segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Escrever



Os resíduos do dia em quatro semanas + 2 comentários




a)Kazuo Ishiguro

VIA Blog da Cia das Letras


Como escrevi Os resíduos do dia em quatro semanas

Por Kazuo Ishiguro

Texto originalmente publicado no The Guardian. Tradução de Carlos Alberto Bárbaro.

* * *

A jornada de trabalho da maior parte das pessoas é extensa. Mas se o negócio é escrever romances, todos concordam que após quatro ou mais horas escrevendo sem parar, a produtividade cai. Eu sempre comprei essa versão, mas à medida que o verão de 1987 se aproximava, acabei por me convencer de que uma abordagem drástica era necessária. Com o aval de Lorna, minha esposa.

Até então, desde que havia deixado de trabalhar regularmente nos últimos cinco anos, eu fora capaz de estabelecer um ritmo razoável de trabalho e produção. Minha primeira onda de sucesso de público, após meu segundo romance, trouxe consigo, no entanto, um punhado de distrações. Propostas tentadoras de evolução na carreira, convites para jantares, festas e viagens ao exterior, além de montanhas de cartas, não conseguiram senão acabar com a minha rotina “adequada” de trabalho. Eu tinha redigido o capítulo de abertura para um novo romance no verão passado, mas agora, quase um ano depois, não havia progredido em nada.

Então Lorna e eu concebemos um plano. Nas quatro semanas seguintes, sem dó nem piedade, eu cancelaria minha agenda e procederia ao que enigmaticamente chamamos de “o confronto”. Durante “o confronto”, eu não faria nada senão escrever, das nove da manhã até às dez e meia da noite, de segunda a sábado, com uma hora para o almoço e duas para o jantar. Eu não abriria, responder nem pensar, nenhuma correspondência e não chegaria nem perto do telefone. Não receberíamos ninguém em casa. E nesse período, e a despeito de sua agenda particularmente carregada, Lorna também assumiria a minha parte na cozinha e na limpeza da casa. Esperávamos, assim, que não somente eu produziria quantitativamente mais como atingiria um estado mental em que o meu mundo fictício seria mais real para mim do que o real de fato.

Eu tinha 32 anos, e tínhamos acabado de mudar para uma casa em Sydenham, sul de Londres, onde pela primeira vez na vida eu tinha um verdadeiro estúdio. (Meus dois primeiros romances tinham sido escritos à mesa do jantar.) Era na verdade uma espécie de conjugado a um lance de escadas, sem porta, mas eu estava emocionado por ter um espaço onde eu pudesse espalhar meus papéis ao redor do jeito que quisesse sem ter de arrumar tudo ao final de cada dia. Enchi a parede descascada com mapas e notas e comecei a escrever.

Foi assim, basicamente, que Os resíduos do dia foi escrito. Durante “o confronto”, eu escrevi sem censura, não me importando com o estilo ou se algo que eu escrevera à tarde contradissesse algo que eu definira na história pela manhã. A prioridade era simplesmente deixar as ideias brotarem e florescerem. Frases horríveis, diálogo dantesco, cenas que não davam em nada, eu as deixava por ali e continuava a escavar.

No terceiro dia, Lorna mencionou, durante a minha pausa noturna, que eu estava me comportando de modo estranho. No meu primeiro domingo de folga eu me aventurei ao ar livre, na rua principal de Sydenham, e não parava de dar risinhos — pelo menos foi o que Lorna me contou — pelo fato da rua ser uma ladeira, fazendo assim com que as pessoas que desciam tropeçassem em si mesmas, enquanto os que subiam se esfalfavam e cambaleavam com o esforço. Lorna se preocupou pelo fato de eu ainda ter mais três semanas nesse processo, mas eu assegurei a ela que eu estava muito bem e que a primeira semana tinha sido um sucesso.

Continuei assim por quatro semanas, e ao fim de tudo tinha mais ou menos concluído o romance: claro que ainda seria preciso muito mais tempo para acertar a escrita de modo apropriado, mas todos os avanços imaginativos vitais tinham se dado durante “o confronto”.

A bem da verdade, no momento em que assumi “o confronto” eu já tinha feito um bocado de “pesquisa”: livros de e sobre mordomos britânicos; sobre política e relações exteriores no entreguerras; muitos panfletos e ensaios da época, notadamente o de Harold Laski sobre “Os perigos de ser um cavalheiro”. Havia pilhado as prateleiras de livros usados da livraria do bairro (Kirkdale Livros, ainda uma próspera independente) em busca de guias sobre o interior da Inglaterra entre os anos 1930 e 1950. A decisão sobre quando começar de fato a escrever um romance — de começar a compor a história em si — sempre me pareceu o momento crucial. Quanto se deve saber antes de começar a escrever? Começar cedo demais é prejudicial, assim como começar demasiado tarde. Creio que no caso de Resíduos eu tive sorte: “o confronto” veio no ponto preciso, quando eu sabia exatamente o bastante.

Em retrospecto, identifico todos os tipos de influências e fontes de inspiração. A seguir, dois dos menos óbvios:

1) Em meados dos anos 1970, ainda adolescente, assisti a um filme chamado A conversação, um suspense dirigido por Francis Ford Coppola. No filme, Gene Hackman é um especialista em vigilância autônomo, o cara a quem apelam os que querem grampear e gravar em segredo as conversas de outros. Hackman deseja obsessivamente ser o melhor em seu campo — “o maior grampeador da América” —, mas fica cada vez mais incomodado ao perceber que as gravações que ele fornece a seus poderosos clientes podem gerar graves consequências, até mesmo assassinato. Creio que o personagem de Hackman foi um modelo inicial para Stevens, o mordomo.

2) Certa noite, quando eu já dava o Resíduos por terminado, ouvi Tom Waits cantando “Ruby’s arms”. É uma balada sobre um soldado que não acorda sua amada ao sair para embarcar no trem de madrugada. Até aí, nada de estranho. Mas a música é interpretada na voz roufenha do típico deslocado americano totalmente incapaz de reconhecer suas emoções. A certa altura, quando o cantor declara que seu coração está partido, isso é quase insuportavelmente emocionante, por conta da tensão entre o sentimento em si e da enorme resistência em, obviamente, conseguir ser capaz de expressar isso em palavras. Waits canta o trecho com magnificência catártica, e é possível sentir toda uma vida de estoicismo durão desmoronando frente a uma tristeza esmagadora. Ao ouvir isso, eu reverti uma decisão que tinha tomado, a de que Stevens permaneceria emocionalmente travado até o fim amargo. E eu decidi que em apenas um ponto — e um que eu teria que escolher com muito cuidado — sua rígida barreira iria rachar, e um até então trágico e oculto romantismo seria vislumbrado.



b)Sergio Rodrigues

VIA Todoprosa

 

A lição de Ishiguro: quanto menos vida real, melhor

Entre os temas sobre os quais os escritores são chamados a responder com frequência, o da “rotina de trabalho” deve estar no topo da lista ou bem perto dele. São muitas as perguntas que cabem nessa categoria. Você escreve todos os dias? Tem uma meta de produção? Um número fixo de horas? Manhã, tarde ou noite? Observa algum ritual, alguma superstição? Desconecta-se da internet para escrever? Desliga o celular?

Sim, o interesse por tal tipo de informação sobre os bastidores da escrita é em grande parte fetichista, uma forma de atribuir à criação literária uma aura mágica (“Como você consegue?”), recusando a ideia de que escrever é nada mais que um trabalho – com suas peculiaridades, claro, mas um trabalho. Como ocorre em todo ofício, cada trabalhador deve encontrar os métodos e rotinas que mais lhe convenham.

O risco do fetichismo é levar os incautos a se fixar no acessório e descuidar do principal. Dizem que Ernest Hemingway gostava de descascar um certo número de laranjas antes de começar a escrever, mas pode-se afirmar com absoluta certeza que nenhuma atividade envolvendo frutas cítricas jamais levou ninguém a desenvolver um estilo tão cortante e conciso quanto o do autor de “Por quem os sinos dobram”. Descascar lápis e mais lápis, apontando-os para escrever e reescrever até os dedos doerem, sim.

Em 2013, comentei aqui no blog um divertido texto em que a escritora inglesa Zadie Smith contava ter recebido de uma amiga, em seus tempos de aspirante, a informação de que Ian McEwan limitava sua produção diária a escassas quinze palavras. Era uma informação falsa, claro, mas Zadie ficou muito impressionada com aquilo. O limite absurdo a angustiou por anos a fio.

Nada disso quer dizer que não haja informações aproveitáveis nos bastidores da criação literária. O blog da Companhia das Letras publicou esta semana um texto fascinante do escritor nipo-britânico Kazuo Ishiguro (foto acima), chamado “Como escrevi ‘Os resíduos do dia’ em quatro semanas”, que recomendo a todos. Não se trata de receita: além de não haver dois escritores iguais, não há dois livros iguais do mesmo escritor, o que complica o jogo ao infinito. Mas o artigo tocou numa corda que para mim soou profundamente verdadeira.

Com o apoio de sua mulher, Ishiguro decidiu levar adiante o plano ousado de, por quatro semanas, isolar-se de tudo – telefone, correspondência, contato com amigos, afazeres domésticos – e escrever todos os dias, de segunda a sábado, das 9h às 22h30, parando uma hora para o almoço e duas para o jantar. A ideia era atingir “um estado mental em que o meu mundo fictício seria mais real para mim do que o real de fato”. Deu certo.

Reconheci imediatamente esse estado mental estranho como algo que experimentei nos momentos mais ricos da minha própria experiência de escrita: as semanas de férias que passei sozinho numa casa na serra fluminense, sem trocar uma palavra com ninguém, quando escrevi “As sementes de Flowerville” e, mais tarde, “Elza, a garota”; e sobretudo os quinze dias de solidão numa pousada em Paraty, entre setembro e outubro de 2012, que deram forma definitiva à maçaroca desconexa que “O drible” tinha se tornado.

Os livros não foram inteiramente escritos naqueles dias de isolamento – o de Ishiguro também não. Mas foi em tais momentos de atenuação induzida da realidade, de volume do mundo reduzido ao quase inaudível, que tive os maiores acessos de lucidez e tomei as decisões mais importantes sobre eles. Uma medida de desconexão com o real parece ter sido necessária para que eu mesmo passasse a acreditar nos meus “mundos fictícios”, deixando-os quase ao alcance dos sentidos – e se nem o autor acredita neles, como esperar que o leitor o faça?

Sem querer romantizar nada, muito menos a loucura, acho que o escritor americano E.L. Doctorow não se refere a nada diferente disso quando diz que “escrever é uma forma socialmente aceita de esquizofrenia”. É possível que contistas e poetas tenham histórias diferentes para contar. No caso dos romances, com o fôlego longo que exigem, fico tentado a enunciar uma lei universal: a de que alguma medida de alienação controlada é imprescindível ao processo criativo. Como conciliar isso com as demandas da vida real, eis o problema que cada um precisa resolver sozinho.



c)Carol Bensimon


 VIA Blog da Cia


Romances a jato, competições estranhas e a carta dos Beats
13 janeiro 2015


Kazuo Ishiguro escreveu sobre escrever um romance em quatro semanas. Em um texto originalmente publicado no Guardian e reproduzido neste blog, o autor conta como concebeu Os resíduos do dia em um rígido esquema que previa 10 horas de escrita diária, nenhum convívio social e a suspensão temporária de todas suas obrigações domésticas (como cozinhar e limpar a casa). Quem leu Os resíduos do dia sabe que esse é um livro ambientado no interior da Inglaterra, período entreguerras, com foco na rotina segregada de um mordomo, na acepção mais britânica e radical da palavra. Estou dizendo isso para que ninguém se iluda com essa sensação de que um-livro-ótimo-foi-escrito-em-quatro-semanas, eu também posso fazer etc.: o próprio texto de Ishiguro deixa claro que ele havia sido tragado anteriormente por uma extensa pesquisa (“livros de e sobre mordomos britânicos; sobre política e relações exteriores no entreguerras; muitos panfletos e ensaios da época, notadamente o de Harold Laski sobre Os perigos de ser um cavalheiro. Havia pilhado as prateleiras de livros usados da livraria do bairro [Kirkdale Livros, ainda uma próspera independente] em busca de guias sobre o interior da Inglaterra entre os anos 1930 e 1950”). Além disso, foi preciso tempo depois (ele não especifica quanto) para que suas “frases horríveis, diálogo dantesco, cenas que não davam em nada” fossem transformadas no romance que conhecemos hoje.

O.k., esse livro então não foi escrito em quatro semanas. Mas vamos supor que sim, que o que conta de fato é essa espinha dorsal da obra, não a pesquisa anterior, não o trabalho de formiga de depois, mas o jorro das quatro semanas em que todo o resto da vida parou. A questão que me deixa a pensar a partir disso é: por que nos importamos tanto com o fato de que esse livro foi escrito em quatro semanas? Por que o fato de Kazuo Ishiguro, ótimo, reconhecido autor de relativo sucesso comercial, ter escrito um de seus livros (não todos) em quatro semanas subitamente parece significar que qualquer um pode fazer a mesma coisa com qualquer livro? Será que não é mais fácil para qualquer um tentar escrever um livro em dois ou três anos, uma vez que esse tempo de escrita parece ter gerado mais livros significantes do que as raras quatro semanas de imersão?

Algumas coisas — escrever romances é uma delas — nos demandam muito tempo. Isso é mais difícil de aceitar hoje do que foi em qualquer outra época. É a época do TED, em que pessoas ficam num palco feito baratas tontas e com a fala acelerada tentando transmitir “uma ideia geral” sobre algo que provavelmente consumiu boa parte de suas vidas. E é como se pedissem desculpas o tempo todo por estarem ocupando tanto tempo (15 minutos?) das nossas vidas!

* * *

Existe um evento nos Estados Unidos chamado National Novel Writing Month. Ele acontece em novembro desde 1999 e convoca as pessoas a escreverem um romance de 50.000 palavras em um único mês. Segundo um artigo da crítica literária Laura Miller, que contesta fervorosamente essa competição pueril e sem sentido, 21.683 pessoas cumpriram a meta em 2013.

As considerações de Miller valem a leitura porque, além de demonstrarem o quanto é infrutífera uma ação que prevê a escrita alucinada de novelas ruins, tratam de um tipo que eu, ingênua, acreditava mais presente no mundo literário brasileiro: o aspirante a escritor que não lê.

— O que você lê?

— Ah, eu não tenho tempo para ler. Estou me concentrando na minha escrita.

* * *

Difícil encontrar na internet o tempo que grandes clássicos da literatura universal levaram para ser escritos, mas as dicas para elaborar um romance em poucas semanas estão por todos os lados. Não tenho a mínima paciência para elas, no entanto me senti impelida a clicar em um link que listava seis romances famosos escritos em menos de um mês (de novo a lógica TED de encarar a vida: por que não nos preocupamos mais com os romances famosos que demoraram anos para chegar a sua forma final?). E lá estava On the road.

Ora, claro que eu já ouvi muitas vezes aquela história sobre o rolo de papel interminável e Jack Kerouac por sei lá quanto tempo datilografando sem parar. Mas acontece que, nos últimos meses, por conta de uma série de leituras (isso, leituras!), acho que entendi melhor uma porção de coisas envolvendo esses caras da Geração Beat. E inclusive, numa sincronia quase irreal, descobri uma história fascinante: em 1950, Jack Kerouac recebeu de Neal Cassidy uma carta. O.k., isso não era propriamente um acontecimento, uma vez que eles trocavam cartas com regularidade. Mas essa carta específica em que Cassidy descreve seu relacionamento com uma mulher chamada Joan Anderson ia entrar para a história porque a prosa de Cassidy no documento alucinado de 18 páginas causou uma pequena revolução na literatura de Kerouac e de Allen Ginberg. De repente, eles entenderam que era daquele jeito que tinham de escrever. Nessa altura, Jack já tinha escrito sobre suas aventuras na estrada. Então, em 1951, ele sentou e reescreveu tudo sob influência da Joan letter de Cassidy. Mas tudo tinha começado em 1948.

O final dessa história eu relato apenas porque é uma boa história, ainda que ela também nos diga alguma coisa sobre tempo, sobre descontrole e a aceitação de tudo isso. Kerouac emprestou a carta para Ginsberg, que estava igualmente fascinado por ela. Em algum momento, Ginsberg mandou a carta para uma editora de São Francisco. A carta se perdeu, era única, ninguém mais além de um punhado de pessoas jamais leu essa carta. E então foi achada dois meses atrás. Dois meses atrás. Alguém morreu, a filha vasculhou as coisas do pai, lá estava a carta. Depois de mais de 60 anos. A carta ia a leilão, mas há alguma discussão nesse momento a respeito de direito autoral, sabe-se lá o que vai acontecer agora. De qualquer maneira, espero que a carta esteja acessível para o grande público em breve. E que nenhum aspirante a escritor assista a uma futura apresentação do TED sobre ela em vez de ler a maldita carta de 18 páginas.