segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Escrever


Julio Cortázar.

Eu tenho esse texto no Último Round (Civilização Brasileira). Mas - por desencargo - decidi espiar no Google, verificar se alguém já não o teria postado antes. E não é que achei? A versão dele é um pouco diferente (Outra editora, outro tradutor, outra edição, sem epígrafe...), mas tá valendo. Pois é, dá-lhe preguiça. Mas esse blog é pretende ser mais pasta "pública" de recortes do que algo mais sério. Veio daqui: Oficina de Textos e Contos



Do conto breve e seus arredores




Certa vez Horacio Quiroga tentou um decálogo do perfeito contista, que desde o título vale já como uma piscada de olho para o leitor. Se nove dos preceitos são consideravelmente prescindíveis, o último parece-me de uma lucidez impecável: “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido uma. Não há outro modo para obter a vida no conto”.

A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao conselho, ao definir a forma fechada do conto, o que já noutra ocasião chamei de esfericidade; mas a essa noção se soma outra igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido uma das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o exterior, sem que os limites da narrativa se vejam traçados como quem modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento da esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que faz precisamente a perfeição da forma esférica.

Estou falando do conto contemporâneo, digamos o que nasce com Edgar Allan Poe, e que se propõe como máquina infalível destinada a cumprir sua missão narrativa com a máxima economia de meios; precisamente, a diferença entre o conto e o que os franceses chamam nouvelle e os anglo-saxões long short story se baseia na implacável corrida contra o relógio que é um conto plenamente realizado: basta pensar em The Cask of Amontillado, Bliss, Las ruínas circulares e The Killers (Poe, Katherine Mansfield, Jorge Luís Borges e Ernest Hemingway). Isto não quer dizer que contos mais extensos não possam ser igualmente perfeitos, mas me parece óbvio que as narrações arquetípicas dos últimos cem anos nasceram de uma impiedosa eliminação de todos os elementos privativos da nouvelle e do romance, os exórdios, os circunlóquios, desenvolvimentos e demais recursos narrativos; se um conto longo de Henry James ou D. H. Lawrence pode ser considerado tão genial como aqueles, será preciso convir que estes autores trabalharam com uma abertura temática e lingüística que de algum modo lhes facilitava o trabalho, enquanto que o sempre assombroso dos contos contra o relógio está no fato de potenciarem vertiginosamente um mínimo de elementos, provando que certas situações ou terrenos narrativos privilegiados podem ser traduzidos numa narrativa de projeções tão vastas como a mais elaborada das nouvelles.

O que segue se baseia parcialmente em experiências pessoais cuja descrição mostrará talvez, digamos a partir do exterior da esfera, algumas das constantes que gravitam num conto deste tipo. Volto ao irmão Quiroga para lembrar que diz: “Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ser uma. A noção de ser uma das personagens se traduz em geral na narrativa em primeira pessoa, que nos situa de roldão num plano interno. Faz muitos anos, em Buenos Aires, Ana María Barrenechea me censurou amistosamente um excesso no uso da primeira pessoa, creio que com relação às narrativas de Las Armas Secretas, embora talvez se tratasse das do Final del juego. Quando lhe fiz ver que havia várias em terceira pessoa, insistiu que não era assim e tive de prová-lo com o livro na mão. Chegamos à hipótese de que talvez a terceira atuasse como uma primeira pessoa disfarçada, e que por isso a memória tendia a homogeneizar monotonamente a série de narrativas do livro.

Nesse momento, ou mais tarde, encontrei uma espécie de explicação pela via contrária, sabendo que quando escrevo um conto busco instintivamente que ele seja de algum modo alheio a mim enquanto demiurgo, que se ponha a viver com uma vida independente, e que o leitor tenha ou possa ter a sensação de que de certo modo está lendo algo que nasceu por si mesmo, em si mesmo e até de si mesmo, em todo caso com a mediação mas jamais com a presença manifesta do demiurgo. Lembrei que sempre me irritaram as narrativas onde as personagens têm de ficar como que à margem, enquanto o narrador explica por sua conta (embora essa conta seja a mera explicação e não suponha interferência demiúrgica) detalhes ou passagens de uma situação a outra. O indício de um grande conto está para mim no que poderíamos chamar a sua autarquia, o fato de que a narrativa se tenha desprendido do autor como uma bolha de sabão do pito de gesso. Embora pareça paradoxal, a narração em primeira pessoa constitui a mais fácil e talvez melhor solução do problema, porque narração e ação são aí uma coisa só. Inclusiva quando se fala de terceiros, quem o faz é parte da ação, está na borbulha e não no pito. Talvez por isso, nas minhas narrativas em terceira pessoa, procurei quase sempre não sair de uma narração stricto sensu, sem essas tomadas de distância que equivalem a um juízo sob, e o que está acontecendo. Parece-me uma vaidade querer intervir num conto com algo mais que com o conto em si.

Isto leva necessariamente à questão da técnica narrativa, entendendo por isto o especial enlace em que se situam o narrador e o narrado. Pessoalmente sempre considerei esse enlace como uma polarização, isto é, se existe a óbvia ponte de uma linguagem indo e de uma vontade de expressão à própria expressão, ao mesmo tempo essa ponte me separa, como escritor, do conto como coisa escrita, a ponto de a narrativa ficar sempre, após a última palavra, na margem oposta. Um verso admirável de Pablo Neruda: Mis criaturas nacen de um largo rechazo [Minhas criaturas nascem de um longo rechaço] parece-me a melhor definição de um processo em que o escrever é de algum modo exorcizar, repelir criaturas invasoras, projetando-as a uma condição que paradoxalmente lhes dá existência universal ao mesmo tempo que as situa no outro extremo da ponte, onde já não está o narrador que soltou a bolha do seu pito de gesso. Talvez seja um exagero afirmar que todo conto breve plenamente realizado, e em especial os contos fantásticos, são produtos neuróticos, pesadelos ou alucinações neutralizadas mediante a objetivação e a transladação a um meio exterior ao terreno neurótico; de toda forma, em qualquer conto breve memorável se percebe essa polarização, como se o autor tivesse querido desprender-se o quanto antes possível e da maneira mais absoluta da sua criatura, exorcizando-a do único modo que lhe é dado fazê-lo: escrevendo-a.

Este traço comum não seria conseguido sem as condições e a atmosfera que acompanha o exorcismo. Pretender livrar-se de criaturas obsedantes à base de mera técnica narrativa pode talvez dar um conto, mas faltando a polarização essencial, a rejeição catártica, o resultado literário será precisamente isso, literário: faltará ao conto a atmosfera que nenhuma análise estilística conseguiria explicar, a aura que pervive na narrativa e possuirá o leitor como havia possuído, no outro extremo da ponte, o autor. Um contista eficaz pode escrever narrativas literariamente válidas, mas se alguma vez tiver passado pela experiência de se livrar de um conto como quem tira de cima de si um bicho, saberá a diferença que há entre possessão e cozinha literária, e por sua vez um bom leitor de contos distinguirá infalivelmente o que vem de um território indefinível e ominoso, e o produto de um mero métier. Talvez o traço diferencial mais marcante — já o assinalei em outro lugar — seja a tensão interna da trama narrativa. De um modo que nenhuma técnica narrativa poderia ensinar ou prover, o grande conto breve condensa a obsessão do bicho, é uma presença alucinante que se instala desde as primeiras frases para fascinar o leitor, fazê-lo perder contato com a desbotada realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora. De um conto assim se sai como de um ato de amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco a pouco com um olhar de surpresa, de lento reconhecimento, muitas vezes de alívio e tantas outras de resignação. O homem que escreveu esse conto passou por uma experiência ainda mais extenuante, porque de sua capacidade de transvasar a obsessão dependia o regresso a condições mais toleráveis; e a tensão do conto nasceu dessa eliminação fulgurante de idéias intermédias, de etapas preparatórias, de toda a retórica literária deliberada, uma vez que estava em jogo uma operação de algum modo fatal que não tolerava perda de tempo; estava ali, e só um tapa podia arrancá-la do pescoço ou da cara. Em todo caso assim me tocou escrever muitos de meus contos; inclusive em alguns, relativamente longos, como Las armas secretas, a angústia onipresente ao longo de um dia todo me obrigou a trabalhar obstinadamente até terminar a narrativa e só então, sem cuidar de relê-lo, descer à rua e caminhar por mim mesmo, sem ser já Pierre, sem ser já Michèle.

Isto permite assegurar que certa gama de contos nasce de um estado de transe, anormal para os cânones da normalidade corrente, e que o autor os escreve enquanto está no que os franceses chamam um état seconde. Que Poe tenha realizado suas melhores narrativas nesse estado — paradoxalmente reserva a frieza racional para a poesia, pelo menos na intenção — prova-o aquém de toda evidência testemunhal o efeito traumático, contagioso e para alguns diabólico de O Coração delator ou de Berenice. Não faltará quem julgue que exagero esta noção de um estado ex-orbitado como o único terreno onde possa nascer um grande conto breve; farei ver que me refiro a narrativas onde o próprio tema contém a “anormalidade”, como os citados de Poe, e que me baseio em minha própria experiência toda vez que me vi obrigado a escrever um conto para evitar algo muito pior. Como descrever a atmosfera que antecede e envolve o ato de escrevê-lo? Se Poe tivesse tido ocasião de falar disso, estas páginas não seriam tentadas, mas ele calou esse círculo do seu inferno e se limitou a convertê-lo em O gato preto ou em Ligéia. Não sei de outros testemunhos que possam ajudar a compreender o processo desencadeador e condicionador de um conto breve digno de lembrança; apelo então para a minha própria situação de contista e vejo um homem relativamente feliz e cotidiano, envolto nas mesmas insignificâncias e dentistas de todo habitante de cidade grande, que lê o jornal e se enamora e vai ao teatro e que de repente, instantaneamente, numa viagem de metrô, num café, num sonho, no escritório enquanto revisa uma tradução duvidosa acerca do analfabetismo na Tanzânia, deixa de ser ele-e-sua-circunstância e sem razão alguma, sem aviso prévio, sem a aura dos epilépticos, sem a crispação que precede as grandes enxaquecas, sem nada que lhe dê tempo para apertar os dentes e respirar fundo, é um conto, uma massa informe sem palavras nem rostos, nem princípio nem fim, mas já um conto, algo que somente pode ser um conto e, além disso, em seguida, imediatamente, Tanzânia pode ir para o diabo porque este homem porá uma folha de papel na máquina e começará a escrever, embora seus chefes e as Nações Unidas em cheio lhe caiam nos ouvidos, embora a sua mulher chame porque a sopa está esfriando, embora ocorram coisas tremendas no mundo e seja preciso escutar as estações de rádio ou tomar banho ou telefonar para os amigos. Lembro-me de uma citação curiosa, creio que de Roger Fry; um menino precocemente dotado para o desenho explicava seu método de composição dizendo: First I think then I draw a line round my think (sic) [primeiro eu penso depois eu desenho uma linha em volta do meu penso (sic)]. No caso destes contos sucede exatamente o contrário: a linha verbal que os desenhará começa sem nenhum think prévio, há como que um enorme coágulo, um bloco total que já é o conto, isso é claríssimo embora nada possa parecer mais obscuro, e precisamente nisso reside a espécie de analogia onírica de signo inverso que há na composição de tais contos, visto que todos nós sonhamos coisas meridianamente claras que, uma vez despertos, eram um coágulo informe, uma massa sem sentido. Sonhamos despertos ao escrever um conto breve? Os limites entre o sonho e a vigília já sabemos: basta perguntar ao filósofo chinês ou à borboleta[1]. De qualquer maneira, se a analogia é evidente, a relação é de signo inverso pelo menos no meu caso, visto que parto do bloco informe e escrevo algo que só então se converte num conto coerente e válido per se. A memória, traumatizada sem dúvida por uma experiência vertiginosa, guarda em detalhes as sensações desses momentos, escrever um conto assim é simultaneamente terrível e maravilhoso, há um desespero exaltante, uma exaltação desesperada; é agora ou nunca, e o temor de que possa ser nunca exacerba o agora, torna-o máquina de escrever correndo a todo o teclado, esquecimento da circunstância, abolição do circundante. E então a massa negra se aclara à medida em que se avança, incrivelmente as coisas são de uma extrema facilidade, como se o conto já estivesse escrito com uma tinta simpática e a gente passasse por cima o pincelzinho que o desperta. Escrever um conto assim não dá nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo ocorreu antes e esse antes, que aconteceu num plano onde “a sinfonia se agita na profundeza” para dizê-lo com Rimbaud, é o que provocou a obsessão, o coágulo abominável que era preciso arrancar em tiras de palavras. E pó isso, porque tudo está decidido numa região que diuturnamente me é alheia, nem sequer o remate do conto apresenta problemas, sei que posso escrever sem me deter, vendo apresentar-se e suceder-se os episódios, e que o desenlace está tão incluído no coágolo inicial como o ponto de partida. Lembro-me da manhã que me caiu em cima Una flor amarilla : o bloco amorfo era a noção do homem que encontra um garoto que se parece com ele e tem a deslumbradora intuição de que somos imortais. Escrevi as primeiras cenas sem a menor vacilação, mas não sabia o que ia ocorrer, ignorava o desenlace da história. Se nesse momento alguém me tivesse interrompido para me dizer: “No final o protagonista vai envenenar Luc”, mas isso chegou como todo o anterior, como a meada que se desnovela à medida que puxamos; a verdade é que em meus contos não há o menor mérito literário, o menor esforço. Se alguns se salvam do esquecimento é porque fui capaz de receber e transmitir sem demasiadas perdas essas latências de uma psique profunda, e o resto é uma certa veteranice para não falsear o mistério, conservá-lo o mais perto possível da sua fonte, com seu tremor original, seu balbucio arquetípico.

O que precede terá posto o leitor na pista: não há diferença genética entre este tipo de contos e a poesia como a entendemos a partir de Baudelaire. Mas se o ato poético me parece uma espécie de magia de segundo grau, tentativa de posse antológica e não já física como na magia propriamente dita, o conto não tem intenções essenciais, não indaga nem transmite um conhecimento ou uma “mensagem”. A gênese do conto e do poema é, contudo, a mesma, nasce de um repentino estranhamento de um deslocar-se que altera o regime “normal” da consciência; num tempo em que as etiquetas e os gêneros cedem a uma estrepitosa bancarrota, não é inútil insistir nessa afinidade que muitos acharão fantasiosa. Minha experiência me diz que, de algum modo, um conto breve como os que procurei caracterizar não tem estrutura de prosa. Cada vez que me tocou revisar a tradução de uma de minhas narrativas (ou de tentar a de outros autores, como alguma vez com Poe) senti até que ponto a eficácia e o sentido do conto dependiam desses valores que dão um caráter específico ao poema e também ao jazz: a tensão;o ritmo; a pulsação interna; o imprevisto dentro de parâmetros ptré-vistos… essa liberdade fatal  que não admite alteração sem uma perda irreparável. Os contos dessa espécie incorporam-se como cicatrizes indeléveis em todo leitor que os mereça: são criaturas vivas, organismos completos, ciclos fechados, e respiram.  Eles respiram, não o narrador, à semelhança dos poemas perduráveis e à diferença de toda prosa encaminhada para transmitir a respiração do narrador, para comunicá-la à maneira de um telefone de palavras. E se perguntarem: Mas então, não há comunicação entre o poeta (contista) e o leitor?, a resposta será óbvia: A comunicação se opera a partir  do poema ou do contista, não por meio deles. E essa comunicação é a que tenta o prosador, de telefone a telefone; o poeta e o narrador urdem criaturas autônomas, objetos de conduta imprevisível, e suas conseqüências ocasionais nos leitores não se diferenciam essencialmente das que têm para o autor, o primeiro a se surpreender com a sua criação, leitor sobressaltado de si mesmo.

Breve coda sobre os contos fantásticos. Primeira observação: o fantástico como nostalgia. Toda suspension of disbelief [suspensão da incredulidade] atua como uma trégua no seco, implacável assédio que o determinismo faz ao homem. Nessa trégua, a nostalgia introduz uma variante na afirmação de Ortega: há homens que em algum momento cessam de ser eles e sua circunstância, há uma hora em que desejamos ser nós mesmos e o inesperado, nós mesmos e o momento em que a porta que antes e depois dá para o saguão se abre lentamente para nos deixar ver o prado onde relincha o unicórnio.

Segunda observação: o fantástico exige um desenvolvimento temporal ordinário. Sua irrupção altera instantaneamente o presente, mas a porta que dá para o saguão foi e será a mesma no passado e no futuro. Só a alteração momentânea dentro da regularidade delata o fantástico, mas é necessário que o excepcional passe a ser também a regra sem deslocar as estruturas ordinárias entre as quais se inseriu. Descobrir numa nuvem o perfil de Beethoven seria inquietante se durasse dez segundos antes de se desfiar e tornar-se fragata ou pomba; o caráter fantástico só se afirmaria no caso de ali continuar o perfil de Beethoven enquanto o resto das nuvens se conduzisse com sua desintencional desordem sempiterna. Na má literatura fantástica, os perfis sobrenaturais costumam ser introduzidos como cunhas instantâneas e efêmeras na sólida massa do habitual; assim, uma senhora que foi premiada com o ódio minucioso do leitor é meritoriamente estrangulada no último minuto graças à mão fantasmal que entra pela chaminé e se vai pela janela sem maiores rodeios, além do que nesses casos o autor se vê obrigado a prover uma “explicação” à base de antepassados ou maléficos malaios. Acrescento que a pior literatura deste gênero é, contudo, a que opta pelo procedimento inverso, isto é, o deslocamento do tempo ordinário por uma espécie de full-time do fantástico, invadindo a quase totalidade do cenário com grande espalhafato de espetáculo sobrenatural, como no batido modelo da casa mal-assombrada onde tudo ressumbra manifestações insólitas, desde que o protagonista faz soar a aldrava das primeiras frases até a janela do sótão onde culmina espasmodicamente a narrativa. Nos dois extremos — insuficiente instalação num ambiente comum, e rejeição quase total deste último — peca-se por impermeabilidade, trabalha-se com materiais heterogêneos momentaneamente vinculados, mas nos quais não há osmose, articulação convincente. O bom leitor sente que nada têm que fazer aí essa mão estranguladora ou esse cavalheiro que em consequência de uma aposta se instala para passar a noite numa tétrica morada. Este tipo de contos que infesta as antologias do gênero lembra a receita de Edward Lear para fabricar um pastel cujo glorioso nome esqueci: pega-se um porco, ata-se o bicho a uma estaca e bate-se nele violentamente, enquanto em outra parte se prepara com diversos ingredientes a massa cujo cozimento só se interrompe para continuar espancando o porco. Se ao cabo de três dias não se tiver conseguido que a massa e o porco formem um todo homogêneo, pode-se considerar que o pastel é um fracasso, em virtude do que se soltará o porco e se atirará a massa ao lixo. É precisamente isso que fazemos com os contos em que não há osmose, onde o fantástico e o habitual se justapõem sem que nasça o pastel que esperávamos comer estremecidamente.

( CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006, p.  227-237)

[1] Referência à anedota de Chuang Tzu, filósofo chinês do séc. III a. C., incluída por Jorge Luís Borges e Adolfo Bioy Casares em sua Antologia da literatura fantástica. Buenos Aires: Sudamericana, 1940.