, se a obra for publicada, de emoldurar um daqueles retratos amarelados, fixados num momento infeliz. E, o que é pior, não se poderá mais destruí-lo. Se levarmos em conta que o verdadeiro escritor começa por ser um crítico severo de si mesmo, a grande probabilidade é de que encare com desconfiança, para não dizer desgosto, todos os retratos passados, tentando retocá-los – ou eliminar seus traços – no seguinte e assim por diante. Algo tão infernal quanto um cão querendo morder o próprio rabo. E gasta-se uma vida nisso.

Já o hábito de ler, que também amplia a realidade a mais de um plano – creio mesmo que a vida é muito mais real nos livros e nos filmes – não entra em conflito com o existir, desde que se desfrute da leitura sem segundas intenções, de aprendizado, sobretudo o do ofício de escritor. Neste caso, perder-se-ia a pureza e o prazer primordiais daquela leitura ideal de Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino. E, como a percentagem autores/leitores é totalmente insatisfatória no Brasil, trata-se de aumentar a quantidade destes últimos, provavelmente à custa dos primeiros, com proveito qualitativo para ambos.

Quando se começa a escrever, os outros autores, até os antes admirados, passam, de imediato, à categoria de concorrentes, que, se você não conseguir superar, será tentado a reduzir pela crítica, velada ou pública. O que faz dos salões de cabeleireiro, perto dos literários, templos de inocência. Entre outras vantagens da abdicação – se for sincera, e não mera conformação às evidências – está a de livrar você próprio e os outros das dores amargas da inveja e do ressentimento. É evidente que essa abdicação implica também na renúncia a certos ideais: alguns deles gloriosos, como o de onipotência sobre o verbo, cujo fim último é a perfeição; outros, apenas nobres, como o de dotar a realidade, tão impermeável, de um contorno preciso; outros, como já vimos, de motivação mais íntima, como o de substituir essa realidade por uma mais de acordo com as nossas inclinações.

Mas, ainda que se trate de uma inação, a arte de não escrever não pode ser confundida com a preguiça, pois, ao contrário desta, requer método e força de vontade, e, se se pode falar em exercício, é o da ascese. Em termos mais práticos, seria comparável a parar de fumar ou aos regimes alimentares: a cada cigarro que você não fuma, a cada substância gordurosa de que se abstém, o ar penetra mais puro em seus pulmões, o sangue flui límpido por suas veias. Assim é também com a palavra: a cada uma delas não escrita, a atmosfera se torna menos rarefeita, a vida corre solta, a chuva e a noite caem sem nenhuma interferência sua e você, sem dar-se conta disso, tornou-se personagem em vez de autor. O resultado, uma vez vencido o medo inicial, é comparável a jogar-se num espaço sem fim. Se, para além dele, encontra-se a morte, esta também não é um obstáculo sólido. De todo modo, qualquer tentativa de evitá-la, outra grande motivação dos escritores, acaba por revelar-se fútil. Porém, se, apesar de tudo, a necessidade de expressar-se por escrito brota dentro de alguém como uma toxina endógena, é melhor expelí-la em palavras, sabendo sempre que a fonte é inesgotável; que escrever é como matar baratas com o sapato, elas continuam a se multiplicar, como neste ensaio aqui. Diante da contradição em que ele implica, o autor argumenta, em sua defesa, que talvez possa contribuir na formação desses seres tão singulares: os homens e mulheres comuns.







[O texto acima já havia sido publicado no Jornal do Brasil em 19/1/92 e no site Cronópios em 19/8/2006]