quinta-feira, 12 de junho de 2014

Escrever














Dois conselhos de Autran Dourado, via Todoprosa

(ah, o texto é do Sergio Rodrigues, autor de "O Drible")

I)Submeta-se à história:

"...Para deixar isso claro puxo um fio do artigo da semana passada: o trecho em que, citando de memória um ensaio da escritora canadense Margaret Atwood, falo da capacidade que tem a literatura de “pintar cenários grandiosos com base em quase nada, a chaminha trêmula de um palito de fósforo passando por grande incêndio”. Quem enfatiza esse mesmo ponto com uma boa tirada é um escritor mineiro que estaria fazendo 88 anos hoje, se não tivesse morrido em 2012: em seu livro “Uma poética de romance” (Rocco), Autran Dourado afirma ser o romancista aquele que “com um tiquinho de pólvora faz uma girândola, com um gritinho apronta um escarcéu”.

A ideia que Autran defende nesse trecho – e em todo o livro, uma reflexão sobre os bastidores da criação que é bastante incomum na literatura brasileira – é a de que, no caso dos romancistas, a linguagem deve estar sempre subordinada ao projeto mais amplo da narrativa. Um escritor não tem que saber por que a pólvora é explosiva, bastando que com um pouquinho dela crie a ilusão de um espetáculo pirotécnico. Se não precisa ser um cientista, tampouco lhe cabe o papel de sábio ou “filósofo”, como diz o autor de “O risco do bordado”. Seu único compromisso é com a obra: “Se o romancista emprega as técnicas das ciências na feitura dos seus personagens e do livro, ele o faz preocupado com a arquitetura, com a estrutura e a mecânica do romance”.

Óbvio? Sim, mas o que sobressai nos ensaios metalinguísticos de Dourado é um traço bem pouco enfatizado nas discussões literárias: a humildade. Não a humildade como ausência de vaidade – algo que seria, vamos admitir logo, praticamente inconcebível no mais franciscano dos escritores –, mas a humildade como reconhecimento de que a narrativa é mais importante, e sabe mais sobre si mesma, do que o próprio autor. “É preciso ter grande modéstia e humildade, a humildade dos criadores”, escreve ele, “para reconhecer a excelência das coisas, a importância mesmo das banalidades, porque o substantivo é banal, ao contrário do adjetivo. A palavra pode ser rara, mas a coisa que ela designa é sempre banal – coisa.”

Desse elogio da banalidade e do respeito quase religioso à autonomia da máquina ficcional, que podem parecer esquisitices talvez datadas, o autor destila uma crítica que me parece de grande utilidade a duas tentações opostas do estilismo: a da linguagem clássica, limpa, “perfeita” (que para Autran teria Machado de Assis como patrono), e a da linguagem bombástica, barroca, rebuscada (elevada à estratosfera por Guimarães Rosa). Ambas, por assim dizer, traem a obra porque apontam para si mesmas. Rosa é tratado com especial severidade, embora o ensaísta se declare seu admirador: “Há em Guimarães Rosa um lado Rui Barbosa, um lado Euclides da Cunha, um lado Coelho Neto…”.""

Texto integral AQUI.

II)Experimente mudar

"
Um dos conselhos literários mais importantes que já recebi – quase tão importante quanto aquele outro, o de desconfiar de todos os conselhos literários – me apareceu quando eu tinha vinte e tantos anos, lendo um artigo de Autran Dourado (citado aqui outro dia) sobre seu método de trabalho. Se a memória não me engana mais do que o habitual, o escritor mineiro revelava, embora não com essas palavras, uma forma de dar vida nova a textos deficientes, insatisfatórios, capengas ou falsos: trocar seu tempo verbal ou a pessoa da narração – ou as duas coisas ao mesmo tempo.

Ainda não era comum escrever em computador naquela época. O truque, se assim podemos chamá-lo, envolvia um bocado de trabalho pesado: rabiscar tudo com caneta era provavelmente o primeiro passo, mas no fim das contas, para ter um resultado apresentável, restava alimentar a máquina de escrever com papel novo e datilografar tudo outra vez. Da primeira à última palavra. Trocando, por exemplo, “fui” e “tinha” por “vou” e “tenho”. Ou por “vai” e “tem”. E “minha” por “sua”. Etc.

É claro que, tendo feito tudo isso, e ainda que a princípio satisfeito com as mudanças, nada impedia o angustiado autor-datilógrafo de se arrepender no dia seguinte. Por alguma razão ainda pouco explicada, a virada da folhinha tem frequentemente essa capacidade de transformar felicidade autoral na frustração mais amarga. E lá iam tempos verbais e pessoas narrativas de volta ao estado de origem, à custa de mais batuque no teclado.

Divertido? Não, deve haver palavra que qualifique melhor esse tipo de exercício. Naquele tempo, a coisa tinha sem dúvida algo de insano, mas a função localizar/substituir do computador, eliminando como por milagre a maior parte do trabalho braçal, tornou forçado falar em insanidade. Hoje é bem mais fácil alterar o sujeito e os tempos verbais de uma narrativa, mesmo que ela seja um romance de 500 páginas. Claro que ajustes ainda precisam ser feitos manualmente, em flexões e tal, mas é indiscutível que o texto se tornou mais plástico, o caminho entre a cabeça e a página encurtou, a vida ficou mais confortável.

(...)

Sim, é possível que o problema de uma narrativa seja outro e que ela continue a mesma porcaria quando mudamos a narração da primeira para a terceira pessoa. Mesmo em tal caso, porém, o exercício não terá sido em vão. A razão disso é diabolicamente simples: ao brincar com o ponto de vista e o tempo verbal – a voz narrativa, em suma – estamos nada menos do que penetrando o coração dessa brincadeira, tomando posse daquilo que torna a literatura, literatura. Cervantes inventou o romance moderno quando inventou a voz maluca, autoconsciente, de D. Quixote. O resto veio depois.
 "


Texto integral AQUI.