quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Escrever

Trecho de uma história da leitura 
(negritos meus)

Alberto Manguel


"Uma vez, andando por Praga com o filho de um colega, parou diante da vitrine de uma livraria. Vendo o jovem companheiro inclinar a cabeça de um lado para o outro a fim de ler o título dos livros enfileirados, ele riu: "Então você também é louco por livros, sua cabeça sacode de tanta leitura?". O amigo assentiu: "Acho que eu não poderia viver sem livros. Para mim eles são o mundo". Kafka ficou sério. "Isso é um erro", disse. "Um livro não pode tomar o lugar do mundo. É impossível. Na vida tudo tem seu sentido e seu propósito, e para isso não há substituto permanente. Um homem não pode, por exemplo, dominar sua própria experiência por meio de outra personalidade. É assim que está o mundo em relação aos livros. Tentamos aprisionar a vida num livro, como um pássaro canoro na gaiola, mas não funciona." A intuição de Kafka de que, se o mundo tem coerência, é uma coerência que não podemos compreender plenamente - se o mundo oferece esperança (como uma vez respondeu a Max Brod), ela "não é para nós" -, levou-o a ver, nessa mesma irresolubilidade, a essência da riqueza do mundo. Num ensaio famoso, Walter Benjamin observou que para entender a visão de mundo de Kafka "não se deve esquecer o modo de ler de Kafka", comparado por Benjamin ao do Grande Inquisidor de Dostoievski no conto alegórico de Os irmãos Karamazov: "Temos perante nós", diz o Inquisidor ao Cristo retornado à Terra, "um mistério que não podemos apreender E, justo por ser um mistério, tivemos o direito de pregá-lo, de ensinar ao povo que o que importa não é a liberdade nem o amor, mas o enigma, o segredo, o mistério diante do qual eles devem se curvar - sem reflexão e mesmo sem consciência". Um amigo que viu Kafka ler em sua escrivaninha disse que ele lembrava a figura angustiada de Um leitor de Dostoievski, do expressionista tcheco Emil Filla, que parece em transe enquanto lê o livro que ainda segura na mão cinzenta."


"É famosa a história segundo a qual Kafka pediu ao amigo Max Brod que queimasse seus escritos depois de sua morte; sabidamente, Brod desobedeceu. O pedido de Kafka foi considerado um gesto auto depreciativo, o obrigatório "eu não mereço" do escritor que espera que a Fama lhe responda: "Mas como não? É claro que merece". Talvez haja uma outra explicação. Como Kafka percebia que, para um leitor, cada texto precisa ser inacabado (ou abandonado, como sugeriu Paul Valéry), que na verdade um texto pode ser lido somente porque é inacabado, deixando assim espaço para o trabalho do leitor, talvez quisesse para seus escritos a imortalidade que gerações de leitores concederam aos volumes queimados na biblioteca de Alexandria, às 83 peças perdidas de Ésquilo, aos livros perdidos de Lívio, à primeira versão de A Revolução Francesa de Carlyle, que um amigo da criada deixou cair acidentalmente na lareira, ao segundo volume de Almas mortas de Gogol, condenado às chamas por um padre fanático. Talvez pelo mesmo motivo, Kafka jamais completou muitos de seus escritos: não existe a última página de O castelo, porque K., o herói, jamais deve chegar lá, de tal forma que o leitor continue no texto de múltiplas camadas para sempre. Um romance de Judith Krantz ou Elinor Glyn fecha-se numa única leitura exclusiva, estanque, e o leitor não pode escapar a menos que ultrapasse conscientemente os limites do senso comum (há uns poucos que lêem Princesa Daisy como uma alegoria da viagem da alma, ou Três semanas como um Pilgrim's progress do século XIX). Disso nos demos conta lá em Buenos Aires, junto com aquele primeiro sentimento de liberdade: que a autoridade do leitor jamais é ilimitada. Umberto Eco observou, num epigrama útil: "Os limites da interpretação coincidem com os direitos do texto"."


"Ernst Pawel, no final de sua lúcida biografia de Kafka, escrita em 1984, nota que "a literatura que trata de Kafka e sua obra compreende atualmente cerca de 15 mil títulos, na maioria das principais línguas do mundo". Kafka tem sido lido literalmente, alegoricamente, politicamente, psicologicamente. Dizer que as leituras sempre ultrapassam em quantidade os textos que as geram é uma observação banal, mas algo de revelador sobre a natureza criativa do ato de ler está presente no fato de que um leitor pode se desesperar e outro rir exatamente na mesma página. Minha filha Raquel leu A Metamorfose quando tinha treze anos e achou engraçado; Gustav Janouch, um amigo de Kafka, leu-a como uma parábola religiosa e ética; Bertold Brecht julgou-a como obra do "único escritor realmente bolchevista"; o crítico húngaro György Lukács considerou-a produto típico de um burguês decadente; Borges leu-a como narrativa que reconta os paradoxos de Zeno; a crítica francesa Marthe Robert viu na obra um exemplo da clareza da língua alemã; Vladimir Nabokov considerou-a (em parte) uma alegoria da Angst adolescente. O fato é que as histórias de Kafka, nutridas pela experiência de leitura dele, ao mesmo tempo oferecem e tiram a ilusão de compreensão. É como se elas corroessem a arte do Kafka escritor a fim de satisfazer o Kafka leitor. Em 1904, Kafka escreveu a seu amigo Oskar Pollak:

  "No fim das contas, penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem. Se o livro que estamos lendo não nos sacode e acorda como um golpe no crânio, por que nos darmos ao trabalho de lê-lo? Para que nos faça feliz, como diz você? Meu Deus, seríamos felizes da mesma forma se não tivéssemos livros. Livros que nos façam felizes, em caso de necessidade, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser um machado para o mar gelado de dentro de nós. É nisso que acredito".
 "