quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Escrever





Escrever

(de Francisco Bosco, retirado de seu livro Alta Ajuda)




Volta e meia sou interpelado por essas duas perguntas fundamentais: por que e para quem escrever?
Ler nos dá instrumentos para admirar o mundo, para conhecê-lo de modo mais penetrante, complexo, tornando-o por isso, mais interessante. As coisas não têm um valor por si mesmas; é preciso ter força de percepção para lhes atribuir valor, para enxergar nelas a beleza, a grandeza, a profundidade. Ler nos propicia uma percepção das coisas na qual se possa fundar a admiração. E um mundo admirado, por sua vez, é um mundo erotizado. Isso quanto a ler. Mas e escrever? 
Aqui a resposta já não é tão evidente.
Para começar, trata-se de uma atividade que sofre de certo mal-estar quanto a seu reconhecimento social. Todo escritor tem a súbita revelação desse fato ao preencher a ficha de registro no check-in de um hotel: o que colocar no campo “profissão”? Escrever não é bem uma profissão sob muitos aspectos: não exige o aprendizado de uma técnica (e sim sua invenção), não torna evidente o domínio (a não ser para os leitores que saibam reconhecê-la), nem tampouco é evidente a necessidade social dessa técnica (sua importância é a princípio existencial, e só indiretamente social: oferecer aos cidadãos instrumentos para o desenvolvimento de sua capacidade de criticar e admirar). Por tudo isto, tal técnica é quase sempre mal remunerada.
De uma perspectiva pragmática, portanto, não é de estranhar que os escritores sempre se vejam diante da pergunta “por que escrever?” Sua resposta deve ser buscada em outro âmbito.

No belo ensaio “Genius”, Giorgio Agamben afirma: “escrevemos para nos tornarmos impessoais”. O que isso quer dizer? Segundo o filósofo italiano, cada sujeito é formado por duas dimensões, uma pessoal, outra impessoal. A pessoal é o eu, a autoimagem, a identidade; o que em nós é constituído, sabido, reconhecido. A parte impessoal é o que, “em nós, nos supera e excede”, é o que nos revela “que nós somos mais e menos do que nós mesmos”, é uma zona de “não conhecimento” em nós mesmos. Essa impessoalidade constitutiva de toda pessoa, Agamben argumenta que ela é chamada desde a Antiguidade latina de “Genius”, de onde vem nosso “gênio”.
Genial, assim é essa passagem aberta, dentro de cada pessoa, à impessoalidade. Quando alguém está dançando, o corpo lançado ao sentido da música, o eu esquecido de si mesmo – esse alguém está na dimensão impessoal, está “genial”. Quando se faz uso de uma droga, de um alterador de consciência, e se sente o eu distanciar-se, a identidade enfraquecer-se, cedendo lugar a outro registro – isso é “genial”. Ora a criação artística exige uma passagem do eu a esse outro que o habita, a seu gênio (as Musas, evocadas pelos poetas antigos, são outro modo de entender essa exterioridade que nos inspira). Daí que, na língua corrente, genial tenha se associado, sobretudo, à figura do artista. A genialidade define um modo de vida em que o eu se disponibiliza a desconhecer-se: “Viver com Genius significa viver na intimidade de um ser estranho, manter-se constantemente a uma zona de não conhecimento”.
É por isto que se escreve, ou, ao menos, é por isso que escrevo: para transcender os limites tediosos, neuróticos do meu eu. Se há uma saúde em escrever (que sobre outros aspectos parece ser uma prática doentia), ela está aí, no sair de si. É uma forma de limpeza do eu. Sobre esta passagem à alteridade, deixo soarem os versos de Antonio Cícero: “ Não se entra no país das maravilhas/ pois ele fica do lado de fora,/ não do lado de dentro. Se há saídas/ que dão nele, estão certamente à orla/ iridescente do meu pensamento,/ jamais no centro vago do meu eu."

Falta-nos responder à segunda pergunta: para quem escrever? Gosto sempre de lembrar, a boutade de Tom Zé: “Toda vez que ouço falar em público-alvo me abaixo, com medo de levar um tiro”. Não é por acaso que essa expressão pertence ao campo da publicidade. As coisas não são tão puras quanto alguns teóricos creem, e sob certos aspectos a publicidade pode se aproximar da arte. Mas quando se fala em “público-alvo” a diferença é enorme. Um alvo é aquilo que se deve, primeiro, identificar, marcar, para depois atingir. A publicidade está interessada, portanto, na parte do sujeito que é o eu: ela mira o que, no sujeito (ou consumidor), é identificável, o que se pode saber sobre ele, sobre seu desejo, para lhe oferecer o que ele espera. A publicidade, assim, diz respeito ao que o sujeito é. A arte (como o pensamento) está interessada no que o sujeito pode ser.
Ora, todo mundo, potencialmente, pode ser o que não é. Todo mundo pode ampliar-se, desconhecer-se, para reconhecer-se maior. Deve-se escrever mirando essa negatividade, isto é, procurando uma linguagem que ativará nas pessoas o que elas não são. É é por isso que qualquer grande escritor, apesar dos equívocos pseudodemocratas, escreve para todos.








(Cabe lembrar que não concordamos necessariamente com o que está escrito)

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