segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Escrever





O Jogo e a Poesia (J.Huizinga) VIA




"Enumeremos mais uma vez as características que consideramos próprias do jogo. É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão.

Ora, dificilmente se poderia negar que estas qualidades são próprias da criação poética. A verdade é que esta definição de jogo que agora demos também pode servir como definição de poesia. A ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isto poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico. Não é de modo algum uma metáfora chamar à poesia, como fez Paul Valéry, um jogo com as palavras e a linguagem: é a pura e mais exata verdade.

Não é apenas exterior a afinidade existente entre a poesia e o jogo; ela também se manifesta na própria estrutura da imaginação criadora. Na elaboração de uma frase poética, no desenvolvimento de um tema, na expressão de um estado de espírito há sempre a intervenção de um elemento lúdico. Seja no mito ou na lírica, no drama ou na epopéia, nas lendas de um passado remoto ou num romance moderno, a finalidade do escritor, consciente ou inconsciente, é criar uma tensão que “encante” o leitor e o matenha enfeitiçado. Subjacente a toda escritura criadora está sempre alguma situação humana ou emocional suficientemente intensa para transmitir aos outros essa tensão. Mas o problema é que não existe um grande número dessas situações. Em termos gerais, pode-se dizer que essas situações surgem do conflito ou do amor, ou da conjunção de ambos.

Ora, tanto o conflito quanto o amor implicam rivalidade ou competição, e competição implica jogo. Na grande maioria dos casos, o tema central da poesia e da literatura é a luta – isto é, a tarefa que o herói precisa cumprir, as provações por que ele tem que passar, os obstáculos que ele precisa transpor. Já é suficientemente esclarecedor o uso da palavra “herói” para designar o personagem principal. A tarefa será extraordinariamente difícil, aparentemente impossível. Em geral, ela é empreendida em consequência de um desafio, de uma promessa ou de um capricho da pessoa amada. Todos estes temas nos conduzem de volta ao jogo agonístico. Uma outra série de motivos de tensão assenta no disfarce da identidade do herói. Ele se apresenta incógnito quer por estar deliberadamente ocultando sua identidade, ou por ele próprio a desconhecer, ou ainda, porque é capaz de mudar sua aparência conforme sua vontade. Em outras palavras, ele usa uma máscara, aparece sob um disfarce, é portador de um segredo. Uma vez mais nos encontramos próximo do velho jogo sagrado do ser oculto que se revela apenas aos iniciados."