quarta-feira, 19 de outubro de 2011




Um lapso de razão



Eu sou é doido. É por isso que eu como cocô. Porque o cocô sai de mim e eu não quero que ele saia. Eu não tenha nada que é meu, só o cocô, então eu quero que ele fique dentro de mim e, quando o cocô sai, eu como ele de novo que é pra ele não ir embora e eu não ficar pobre. O pessoal não quer que eu coma cocô, mas eu vou comer o cocô sim porque o cocô é meu. Eu não pego o cocô de ninguém pra comer, mas o meu cocô é meu e eu como ele na hora que eu quiser e se alguém vem pra roubar o meu cocô eu fico muito nervoso. É por isso que eu sou doido. Quando eu fico nervoso, aí eu que eu como mais cocô mesmo. Aí eu como até o cocô do meu cachorro, que também é doido porque ele também come cocô. Pego meu cachorro, dou um pouco do meu cocô e ele me dá um pouco do cocô dele. É troca. Todo mundo que como cocô é doido ou então é criança. Criança também é doido, porque criança pequena come cocô que eu já vi. Quando eu tinha uns filhos eu via eles comendo cocô e eu não comia. Eu não comia nada antes, só trabalhava. Mas aí, quando eu comecei a comer cocô, fiquei doido igual criança. É bom, porque doido não precisa trabalhar e não precisa ter filhos que come cocô porque não tem outra coisa pra comer, porque quando a gente trabalha não pode comer cocô e fica também sem nada pra comer. É melhor não fazer nada e comer cocô do que trabalhar e não comer nada. O pessoal que passa tenta me tirar daqui porque eu sou doido e como cocô. Eles falam que eu não posso comer cocô porque quem come cocô é doido e eu sou doido mesmo e vou continuar comendo cocô. Se eles me levarem pra outro lugar, eu vou comer cocô do mesmo jeito, porque o meu cocô não acaba nunca, porque cocô é sempre cocô e não precisa nem cozinhar. Se me botarem na cadeia, eu vou comer cocô, se me mandarem de novo pro hospício, eu vou comer cocô. No hospício, todo mundo come cocô porque lá todo mundo é doido. É bom também comer cocô porque não precisa limpar a rua. Eu como o cocô todo e o chão não fica sujo de cocô e o pessoal não rouba o meu cocô que eu já comi e nem bate em mim porque eu sujo a rua com o meu cocô. O pessoal, os porteiros, acham que o meu cocô é sujo, mas é mentira. O meu cocô é muito mais gostoso do que o cocô dos doido lá do hospício, porque eu só como cocô. Um cocô vira outro cocô, que vira outro cocô, que vira outro cocô e por aí vai. Então, o meu cocô vai ficando cada vez mais limpo porque não é cocô de comida estragada. É cocô puro. Eu sei que isso é coisa de doido, isso de comer cocô. Mas eu não sou ladrão, não sou maconheiro, não sou mendigo. Eu sou é doido. Eu pareço mendigo, mas é só pro pessoal deixar eu comer cocô em paz. Se eu falar pro pessoal que eu sou doido, aí eles vão querer fazer tratamento em mim pra eu parar de comer cocô. Eles dão uma remédio que faz a gente não ter mais vontade de comer cocô. Aí, a gente fica parado, sem vontade de fazer nada e continua doido, só que sem vontade de comer cocô. Só de pensar nisso eu já fico nervoso, com vontade de comer cocô. Só que agora eu não to com vontade de fazer cocô e o meu cachorro sumiu, senão eu comia o cocô dele. Só que o meu cocô é muito melhor do que o cocô do meu cachorro. É porque eu sou doido. Meu cachorro, não. Meu cachorro é mais é criança que come cocô sem ser doido. Ou é doido também, criança? Cachorro. Eu não sei. Eu não sei se eu comia cocô antes, quando eu era criança. Eu não lembro. Mas depois, quando eu não era mais criança, eu não comia cocô. Eu comia marmita que a minha mulher fazia. Era uma marmita pequena. Aí eu comecei a comer cocô e ficar doido e sem trabalhar e a minha mulher me mandou embora pra mim não comer cocô na frente de uns filhos que eu tinha e que comiam cocô igual doido. Sem ser doido, só criança que é normal comer cocô de vez em quando. Eu não. Eu sou é doido.

(André Sant´anna. Publicado em "Sexo e Amizade", Cia das Letras. Fonte do texto AQUI)

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