sexta-feira, 30 de setembro de 2011

street view




o medo


Baixaram uma lei proibindo os animais no circo. Não houve um clamor público em favor da classe dos domadores, nem mesmo defenderam os mansos, que, sem lugar para viver, foram encaminhados a zoológicos pelo interior ou abandonados em terrenos baldios e quintais, elefantes, macacos, ursos, tigres e leões revirando lixo. Apenas os cavalos tiveram melhor sorte e foram encaminhados ao circuito de Rodeios, este devidamente defendido por Deputados Distritais da Associação de Peões e Vaqueiros do Centro-Oeste.

O circo bem que tentou sobreviver com os equilibristas, os malabaristas, trapezistas, palhaços, a mulher gorda, o mágico e todos os demais heróis do entretenimento mambembe. Porém, o Ministério do Lazer e Diversões só oficializou um cenário que há muito se insinuava. Observem: primeiro, a Mulher Gorda mereceu a visita do Associação de Defesa dos Ampliados Horizontalmente. Em seguida, os Anões foram levados pelo Grupo de Assistência dos Portadores do Nanismo (Apelidados, que ninguém nos ouça, de Confederação dos Jogadores de Pebolim). Os malabaristas barrados por não terem registro na Ordem Federal dos Malabaristas. Os contorcionistas emigraram para outros países, mais flexíveis no Código de Segurança no Trabalho. Inclusive os palhaços... Desistiram de romper a barreira dos displays luminosos nas mãos da pequena plateia a brincar com joguinhos coloridos. Foram deixando o circo, à medida que passavam em concursos públicos ou assumiam cargos eletivos.

Restou uma família de equilibristas. Esticaram uma corda entre dois paus na praça da rodoviária e se apresentavam ali. Não havia lona e se arriscavam sob as ventanias e a teimosia dos pombos que ali descansavam. Durava uns cinco minutos e só. O menino recolhia moedas numa cartola velha.

Hoje não estão mais lá. Não se sabe bem o que rolou, apareceu o marido da outra, puxou a arma e disparou lá em cima. O pai caiu que nem passarinho. A mãe largou a vida de artista e lava e passa para pagar a educação dos filhos, que vivem sozinho no barraco perto do rio.

O filho tem medo de sair de casa. Ele diz que o mundo virou corda bamba.



(B.Baruq)



(Imagem DAQUI, de Jon Rafman, um artista que coletou fotos do Google Street View. Explicações AQUI)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Ai




Ai miserável de mim e infeliz!
Apurar, ó céus, pretendo,
já que me tratais assim,
que delito cometi
contra vós outros, nascendo;
que, se nasci, já entendo
qual delito hei cometido:
bastante causa há servido
vossa justiça e rigor,
pois que o delito maior
do homem é ter nascido.
E só quisera saber,
para apurar males meus
deixando de parte, ó céus,
o delito de nascer,
em que vos pude ofender
por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram,
que privilégios tiveram
como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças
que lhe dão beleza suma,
apenas é flor de pluma,
ou ramalhete com asas,
quando as etéreas plagas
corta com velocidade,
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pele
que desenham manchas belas,
apenas signo é de estrelas
graças ao douto pincel,
quando atrevida e cruel,
a humana necessidade
lhe ensina a ter crueldade,
monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto,
tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira,
aborto de ovas e lamas,
e apenas baixel de escamas
por sobre as ondas se mira,
quando a toda a parte gira,
num medir da imensidade
co'a tanta capacidade
que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio,
tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra
que entre as flores se desata,
e apenas, serpe de prata,
por entre as flores se desdobra,
já, cantor, celebra a obra
da natura em piedade
que lhe dá a majestade
do campo aberto à descida:
só eu que tenho mais vida,
tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão
um vulcão, um Etna feito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão,
nega aos homens - ó céu grave!
privilégio tão suave,
exceção tão principal,
que Deus a deu a um cristal,
ao peixe, à fera, e a uma ave?

MONÓLOGO DE SEGISMUNDO
(LA VIDA ES SUEÑO, Ato I, Cena I)

de Pedro Calderón de la Barca

(Poesia via Quarto do Desejo, vídeo com trecho do filme "Tempos de Paz", graças ao Bode)