domingo, 16 de dezembro de 2012

Atados












chegou impetuoso, arma em punho. só assim os encararia de novo. ainda estavam vivos pelo corpo, os sulcos das navalhadas. lanhando. os olhos sempre vermelhos. mais vermelhos que da última vez, menos intensos que da próxima. era assim o único jeito de encará-los. chegar perto o bastante pra não ser percebido, e se infiltrar em seus delírios. arreganhou os dentes. jamais estaria acuado de novo. olhou cada um dos metafísicos, e ardeu em paz. era ali que estaria hoje, e sempre.
a mulher delirava. manchava o espaço com poesia e fumaça de cigarro. isso antes de mudar sua voz. antes. corria seminua, fosse inverno ou verão. respeitava sua origem alemã, trepava e suspirava espanhola. era uma vestal. avó e vestal. dominava o ar à sua volta, só falava o necessário e metia a porrada com força. amava e batia. derrubava e derretia. se houvesse um dos metafísicos menos agressivo, certamente não era ela. a única coisa que a deixava vulnerável era uma caixa revestida de couro, que levava pendurada no pescoço e onde guardava não só seus vibradores, mas também um estojo ainda menor, no qual carregava uma coleção de vozes e ocasiões, que misturava com algum psicotrópico.
o mais enigmático dos metafísicos, era também o menos visível. seu maior dom o fazia sumir por meses. alguns diziam ser coisas do espírito, retiros, chás da amazônia. mas todos nós sabíamos que ele procurava nas coxas, e também nas bundas de suas vítimas, a fatia perfeita, a mais precisa do universo. o certo é que ele não viesse mais por ter encontrado em seu corpo aquilo que caçara há anos em suas vítimas, e como não pararia até repetir o feito um milhão de vezes bem sucedidas, estava já sem os músculos das pernas.
mal se fechou na toalha em que as pessoas limpavam gorduras, derrubavam vinho ou assoavam o nariz, e o silêncio parecia o fim do gozo. esperou alguns minutos, suando. e quando o tecido estava prestes a se desfazer sob sua bunda, pôs a cabeça pra fora e foi beijado por uma criatura de óculos que falava e cheirava a sexo. limpou a boca com os pelos do antebraço, maiores do que seus dedos e olhou em volta. estava num quarto onde as paredes eram de veludo vermelho, algemas, chicotes e anões pelados. ele e a criatura, agora lambendo seu pescoço e cortando palavras do jornal para que depois de contadas, ela as enviasse em cartas cheias de paus, peitos, estocadas, lambidas, bucetinhas e pentelhos ralos. um arrepio e era ele transformado no próprio pau, latejando, trocando cartas sobre uma guerra que não venceria, com a criatura que despertava tesão com suas palavras. estava ficando chapado com o cheiro de mil gozos. era bom. foi mordido nos lábios, sangrou de excitação e fechou os olhos naquela dor, quando abriu era um dinossauro que agora baforava vapores e quilômetros de cabos de fibra ótica e luzes de led em sua cara.
estava em uma caverna, uma toca que tinha no fundo uma luz azulada proveniente da parede feita de monitores, todos conectados em interfaces interplanetárias, blogs de um minuto e em sites de putaria. o dinossauro vivia bem, embora sua biblioteca sufocasse olhos desacostumados. antes era bem maior – o dinossauro ajeitando os óculos e coçando a bunda com uma parafernália que ficava presa em sua boca e lembrava uma caneta. daí ela foi diminuindo na medida em que fui comendo os exemplares e na medida em que os carteiros deixaram de vir, o dinossauro tomando uma gelada e oferecendo a mama a um cara de jaleco branco que lhe tirava os vermes das costas, e comia o que sobrou entre seus dentes. no lado oposto à parede de monitores, bem na entrada, tinha uma sombra que ameaçava entrar, mas não se decidia. era outro metafísico, exigindo impaciente pela espera.
 esse tinha asas e ameaçava voar a qualquer minuto, de sua boca, quando ele tossia, ou sorria, escorriam amazonas, dragões e muitos magos. seu porte real, sua altura e força eram marcas de tantas lutas escondidas, ou não, sob tatames e em seu passado. mas já não era esse o seu tempo e embora ele pudesse matar com três movimentos – sua santíssima trindade –, preferia mil palavras a qualquer tipo de movimento, já que agora era o mais novo filho da terra de todos os santos. tinha aparecido pra voar comigo, pra mostrar o mundo lá do alto. eu confiava nele, sabia que não me deixaria cair. no caminho me contava lendas de tesouro e magia e disse que a essa altura, só pousaríamos em segurança quando chegássemos às planícies do rei.
 antes do nosso destino final, os olhos ainda seriam enganados duas vezes. só assim a jornada seria entendida. por nós dois. mesmo os metafísicos, já sofreram, sofrem, ou sofrerão, de abstinência de sentido. e quando um mar inteiro deixou de lado o azul, pra transformar suas ondas em leite e fazer brilhante um ponto escuro, uma ilha, um lugar fechado a códigos e regras do contrário. entrei sozinho no palácio que era um clarão, visto de fora. e por dentro era a primeira noite antes das estrelas. as portas eram todas de espuma por fora, e por dentro crivadas de pregos. assim era todo o primeiro pavimento, que se dividia em duas metades quase iguais. onde havia piscinas, certamente eram de óleo quente, onde o tapete era mais felpudo, no final era ainda um bicho vivo, um tigre, um gigolô, um herói de quadrinho banda b; no segundo piso, tudo o que parecia uma coisa era, na verdade, uma versão pornográfica dela mesma e depois ela mesma não era a mesma coisa pornográfica e logo voltava a ser aquilo que nunca tinha sido pois era exatamente oposta a ela mesma, como uma moeda girando antes de cair. um grupo de seis velhos em suspensórios, boinas e calças no meio da bunda, davam bengaladas em tudo o que se movesse a menos de um metro de distância, e cuspiam, e se abraçavam com saudade, e já não era eles mesmo escorregando na própria baba, nem reclamando dos tempos, ou peidando sem perceber, tudo o que havia era os soldados de coturnos-paetês com lâminas nas pontas, suando em tiras de couro que se espalhavam estrategicamente por onde os olhos pousariam, a única coisa de fora eram seus paus enormes que eles seguravam feito uma bengala, enquanto dividiam o mesmo suor, entre os vasos de porcelana, nos parapeitos da janelas, se segurando nas cortinas vermelhas, ou cavalgando algum móvel, e na frente do garoto com enxaqueca/um velho com gases de alegria, que achava tudo tão divertido que seu sorriso parecia eterno/que achava que todas as pessoas deviam explodir ao som daquelas gargalhadas falsas de programas de auditório, gozando/gozando com a orgia/reunião do clube de bocha que seus súditos involuntários/escravos livres se esforçavam/se esfregavam pra fazer parecer/pra fuder pra valer uma revista em quadrinhos para adultos/como num filme pornô sobre prostitutos. era um ambiente adorável e muito bem decorado. entretanto fui embora quando ele autorizou que eu subisse ao terceiro pavimento.
o metafísico alado tinha deixado um bilhete dizendo: fui ali. volto já. guardei na cueca e entrei no primeiro vaporetto que passou e logo estava desembarcando em uma rua extremamente movimentada, cheia de prédios pontiagudos, botecos, travestis, lojas de artigos pra putas, putas, e um exu que vigiava tudo em silêncio, onde todos falavam uma língua diferente, cheia de rr e de alguma coisa que podia muito bem ser raiva, não fosse pelo calor que emanava de cada coisa que se movia. e todas elas eram exatamente o mesmo rosto moreno, de cabelo curto e preto, cavanhaque de resolver conflitos violentos, olhos de dobermann prestes a atacar, e um abraço de urso que derretia os cubos de gelo e transformava-os na cerveja que era consumida ali pelas tantas, pelas putas, pelos bêbados, pelos padres e, principalmente, pelos tradutores responsáveis por estabelecer contato com os outros povos, fossem eles hostis e assustados, ou não. mesmo sem entender nada do que diziam e me assustando cada vez mais com o que ouvia, tinha um carinho de ficar, uma vontade, mas não dava, atrás do bilhete tinha um p.s.: como sempre, o rei está cansado de te esperar. vai logo, porra!
ao sair daquela rua e do frio que lembrava alguma parte da europa, entrou na primeira casa com cara de comercial de margarina, cercas brancas, meia dúzia de porcos nos fundos, e um galo trepando na cerca. queria morder aquele lugar, devorar cada clichê sem medo da dor-de-barriga, sem medo de ser feliz. e tinha os olhos do menino, sete ou oito anos, grudados no copo de leite sobre a mesa, como uma cadeira de cinema, e o diretor dizendo espera, espera, espera, vai agora!, e o moleque, depois de ver as ondinhas no copo, o tremelique do suco da vaca, disparava pra janela e contando os palhaços de perna de pau contra a luz do sol da manhã, ouvia uma musiquinha igual aquela caixinha da sua vozinha, de repente todo estrondo de um claquete, e o som engordando, suando e bufando seus ãos, seus foms, e uééínnnss, e então nada mais. o garoto com o pijama do flash gordon carregava nos olhos um dispositivo semelhante a uma câmera de trinta e cinco milímetros com bateria o bastante para filmar apenas um coisa do circo inteiro, algo que há anos tinha imaginado para um filme e nunca conseguia autorização de rodar. mesmo naquela vez que disparou atrás do bundão gigante e a dona clotilde, que tinha um dispositivo semelhante na língua, fez o favor de avisar às autoridades sobre as más intenções do garoto que nem tinha escovado os dentes ainda, ou sequer tinha alimentado os porcos do quintal. além de filmar, o dispositivo tinha um sensor e disparava exatamente quando era a vez do paquiderme, seu fedor de muito estrume e aquele bundão, pra sempre registrado nos olhos do garoto que havia anos sonhava em fazer um filme erótico sobre bundas de elefantes, e agora ia esfolar o pinto para comemorar a conquista. quando notou que estava sendo observado, o garoto falou com sua voz que mais parecia vapor e silêncio, só assim viverei em paz. então, com lágrimas nos olhos, deixei seu sorriso de metafísico. logo chegaria ao meu destino.
***
nas planícies do rei
cada fala era um êxtase, e sol sempre se punha às três da tarde, minutos depois dele acordar e sorrir pro ocaso na janela de vidro fumê, e pro casaco de pele humana sobre as costas da cadeira, indiferente à cinta-liga feita de lâminas de barbear, que ele usava sob a saia, dividindo o saco e o pinto ao meio, combinando com a coroa, e antes, só um pouquinho antes, do trono que carregava colado na bunda. o rei falava com a certeza de quem sofre o tempo inteiro e com a gravidade dos shakespearianos. sabia de todas as coisas que faria antes de morrer, era pai de dois seres intergalácticos, que o escolheram como hospedeiro das suas intenções de dominação da existência. e tudo isso estava expresso em seus gestos e nos tons pastéis que o cercavam. o rei vivia às margens de um rio de águas turvas, naquilo que parecia ser uma choupana com cobertura de palha, fogueira no oitão, e uma cobrinha de fumaça saindo da janela de moldura branca e cruz no centro, e na verdade era um bunker coberto de fios de eletricidade, cabos de rede, de antenas, de computadores, servidores maníacos, e todo tipo de aparelho que o conectasse à sua rede internacional de banheiros, espalhados nos quatro cantos do planeta. do lado de fora, no lugar de árvores havia o conforto de uma privada, e dos arbustos floriam os mais diversos tipos de papel, com cheiros, cores, comestíveis, pra desenhar, pra escrever, além dos favoritos, feitos com hidratante. não havia cores ali, pelo menos não do jeito que o rei imaginava o lugar. na sua visão, tudo seria um eterno nanquim, ou então, uma penumbra, vazada apenas por uma luz que desenhava extraordinariamente bem os rostos de pessoas ordinárias, imbuídas em orgias galopantes, de mulheres escancaradas, lambuzando-se em caralhos latejantemente poderosos, que faziam às vezes de controle remoto, colheres, desodorantes, garrafinhas, batons, e tudo mais que coubesse em seus orifícios, todo fetiche era tão banal quanto assuar o nariz, ou limpar a bunda, e os gogo-boys, que delícia, declamando pessoa, byron, espanca, morissey, bruno e marrone , e também o wando, que sem ele ninguém geme. e o rei sorria. mijava de rir, eternamente rindo, com sua capa do super-homem e sua imensa vontade de ter um pica tão grande quanto a do batman. mas nada disso existia. comandava uma divisão do paraíso e tudo não passava de literatura e intenção. na verdade, e não era segredo pra ninguém, o rei reportava-se estritamente à estrela de onde vieram os dois seres intergalácticos que o escolheram como pai humano. ante a figura do metafísico mais respeitado, senhor dos veículos por onde a insanidade dos outros seria vomitada, e também dono de uma voz de dar tesão em coroinha, parou e fez a única pergunta que seu estado mental e os duendes azuis lhe permitiam.
vossa majestade sabe por que vim?






(por Tiago Araújo. Imagem de um destes tumbrls da vida)

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