terça-feira, 22 de novembro de 2011

nº14: Desconcerto






O altofalante emite dois toques anunciando a voz do condutor da composição. Próxima estação, tal.

(João escuta música em seus fones de ouvido)



O trem é um modelo dos anos 70, logo será substituído por um destes novos, com televisão, ar condicionado e mais espaço para se espremer em pé. Do escuro do túnel chegam rangidos de freios, soa doloroso, o peso das toneladas sobre os trilhos emite estrondos, passadas de gigante, marteladas. Todos ao redor adultos urbanos civilizados, indiferentes à canção grotesca cotidiana.

(João está concentrado no setlist. Agora é Life on Mars, Bowie)



Na tal estação, moedas tilintam pelo chão e interrompem Maria por um momento, até que outros auxiliem a senhora diante da bilheteria. Ela continua seu caminho, passa pela catraca, também um modelo antigo, logo trocarão por outro tipo, mais difícil de burlar. A borboleta gira com força, bate ao final de sua volta com uma pancada surda. Maria pisa sobre o degrau da escada rolante, o corrimão de borracha corre – literalmente – criando um murmúrio próprio. Dentro da máquina, as engrenagens batem em um ritmo cardíaco. Ela desce os degraus, apressada, escuta a aproximação do trem e não quer perdê-lo.
(Maria não usa fones)



Porém ainda há outro lance para vencer e não dará tempo. Pois quem estava na plataforma já ouviu. Ouviu o silêncio do túnel se cobrir pelo sopro das correntes empurradas pela composição, ouviu o vento velejando nas orelhas, a brisa sugerindo horizontes e mares na memória e não tumbas de concreto. Depois escutou o trinado da linha na promessa do trem, o grito histérico das rodas, a passagem cadenciada dos vagões em baixa velocidade, assovios, suspiros e chiados, água fria jogada em chapa quente, e as portas automáticas se abrem, ao correr rodopiante de carretilhas ocultas.

(João desembarca. Agora é Tocando em Frente, Almir Sater, quase acabando)



As pessoas viajam em seus mundinhos particulares, não escutam os passos dos passageiros, pequenas conversas, um choro de bebê, um espirro mais ali. A multidão reduz velocidade quando se aglomera diante da escadaria, as solas dos pés chiam no chão aguardando sua vez de subí-la. E chiam novamente sobre os degraus, cada qual em seu compasso, mas ao ouvido soa um único chocalho calmo.
(Maria gosta de música, como todo mundo, mas não a todo momento)



Ela para de correr, um pouco porque o trem embaixo já emitiu o sinal de fechamento das portas, outro tanto porque os passageiros se esparramam a frente e eliminam qualquer chance de corrida. Maria conforma-se, mas bufa um muxoxo entre lamento e revolta. Desce um novo lance de escada rolante, e distrai-se com o rebanho em passo de marcha mansa, quase uma invasão tranquila avançando sobre a escadaria ao lado. Maria observa João, seu rosto lhe é familiar, mas o contexto errado atrapalha o reconhecimento.
(João, por sua vez, está em Save Tonight, Eagle Eye Cherry e os acordes transportam a ele e a seu humor para outro patamar, se ele tivesse pedais, aceleraria saltaria nuvens)



Maria se recorda de João, tempos de colégio, namoros imaginados que nunca se realizaram, e lhe pareceu um sinal, um sinal de como as coisas deveriam ser.

(Pois, algo, para ser especial, precisa ser raro)



Ela se volta e grita “João, João”, mas ele segue reto, sem olhar para trás, embalado na canção. Maria ficou parada ao pé da escada vendo-o subir, cogita uma outra tentativa, suportando a mistura de vergonha e humilhação.

(Mas o sentimento ainda seria pior se ela se soubesse trocada pelo Eagle Eye Cherry, um reles irmão de Neneh Cherry, um nome bisonho como Olho de Águia Cereja, um sueco que fez duas ou três músicas que prestam, mas que jamais será o Abba, alguém tão vendido que tocou até no Big Brother Brasil. Porém, poderia ser outro: Asa de Águia, Brahms, Cole Porter ou a Mona Lisa, que pessoa, carne-pêlos-osso-vagina, quer ser trocada por este tipo de abstração?)



Maria desiste, está atrasada para a audição e, afinal, são outros tempos. Tempos de ir em frente.

(Antes era agora ou nunca, anote agora meu número, fique, não se vá, antes era "Sinal Fechado" ou "A Lista" agora é o que estiver no MP3 ou simplesmente “Que se dane, depois passo um recado no Orkut”.


Ou no Facebook: os tempos continuam mudando.)










(foto: escada do Convento de Cristo (Tomar))

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Zodíaco

agosto a setembro



“O ser humano não enlouquece pelas guerras, catástrofes, desastres, epidemias; o cadarço que arrebenta todo dia na hora de amarrar os sapatos isto sim enlouquece o ser humano.”, disse certa vez um grande homem[1].

Quem respira sabe, para viver é necessário inspiração. Empenhei a vida na confecção de um cadarço resistente. Cadarço ou atacador, nada mais que uma forma simplificada de corda. A corda, nada mais que um rolo de fibras. As fibras, nada mais que materiais muito finos e alongados. Estes fios numa trança transversal e longitudinal, de forma a criar força através de sua reunião. Suas pontas podem ser chamadas de pontas- de-cadarço, ponteiras, aguilhas, agulhetas, uroboleta, unhas-dos-fios, rabos-de-capeta.

Estudei os fios e os fiapos, o cabo de aço e a teia de aranha. Investiguei a biologia do sisal e do algodão, e o método pelo qual os povos pré-colombianos teciam seus mantos. Da Amazônia, trouxe pés de cipoeira-brava, de liana-vermelha, figueira de sete caudas, plantei-os em vasos do meu apartamento. Pelo meu quarto voejam borboletas e mariposas nascidos em minha coleção de casulos de seda. Na mesa da cozinha, experimentei os diversos nós possíveis e os encadeamentos pelos buracos, a quantidade adequada de buracos, cheguei a 118 formas de entrelaçar, das quais selecionei 25, entre elas o nó direto, o francês, o corrediço, o zigue-zague americano, a volta do fiel, o ostromo e o górdio. Na área de serviço, criei amostras caseiras de polímeros, do poliéster, da poliamida, da policarbamida, do poliuretano elastomérico. Descobri casualmente a decomposição das diaminas pelos raios ultravioleta quando esqueci as fibras no varal. Cheguei perto, muito perto.

O grande homem envelheceu. Agora aposentado, caminhava todo final de tarde pelo calçadão. Faz bem ao coração; para a cabeça, faz bem olhar a bundinha geralmente inalcançável das adolescentes. Ele sentado no banco parecia um senhor comum. Fazia frio naquela tarde, a praia meio deserta, e eu me aproximei reverente. O grande homem continuava sendo grande, mesmo velho, gordo, acomodado e pelancudo, mesmo na esperada ausência de grandeza. Contei-lhe meu projeto, como me inspirara, como me dera um objetivo.

O grande (velho, gordo, acomodado e pelancudo) homem riu. Primeiro, lembrou que as pessoas têm forças e disposições diferentes; aquilo que era resistente para uma, não seria para todas. Segundo, de que valeria um cadarço indestrutível se não o fossem os aros por onde ele se entrelaça ou as ponteiras que os reúnem? Terceiro, o custo de um atacador inquebrantável jamais poderia ser superior ao do próprio sapato. Quarto, e aqueles que andam de chinelos e enlouquecem ao se soltar as tiras? Quinto, criaram o velcro e hoje o homem enlouquece por não mais se arrebentarem os cadarços. Escutei tudo com atenção. Até ele terminar, o sol havia se posto e as ondas batiam nas pedras. Era dia de semana, estava frio. Eu o estrangulei com meu protótipo. Conforme esperado, funcionou à contento.





In virgine mulieres et fugitivi et compediti
Em Virgem, as mulheres, os fugitivos e aqueles que têm os pés atados

(39, 10) Satiricon, Petronius
[2]


[1] Se não me engano, a frase original é do Bukowski

[2] Este conto não teria sido construído sem o generoso auxílio do google

segunda-feira, 31 de outubro de 2011





"melhor comentário = my penis is confused"

quarta-feira, 19 de outubro de 2011




Um lapso de razão



Eu sou é doido. É por isso que eu como cocô. Porque o cocô sai de mim e eu não quero que ele saia. Eu não tenha nada que é meu, só o cocô, então eu quero que ele fique dentro de mim e, quando o cocô sai, eu como ele de novo que é pra ele não ir embora e eu não ficar pobre. O pessoal não quer que eu coma cocô, mas eu vou comer o cocô sim porque o cocô é meu. Eu não pego o cocô de ninguém pra comer, mas o meu cocô é meu e eu como ele na hora que eu quiser e se alguém vem pra roubar o meu cocô eu fico muito nervoso. É por isso que eu sou doido. Quando eu fico nervoso, aí eu que eu como mais cocô mesmo. Aí eu como até o cocô do meu cachorro, que também é doido porque ele também come cocô. Pego meu cachorro, dou um pouco do meu cocô e ele me dá um pouco do cocô dele. É troca. Todo mundo que como cocô é doido ou então é criança. Criança também é doido, porque criança pequena come cocô que eu já vi. Quando eu tinha uns filhos eu via eles comendo cocô e eu não comia. Eu não comia nada antes, só trabalhava. Mas aí, quando eu comecei a comer cocô, fiquei doido igual criança. É bom, porque doido não precisa trabalhar e não precisa ter filhos que come cocô porque não tem outra coisa pra comer, porque quando a gente trabalha não pode comer cocô e fica também sem nada pra comer. É melhor não fazer nada e comer cocô do que trabalhar e não comer nada. O pessoal que passa tenta me tirar daqui porque eu sou doido e como cocô. Eles falam que eu não posso comer cocô porque quem come cocô é doido e eu sou doido mesmo e vou continuar comendo cocô. Se eles me levarem pra outro lugar, eu vou comer cocô do mesmo jeito, porque o meu cocô não acaba nunca, porque cocô é sempre cocô e não precisa nem cozinhar. Se me botarem na cadeia, eu vou comer cocô, se me mandarem de novo pro hospício, eu vou comer cocô. No hospício, todo mundo come cocô porque lá todo mundo é doido. É bom também comer cocô porque não precisa limpar a rua. Eu como o cocô todo e o chão não fica sujo de cocô e o pessoal não rouba o meu cocô que eu já comi e nem bate em mim porque eu sujo a rua com o meu cocô. O pessoal, os porteiros, acham que o meu cocô é sujo, mas é mentira. O meu cocô é muito mais gostoso do que o cocô dos doido lá do hospício, porque eu só como cocô. Um cocô vira outro cocô, que vira outro cocô, que vira outro cocô e por aí vai. Então, o meu cocô vai ficando cada vez mais limpo porque não é cocô de comida estragada. É cocô puro. Eu sei que isso é coisa de doido, isso de comer cocô. Mas eu não sou ladrão, não sou maconheiro, não sou mendigo. Eu sou é doido. Eu pareço mendigo, mas é só pro pessoal deixar eu comer cocô em paz. Se eu falar pro pessoal que eu sou doido, aí eles vão querer fazer tratamento em mim pra eu parar de comer cocô. Eles dão uma remédio que faz a gente não ter mais vontade de comer cocô. Aí, a gente fica parado, sem vontade de fazer nada e continua doido, só que sem vontade de comer cocô. Só de pensar nisso eu já fico nervoso, com vontade de comer cocô. Só que agora eu não to com vontade de fazer cocô e o meu cachorro sumiu, senão eu comia o cocô dele. Só que o meu cocô é muito melhor do que o cocô do meu cachorro. É porque eu sou doido. Meu cachorro, não. Meu cachorro é mais é criança que come cocô sem ser doido. Ou é doido também, criança? Cachorro. Eu não sei. Eu não sei se eu comia cocô antes, quando eu era criança. Eu não lembro. Mas depois, quando eu não era mais criança, eu não comia cocô. Eu comia marmita que a minha mulher fazia. Era uma marmita pequena. Aí eu comecei a comer cocô e ficar doido e sem trabalhar e a minha mulher me mandou embora pra mim não comer cocô na frente de uns filhos que eu tinha e que comiam cocô igual doido. Sem ser doido, só criança que é normal comer cocô de vez em quando. Eu não. Eu sou é doido.

(André Sant´anna. Publicado em "Sexo e Amizade", Cia das Letras. Fonte do texto AQUI)

domingo, 9 de outubro de 2011

29ª JORNADA DE PSICANÁLISE: O CORPO E SUAS DIFERENTES ABORDAGENS

http://ocorpoesuasdiferentesabordagens.blogspot.com/



Realizaremos neste ano de 2011, a 29ª Jornada de Psicanálise do Instituto Tempos Modernos, cujo título será "O corpo e suas diferentes abordagens".

A jornada será realizada nos dias 20 e 21 de outubro (quinta e sexta-feira, respectivamente) na Faculdade de Psicologia da Universidade São Judas Tadeu, situada na Rua Taquari, 546 - Moóca - São Paulo/SP.


O evento terá ENTRADA FRANCA e VAGAS LIMITADAS.

Serão entregues certificados aos que tiverem interesse.

20/10/2011 – Quinta-feira (10:00h às 17:00h)

10:00h - Abertura
Susana Amalia Palacios, Presidente do ITM
Carla Witler, Coord. da Faculdade de Psicologia São Judas Tadeu

10:30h às 12:00h – O corpo na velhice
- Marília Viana Berzins, Assistente Social, Dra. em Saúde Pública, Especialista e Mestre em Gerontologia, São Paulo
- Dr.Paulo Paiva Baisi, Especialista em Geriatria, Pós-Graduando em Psiquiatria, São Paulo
- Neusa Lais Coelho, Psicanalista, Niterói – RJ
Coordenação: Ana Carlênia Oliveira, Psicanalista, São Paulo

12:15h às 13:15h – Almoço

13:30h às 15:20h - O corpo e suas diferentes abordagens
- Regina Teixeira, Psiquiatra e Psicanalista, São Paulo
- Diogo Bogea, Filósofo, Niterói – RJ
- Patricia Delboux, Psicanalista, São Paulo
- Dulci N. Fonseca Vagenas, Dra. em Genética Humana, São Paulo
Coordenação: Ana Carlênia Oliveira, Psicanalista, São Paulo

15:35h às 17:05h - O corpo na infância e na adolescência
- Andreneide Dantas, Psicanalista São Paulo
- Eliane Amaral,Presidente do Instituto Mensageiros, São Paulo
- Maria Helena Seibt, Psicanalista, São Paulo
Coordenação: Maria Emília Toigo, Psicanalista, São Paulo



21/10/2011 – Sexta-feira (13:00h às 21:00h)

13:15h às 14:45h - O corpo na arte, na medicina e na psicanálise
- Juan Manuel Urbinati, Psicólogo, São Paulo
- Rosane Aubin, Psicanalista, São Paulo
- Lucio Artioli, Psicanalista, São Paulo
Coordenação: Ana Carlênia Oliveira, Psicanalista, São Paulo

15:00h às 16:30h - O corpo e suas marcas
- Déborah Maluf, Psicanalista, São Paulo
- Elza Calôba, Psicanalista, Rio de Janeiro
- Suzana Nolasco, Psicanalista, Rio de Janeiro
Coordenação: Maria Emília Toigo, Psicanalista, São Paulo

16:45h às 17:15h - Intervalo

17:30h às 19:00h - O corpo e seus padecimentos
- Sérgio Braghini, Psicanalista, São Paulo
- Ana Zabala, Psicanalista, Buenos Aires
- Ricardo Eduardo Delfino, Psicanalista, Rio de Janeiro
Coordenação: Ana Carlênia Oliveira, Psicanalista, São Paulo

19:15h às 20:45h - O corpo na espiral de nossa época.
- Mariana Leal de Barros, Dra. em Antropologia e Psicologia, São Paulo
- Fabiola Ferrari, Psiquiatra, Rio de Janeiro
- Susana Amalia Palacios, Psicanalista, Rio de Janeiro e São Paulo
Coordenação: Andreneide Dantas, Psicanalista, São Paulo

ORGANIZAÇÃO: DENIZE MULLER, Joana Darc Salgado Rodrigues, Andreneide Dantas e Suzana Palácios

domingo, 2 de outubro de 2011

nº 12: Gif





Um relógio tremelicava seus ponteiros. Um homem na bilheteria deixara cair moedas. Os centavos desapareciam no voo antes do chão, e então tudo, moedas e homem regressavam a posição anterior. Uma senhora ajeitava continuamente os óculos perante o mapa ao redor da estação. Outro teclava um número infinito no aparelho celular. Um casal, o homem de boné levava a bolsa das fraldas e mamadeiras, a mulher de cabelo preso, carregava com cuidado um bebê em um cobertor de pelinho. Aproximei-me para ver se os bebês daquele tempo eram parecidos com os nossos. Achamos engraçado, eram cabeludos e despenteados. Um dos novos divertia-se numa parede, tentava pichar o próprio nome sobre o concreto, mas o próprio tempo se encarregava de apagar suas marcas, deixando-a sempre lisa, como estava entre aqueles centésimos de segundos.

O professor nos chamou. Mal prestávamos atenção nele, ainda fascinados com aquele sítio paleocivilizado, nem precisávamos, poderíamos baixar aquela aula numa outra hora, isto contaria deméritos no final do ciclo, mas tudo bem, quem quer ouvir explicações? Era nossa primeira excursão. Inicialmente, nos relembrou porque nosso passeio seria impraticável em um momento cravado, em um segundo congelado: seríamos incapazes de se movimentar ou respirar, a atmosfera e suas moléculas não abririam espaço para nossa presença. A escuridão seria total, pois nossos olhos precisam dos fótons refletidos continuamente sobre as retinas. Precisávamos perambular entre aqueles instantes, o que fazia as pessoas se mexerem naquela dança boba, entre um passo e outro, dizendo e desdizendo, inspirando e expirando. E continuou com outros detalhes chatos que só iríamos utilizar se nos tornássemos engenheiros de crononavegação ou compiladores historiográficos. E quem quer penar com salário mixaria...?

-Valendo pontos: alguém arriscaria um palpite para determinar QUANDO estamos? – perguntou o professor à classe. A bagunça parou, ficamos quietos, olhando para os pés. Apenas o mais bajulador dentre nós, o queridinho do Professor, sugeriu que (pelo material e pela ausência de sol) estávamos em um abrigo antinuclear das Guerras Aquíferas ou numa estação de transporte coletivo. O professor sorriu e completou sua resposta, realmente uma estação de transporte de trens METRO-politanos, do latim metrópole, que por sua vez, veio da junção de duas palavras gregas métra, que significa matriz, útero, ventre e pólis, cidade.

-De certa forma, é por isto que estamos aqui.

Descemos as escadas. Este pedia que não mexêssemos nas pessoas, embaladas naquele tempo dobrado. Era tentador e, esquecendo ou desencanando da constante filmagem de nosso comportamento, levantamos as saias de uma mulher, como quem levanta e baixa uma cortina. O gordo, sempre pensando em comida, chegou perto de outro mastigando algo. Insistiu mas não conseguiu arrancar o pão de queijo da mão daquele. Difícil não se divertir com aqueles estranhos e seus movimentos ridículos e repetitivos. Talvez, no fluxo normal dos segundos, aquilo fosse suave e discreto, mas para nós eram pulsos frenéticos de alguém eletrocutado. Não sei se eram feios ou bonitos. Eram esquisitos.


Antes da plataforma e da composição, havia uma escadaria, separada por uma mureta. De um lado, degraus metálicos; d´outro, paleoconcreto. Demoramos a entender que uma delas se movia. Descemos pela maior até um homem. Ele também aprisionado entre instantes, mas aparentava serenidade. Seus gestos não eram abruptos, talvez fosse esta a explicação. O rapaz estava em pé, apenas sua cabeça se movia acompanhava a moça. Depois da mureta, indo em sentido contrário, estava uma mulher. O olhar dos dois movia-se ligeiramente e de novo e de novo e de novo. Deveria ser um tique enervante como o dos demais. Mas não era.

O professor nos explicou que neste dia eles se conheceram. Que nos momentos seguintes, ele correria atrás dela e conversariam. Que as pessoas ainda se reproduziam e não eram como nós, dependentes dos bancos paleogenômicos. Bancos que começaram a ser desenvolvidos naquele tempo de pouca radiação. Que ela tinha um problema físico que os obrigou a fazer inseminação artificial. Que naquele tempo, ao contrário do nosso, o clima era ameno e o ar respirável. Nossos cromossomos vieram dali, daqueles improváveis Adão e Eva. Éramos todos irmãos, filhos daquele sangue antigo, daqueles nossos velhos jovens pais, os pais de todos os clones e iríamos repovoar o planeta.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

street view




o medo


Baixaram uma lei proibindo os animais no circo. Não houve um clamor público em favor da classe dos domadores, nem mesmo defenderam os mansos, que, sem lugar para viver, foram encaminhados a zoológicos pelo interior ou abandonados em terrenos baldios e quintais, elefantes, macacos, ursos, tigres e leões revirando lixo. Apenas os cavalos tiveram melhor sorte e foram encaminhados ao circuito de Rodeios, este devidamente defendido por Deputados Distritais da Associação de Peões e Vaqueiros do Centro-Oeste.

O circo bem que tentou sobreviver com os equilibristas, os malabaristas, trapezistas, palhaços, a mulher gorda, o mágico e todos os demais heróis do entretenimento mambembe. Porém, o Ministério do Lazer e Diversões só oficializou um cenário que há muito se insinuava. Observem: primeiro, a Mulher Gorda mereceu a visita do Associação de Defesa dos Ampliados Horizontalmente. Em seguida, os Anões foram levados pelo Grupo de Assistência dos Portadores do Nanismo (Apelidados, que ninguém nos ouça, de Confederação dos Jogadores de Pebolim). Os malabaristas barrados por não terem registro na Ordem Federal dos Malabaristas. Os contorcionistas emigraram para outros países, mais flexíveis no Código de Segurança no Trabalho. Inclusive os palhaços... Desistiram de romper a barreira dos displays luminosos nas mãos da pequena plateia a brincar com joguinhos coloridos. Foram deixando o circo, à medida que passavam em concursos públicos ou assumiam cargos eletivos.

Restou uma família de equilibristas. Esticaram uma corda entre dois paus na praça da rodoviária e se apresentavam ali. Não havia lona e se arriscavam sob as ventanias e a teimosia dos pombos que ali descansavam. Durava uns cinco minutos e só. O menino recolhia moedas numa cartola velha.

Hoje não estão mais lá. Não se sabe bem o que rolou, apareceu o marido da outra, puxou a arma e disparou lá em cima. O pai caiu que nem passarinho. A mãe largou a vida de artista e lava e passa para pagar a educação dos filhos, que vivem sozinho no barraco perto do rio.

O filho tem medo de sair de casa. Ele diz que o mundo virou corda bamba.



(B.Baruq)



(Imagem DAQUI, de Jon Rafman, um artista que coletou fotos do Google Street View. Explicações AQUI)

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Ai




Ai miserável de mim e infeliz!
Apurar, ó céus, pretendo,
já que me tratais assim,
que delito cometi
contra vós outros, nascendo;
que, se nasci, já entendo
qual delito hei cometido:
bastante causa há servido
vossa justiça e rigor,
pois que o delito maior
do homem é ter nascido.
E só quisera saber,
para apurar males meus
deixando de parte, ó céus,
o delito de nascer,
em que vos pude ofender
por me castigardes mais?
Não nasceram os demais?
Pois se eles também nasceram,
que privilégios tiveram
como eu não gozei jamais?
Nasce a ave, e com as graças
que lhe dão beleza suma,
apenas é flor de pluma,
ou ramalhete com asas,
quando as etéreas plagas
corta com velocidade,
negando-se à piedade
do ninho que deixa em calma:
só eu, que tenho mais alma,
tenho menos liberdade?
Nasce a fera, e com a pele
que desenham manchas belas,
apenas signo é de estrelas
graças ao douto pincel,
quando atrevida e cruel,
a humana necessidade
lhe ensina a ter crueldade,
monstro de seu labirinto:
só eu, com melhor instinto,
tenho menos liberdade?
Nasce o peixe, e não respira,
aborto de ovas e lamas,
e apenas baixel de escamas
por sobre as ondas se mira,
quando a toda a parte gira,
num medir da imensidade
co'a tanta capacidade
que lhe dá o centro frio:
só eu, com mais alvedrio,
tenho menos liberdade?
Nasce o arroio, uma cobra
que entre as flores se desata,
e apenas, serpe de prata,
por entre as flores se desdobra,
já, cantor, celebra a obra
da natura em piedade
que lhe dá a majestade
do campo aberto à descida:
só eu que tenho mais vida,
tenho menos liberdade?
Em chegando a esta paixão
um vulcão, um Etna feito,
quisera arrancar do peito
pedaços do coração.
Que lei, justiça, ou razão,
nega aos homens - ó céu grave!
privilégio tão suave,
exceção tão principal,
que Deus a deu a um cristal,
ao peixe, à fera, e a uma ave?

MONÓLOGO DE SEGISMUNDO
(LA VIDA ES SUEÑO, Ato I, Cena I)

de Pedro Calderón de la Barca

(Poesia via Quarto do Desejo, vídeo com trecho do filme "Tempos de Paz", graças ao Bode)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

street view





- Alô! Sapataria Agret? Você fazem entrega em domicílio?







(Imagem DAQUI, de Jon Rafman, um artista que coletou fotos do Google Street View. Explicações AQUI)

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Άθλοι του Ηρακλή [ATUALIZADO]


Σ) Recrie os personagens da Turma da Mônica.
Ϸ) Crie um novo mutante estilo X-Men.
Ω) Crie uma Zerografia.
Ξ) Recrie a história do Bebê Diabo.
Θ) Crie um encontro numa escadaria.
Ψ) Crie baseado num flagrante pitoresco do Google Street View.
β) Enriqueça nosso Bestiário com um espécime.
Ϛ) Confesse um testemunho particular.
π) Crie algo para seu signo do Zodíaco.
δ) Desmonte a retórica do cético.
Ϛ) Seja convidado para uma das nossas reuniões.
α) Compareça e registre uma ata.

[ATUALIZAÇÃO 2012]



כּ) Desvende o mistério do Faráo da Cantareira.
ט) Escreva um mês de cartas.
ק) Mate o Papai Noel.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

¿Qué sé yo?

Si al menos me lo hubieran explicado
Que la maternidad era un dolor, un desafío
Habría yo podido amarte sólo un poquito.

Y quizás evitaríamos ser violentados
Por este inmenso exilio todos los días.
Evitado el ir y venir de sí eterno, denso y solitario.

Porque digo yo a vos y al mundo,
pero ni sólo por un segundo,
traducen el amor, el horror y la locura de tenerte de mi alejado.

Psiu!







Calem a boca.
É uma ordem.
Profetizem.
É a morte.
Inocentes,
tangem dor.
Calem a boca,
por favor.
Parem.
Deixe-me, sim Senhor, não Senhor.
E a dor, e a dor, e a dor.

domingo, 21 de agosto de 2011




Um pensamento deve ter convicção e dúvida. A dúvida alarga, a convicção erige; aquela é o eixo horizontal, esta o eixo vertical. A propósito, uma fórmula: a convicção é igual à certeza menos a verdade (c = C - V).

Francisco Bosco (2003)



(imagem de Nicholas di Genova)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Churrascata, camisata e ata de alcachofra.




O tempo de vida útil da bunda é de dez anos. Disso ninguém duvida. O que se faz com ela nesse período é o que determina o quão brilhante e confortável vai ser o futuro. Se souber usar com sabedoria, pode até se aposentar em grande estilo e passar o resto dos dias numa casinha à beira mar, com um cachorro, um periquito que come na mão e quem sabe até um sagüi que vem todas as manhãs mordiscar as frutinhas que crescem no pomar. Portanto, conclui-se que mostrar (leia-se usar) a bunda é muito melhor do que escrever e, muito provavelmente, é melhor do que ser aeroportuária também. A única profissão que pode gerar alguma dúvida ante essa afirmação, máxima do mundo moderno e de todos os ulteriores, é a de engenharia civil. Pois lá estão os mais cheirosos. Fato. Nem mesmo um dinossauro poderia discordar disso. ´

Aproveitando o ensejo pré-histórico, sempre é tempo de dar vez aos que, mesmo distantes, vem nos visitar bienalmente e, verdade seja dita, mostram a competência que os fazem estar entre nós. Não, na verdade não. Esquece tudo isso agora. E tenta se lembrar daquele dia de um certo novembro, ou outubro, há três anos atrás, e de repente surgirá como mágica uma foto de dez pessoas sentadas em uma mesa, de um café qualquer em São Paulo. Não é nada disso que interessa. Pois as dez já foram três, quatro, seis, oito, nove, dez de novo e flutua como uma sacola de mercado em vendaval. Mas isso também não é verdade. Não é como quando se quinze anos e tudo o que importa é se comer em escadarias, em bancos de metrô, calçadas de escola ou até mesmo dentro das mochilas que raras vezes viram a cara dos professores. O que também pode ser mentira se comparado a uma orgia de elefantes albinos e anões do norte da índia, os mais raros e mais sagrados entre todos os animais que fazem orgia (logo, são os mais sagrados de TODOS os animais…). Aceite o açoite. Não é impossível. Aliás, dormir aos quinze anos e acordar com trinta, pode ser muito mais salutar do que passar por todos os anos que até Jesus fez questão de esconder. E isso, não duvide, é Verdade Verdadeira. Mesmo encabulado, mesmo sem ritmo e etc, aceite, é esse o maior de todos os poderes de uma liga de heróis que seriam mais bem compreendidos como querubins que se digladiam com foices e em círculo.

O fato mais estranho nem sempre é uma nova cara. Talvez o mais estranho do que cara de cíntia-aeroportuária, (sabe?), seja a presença dos malditos (recém-batizados assim, pela nova era) e a forma como se relacionam com suas mandiocas (ou seria a mandioca de um só?), suas batatas e líquidos gasosos com um final que coça até os pelos do cú, mas nunca o céu da boca ou o nariz. Também é estranho ver que a preocupação dos malditos não se resume às referências culinárias. Eles gritam por silêncio. Pelo silêncio da voz do Dinho Ouro Preto. Enquanto param para ouvir uns aos outros em um frenesi digno das brigas na casa da vizinha que apanha do marido bate nos filhos chuta a cadela xinga os crentes manda a vendedora da avon tomar no cu sua puta solta a cadela pra morder o cara que corta a luz o cara que corta a água e também o filho do vizinho que pula o muro pra pegar a bola. Enquanto se escutam, são analisados e analisam por aquilo escrevem. Nem desconfiam que são escritos, viram páginas e mais páginas, por aquilo que juram escrever … Mesmo que seja em mensagem de celular para os entes não presentes, mesmo que seja pintando com merda as paredes do banheiro de uma churrascaria. Sádicos. Os malditos são sádicos. (Ou seriam fálicos?).

E o que ninguém sabe, mas aponta com veemência é o fato de que todos são viciados por suas próprias teorias sobre bunda, açoites, rampas de bagagem, fantasmas escritores, cinema, super-heróis, sertralina, rivotril e sopa. E também por chocolate. E por segundas intenções que só serão conhecidas pelos que cruzarem a porta, as portas e, em futuro próximo, os portões. Nem adianta mostrar o símbolo do Batman tatuado nas costas (até mesmo porquê a tatuagem se perde no ato de levantar a camisa…), nem abrir os botões da frente pra mostrar uma alcachofra, rosa-avermelhada, tatuada bem no meio dos peitos: todos cruzarão os portões. Todos vão para a mesma eternidade. Mas nenhum deles quer ser eterno.


(T.Araújo)

quinta-feira, 11 de agosto de 2011


A goteira na pia insiste. Terceira ou quarta geração de torneira só essa semana, mas é como se a água estivesse afiada, um britadeira infinita que não descansa. Fico pensando se quando saio ela vai dormir, juntar energias para minha volta. Ele está voltando, ele está voltando! Há um resmungo na pia, irritada pelo martelar, mas que parece diminuir quando chego perto. No quarto, no entanto, é como se a pia gritasse a cada ribombar. Por que as torneiras não tem o bico direcionado ao ralo? Seria uma ideia excelente, ao menos iria goela abaixo e se o encanamento ficasse engasgado logo eu enterrava a pia, tinha motivo para tapar o buraco da torneira. Olhe o tamanho da minha barriga, quando foi que ela começou a crescer? Pareço um conjunto anexo a ela, como se ela me carregasse. De lado a gordura se espalha pela cama, seu umbigo fica olhando o cachorro deitado no tapete com a orelha branca tremelicando ao toque da brisa morna que a janela insiste em deixar entrar. Odeio dormir a tarde, é um sono enlameado, mas é o único momento em que o barulho de fora, da vizinha que acredita que sabe cantar, dos caminhões na avenida lá longe e dos moleques jogando bola na rua quase consegue abafar os zurros da água.

sábado, 30 de julho de 2011

street view





14 anos.

Que se foda o rasgo na meia. Daqui dois meses eu compro outra. Minha sorte é ter sobrevivido. Até agora.


(P.Rissatti)



(Imagem DAQUI, de Jon Rafman, um artista que coletou fotos do Google Street View. Explicações AQUI)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Lobo Filho


Frases de Antonio Lobo Filho pinçadas na FLIP2009 pelo Cronópios


“Um livro é um organismo vivo”.

“Você tem que tornar a sua mão feliz. Se a sua mão for feliz, o livro sai”.

“Quando decido escrever um livro penso nele como sendo o livro que não serei capaz de escrever”.

“Tem que se escrever cada vez mais no osso”.

“Não há profundidade. Há infinitas superfícies”.

“Os melhores tradutores de ficção são os poetas”.

“Todo grande livro é uma reflexão profunda sobre a arte de escrever”.

“Tenho uma relação mais complicada com a prosa. Começo a ler e tenho vontade de corrigir”.

“É o livro que tem que ser inteligente e não o autor”.

“Quando estou escrevendo profundamente tenho a impressão que alguém está ditando”.

“Eu penso que é o nome do leitor que deveria estar na capa do livro e não o do autor porque é o leitor que completa o jogo literário com a leitura”.

“Eu escrevo um livro para corrigir o anterior”.

“Será que um livro esta acabado ou definitivamente inacabado?”

“Não é o autor que acaba o livro. É o livro que decide se livrar do autor”.

“Eu particularmente gosto dos livros grandes. O livro tem as páginas que ele quer e não as que nós queremos”.

“Gosto muito dos livros de Garcia Márquez, mas não gostaria de tê-los escritos”.

“Jorge Amado era um homem muito melhor do que os livros dele”.

“Certa vez perguntei a João Ubaldo Ribeiro: Que preguiça é essa, João! Por que você não escreve mais? E ele me respondeu: Eu escrevo sim. Meu pseudônimo é Antônio Lobo Antunes”!

sexta-feira, 8 de julho de 2011

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Neurônio Adormecido







- Oi! Por favor, onde fica a Rubem Berta?
- Eh... Ru-bem Ber-ta?
- Isso!
- Você tá querendo ir pra Rubem Berta?
- Exato.
- E você quer ir daqui pra lá?
- É óbvio.
- Bom, a Rubem Berta...
- Sim!
- Eu não conheço, não.

Ricardo Delfin

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Cheirata





Acomodados confortavelmente nos assentos da neutralidade dos odores, dispuseram à mesa as carreiras dos cheiros das palavras. A grande noite dos aromas teve início com a doce e alva fragrância loira de decote. Puro sexo em pó aspirado com fome por uns, com admiração por outros... mas teve quem preferiu esperar pela próxima carreirinha, aquela de chocolate, um prazer menor por apenas R$ 6,50. A terceira carreira entrou de surpresa rasgando o nariz de todo mundo, um cheiro de bode e puteiro com buceta suja lá no finalzinho. Todos amaram esse perfume, que na verdade era de saudade. A quarta era uma carreira que levou três anos para ser sintetizada. Masculina, de voz de cigarro com pinga, um pouco de madeira e perfume caro e original. Foi criada para sobrepor os odores de concreto mas, no entanto, teve como fins a fertilidade interestadual, a canção de ninar e o tesão por palhaços de cabelo vermelho. Alucinados, acabaram a noite em uma longa viagem por motéis sem sexo e cidades distantes.


(F.)


(Imagem: Smell ++ por James Auger. Um vídeo AQUI)

quinta-feira, 30 de junho de 2011

street view





Azul de pincel

Árvores de plástico
na praia artificial
e um sol constrangido

paraiso liquido
sopra pro oeste aquela
alegria de mentira



(L.Fuentes)



(Imagem DAQUI, de Jon Rafman, um artista que coletou fotos do Google Street View. Explicações AQUI)

domingo, 26 de junho de 2011



.
Abra suas asas

Solte suas feras
Caia na gandaia
Entre nessa festa
E leve com você
Seu sonho mais louco
Eu quero ver seu corpo
Lindo, leve e solto
A gente às vezes
Sente, sofre, dança
Sem querer dançar
Na nossa festa vale tudo
Vale ser alguém como eu
Como você
Abra suas asas
Solte suas feras
Caia na gandaia
Entre nessa festa
E leve com você
Seu sonho mais louco
Eu quero ver seu corpo
Lindo, leve e solto
A gente às vezes
Sente, sofre, dança
Sem querer dançar
Na nossa festa vale tudo
Vale ser alguém como eu
Como você
Dance bem
Dance mal
Dance sem parar
Dance bem
Dance até
Sem saber dançar
Dance bem
Dance mal
Dance sem parar
Dance bem
Dance até
Sem saber dançar
Abra suas asas
Solte suas feras
Caia na gandaia
Entre nessa festa
E leve com você
Seu sonho mais louco
Eu quero ver seu corpo
Lindo, leve e solto
A gente às vezes
Sente, sofre, dança
Sem querer dançar
Na nossa festa vale tudo
Vale ser alguém como eu
Como você
A gente às vezes
Sente, sofre, dança
Sem querer dançar
Na nossa festa vale tudo
Vale ser alguém como eu
Como você
Dance bem
Dance mal
Dance sem parar
Dance bem
Dance até
Sem saber dançar
Dance bem
Dance mal
Dance sem parar
Dance bem
Dance até
Sem saber dançar

Enxoval para o Bebê Diabo




Como bem se sabe, o Diabo fugiu para o Nordeste há muitos anos e desde então mora lá. Casou com Auxiliadora e teve cinco crianças e duas criaturas: Berenice, Beladona, Benjamin, Belzébio, Belatrix, Belizário, Belano. Foi aniversário dele estes dias (O Diabo só poderia ser de Touro ou de Capricórnio), apesar da idade, fez uma festinha, mais pelas crianças mais novas. Teve bolinho, uns salgadinhos, umas garrafas de Cerpa, umas doses de Pitú. O sogro trouxe uísque. Chovia e só vieram uns amigos mais chegados. Os filhos ficaram jogando Playstation com uns joguinhos piratas. O Diabo falava muito quando criança, até inglês ou latim se atrevia. Mas, conforme os anos passaram, ele foi ficando mais e mais calado.

Dia seguinte, despediu-se de Auxiliadora. Explicou o motivo. Ela entendeu e começou a chorar. Ele disse onde estava o dinheiro e deu a senha da conta do banco. Auxiliadora foi fazer um último café e ele foi despedir-se dos filhos. Dormiam todos no mesmo quarto. Só Berenice acordou e aproveitou isto para abraçá-lo bem apertado. Ela nem reclamou do enxofre.

Era madrugada ainda e ele caminhou em direção a estrada. O céu abria-se em laranja, o mundo aqui embaixo coberto de sombra. Um vira-lata foi latir para ele, tombou morto em seguida e sem explicação.

A bandidada corria solto naqueles sertões e os ônibus agora só vinham em comboio para se protegerem. Havia empresa que contratava até uns jagunços para acompanhar durante aquela parte do percurso. O Diabo estava sozinho no acostamento, fez sinal para os ônibus que pararam um atrás do outro. Ele se perdeu um pouco, procurando aquele que ia para São Paulo. Pagou direto ao motorista, o Diabo nem precisava ser telepata para ler seus pensamentos: piadas de cornos. Sentou-se, colocou os foninhos e ficou ouvindo Asa de Águia.

O Diabo voltava para São Paulo, ia visitar a mãe pela última vez antes do fim do mundo.


Segundo o Notícias Populares, em 1977 nascia em São Paulo, o Bebê Diabo. Detalhes AQUI.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Enxoval para o Bebê Diabo





Somos animais que lambem uns as genitálias dos outros e eu querendo dar uma lição de moral na criatura, só porque ele tinha torturado e humilhado o amiguinho. Fui teorizando sobre a igualdade, sobre a tolerância, sobre o advogado do pai do moleque ser um dos melhores do país e eu nem tenho dinheiro para pagar a escola, mas aquele verme ficava olhando para mim sem querer entender. O moleque é viado, viado pai! Ele é judeu e viado! Metido, se acha o macho, se acha o escolhido. Eu tentava explicar que não era assim, que não podíamos deixar o sangue ferver só porque o outro não se encaixava na nossa fórmula, porque não se ajoelha diante de nossa superioridade. Os tempos são outros, outros. E o diabo do menino nada, emburrado, circunscrito em sua certeza de que tem inseto que deve ser pisado antes que se alastre. E eu olhava para o teto, aquilo era um anátema, as palavras rareando diante da possibilidade de me foder mais e mais por conta daquela mola de insultos, daquele possuído. Olhe, preste atenção, tem coisa que não pode, você está entendendo, não pode! Ele riu com o canto do lábio, quem é você pra falar. Poderia dizer, seu pai, mas somos animais que lambem as genitálias uns dos outros... Arranquei sua cabeça, corrigindo o erro da concepção, sem alguém para ser processado não havia como me complicar. Agora entendo porque Ele morreu, filho é de matar, é de foder. Nunca mais, essas crianças são os demônios.



Segundo o Notícias Populares, em 1977 nascia em São Paulo, o Bebê Diabo. Detalhes AQUI.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

nicho


"Refugiou-se num beco quieto para se fazer apresentável. As roupas que havia conseguido agarrar antes de fugir eram uma confusão só, mas serviram para evitar que ele atraísse uma atenção indesejável. Enquanto abotoava as calças - o corpo parecia tenso como ressentido por estar oculto - tentou controlar o holocausto que trovejava entre suas orelhas. Mas as chamas não cediam. Cada fibra sua parecia viva ao fluxo do mundo ao seu redor. As árvores ao longo da estrada, a parede às suas costas, as próprias pedras do calçamento sob seus pés descalços lhe atiçavam fagulhas e queimavam agora com fogo próprio. Ele sorriu ao ver a conflagração se espalhar. O mundo, em cada detalhe ansioso, sorriu de volta.

Excitado além do controle, virou-se para a parede contra a qual se apoiara. O sol havia caído por completo sobre ela, e estava quente: os tijolos cheiravam maravilhosamente. Depositou beijos em suas faces terrosas, as mãos explorando cada reentrância. Murmurando besteiras adocicadas, baixou o zíper, encontrou um nicho confortável e o preencheu. Sua mente corria com imagens líquidas: anatomias misturadas, femininas e masculinas em um único indistinguível congresso. Acima dele, mesmo as nuvens haviam pegado fogo; enfeitiçado por suas cabeças em chamas, ele sentiu o momento elevar-se em sua excitação. A respiração era rápida agora. Mas o êxtase? Certamente continuaria para sempre."


A Idade do Desejo (conto), Clive Barker,




(Imagem Parede do Amor, Verona.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Enxoval para o Bebê Diabo





Teve os chifres e o rabo retirados cirurgicamente no nascimento. Com os signos da maldade assim extirpados, estava livre para "demonizar" o mundo completamente camuflado. Ainda garoto, adentrava cultos evangélicos para provocar orgasmos em fiéis a cada grito de “aleluia”, colaborando assim para a incluir a congregação cristã da nova era no Guinnes Book pelos 3478 gritos de “Aleluia” durante as 3 hs de culto (nenhuma citação foi feita sobre o esperma que corria pelas pernas dos fiéis de sexo masculino). Já adulto, divertia-se em brincar com os fluidos corporais - porra, mijo, sangue – em lugares sagrados – igrejas, santuários, salões. Estudou para ser pastor e fundou a igreja “SEMENte da Salvação”, cujos templos eram verdadeiros parques aquáticos de uma água viscosa e esbranquiçada que faz bem para a pele. Atraiu milhares de seguidores, que doavam todas suas economias, velhos, deficientes, anões, albinos, ciganos, judeus, todos gritando “aleluia! aleluia!”, mergulhados num mar artificial da mais pura quente e aconchegante porra.



Segundo o Notícias Populares, em 1977 nascia em São Paulo, o Bebê Diabo. Detalhes AQUI.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Enxoval para o Bebê Diabo

Rosa choque




Nunca ela esteve tão radiante. Mesmo com a cara lavada, os cabelos meio oleosos e o cansaço do parto, Priscila era só orgulho e vaidade. Dera à luz um garoto forte e agora mostrava o troféu cor de rosa aos visitantes. Pai não havia, pelo menos ela nunca revelara quem era. Quando a barriga começou a ser visível, ela apenas dizia que era uma produção independente. Morava com duas amigas mas mudou-se para um apartamento maior, segundo ela para poder cuidar melhor do nenê. Nunca explicou aquela licença inesperada de dois meses, nem o fato de ter voltado dela com a cabeça raspada. O bebê era lindo mas eu juro, mas quando o toquei no escuro, o brilho que vi em seus olhinhos era vermelho.








Segundo o Notícias Populares, em 1977 nascia em São Paulo, o Bebê Diabo. Detalhes AQUI.

O corpo


Sébastien Tellier - Look por RECORDMAKERS





O corpo existe e pode ser pego. É suficientemente opaco para que se possa vê-lo. Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo. O corpo existe porque foi feito. Por isso tem um buraco no meio. O corpo existe, dado que exala cheiro. E em cada extremidade existe um dedo. O corpo se cortado espirra um líquido vermelho. O corpo tem alguém como recheio.



ARNALDO ANTUNES - O Corpo



(Vídeo: Via.)

sexta-feira, 27 de maio de 2011

street view





Superman interrompido
em cinza
a muralha
derrota


(C.Brites)



(Imagem DAQUI, de Jon Rafman, um artista que coletou fotos do Google Street View. Explicações AQUI)

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Ata-me!





Os besouros chegaram à mesa. Eram quatro, talvez três... ou cinco. Quando abrem as asas é difícil contá-los. Tocavam as antenas. Primeiro pensei que gladiavam-se, mas nenhum parecia ferido. Aproximei-me da janela através da qual podia ver a mesa. Não me surpreendeu descobrir, os besouros tinham bocas, e línguas. Não compreendia a conversa. Na escola preferi estudar espanhol, negligenciando a língua besouro.


Arrependo-me até hoje. Perdi um emprego por não falar besouro fluente.



(Por Ricardo Delfin)

sábado, 30 de abril de 2011

Dedilhado




"
DEDILHADO - Palavra que designa em música a melhor disposição dos dedos para a execução de um intrumento. Entre os alaudistas da Ásia Menor no século XVII, os dedilhados de Yuçuf Maçudi eram particularmente valorizados. A expressão "dedilhado do demônio" significa que esta passagem é de uma extrema dificuldade. Existe uma versão hispânica desse "dedilhado do demônio", utilizada pelos mouros.

Esse dedilhado só é conservado numa forma adaptada para o violão. Pode-se observar que o demônio tocava, empregando além dos dez dedos um undécimo dedo: segundo a lenda, era deste modo que o demônio utilizava a cauda.

Alguns dizem que o "dedilhado do demônio" possuía, em sua origem, um significado completamente diferente - na verdade revelava em qual ordem proceder para fabricar ouro, ou ainda como dispor as árvores frutíferas no pomar, se se quisesse colher frutos frescos do início da primavera até o outono. Somente mais tarde foi usado como dedilhado em música, de modo que uma sabedoria nova escondeu e enterrou outras sabedorias, mais antigas. Seu mistério pode, portanto, ser transmitido em todas as linguagens dos cinco sentidos, sem nada perder do seu poder.
"


MILORAD PAVITCH - O DICIONÁRIO KAZAR (edição masculina)

(Cena do filme grego "Dogtooth" (Dentes caninos?) indicado a Oscar de filme estrangeiro. VIA.)

segunda-feira, 21 de março de 2011




4 de outubro


Tenho maus olhos, eu, a quem tanto comprazem os livros. Qualquer esforço maior prejudica-os; o meu gosto de ler é temperado pelo risco. Com o globo ocular um tanto dilatado (acontece, olhando-me no espelho, pensar que as córneas vão cair dentro da pia), tenho um ar alucinado e pareço incrédulo diante do mundo, o que é certo.

OSMAN LINS _ A RAINHA DOS CÁRCERES DA GRÉCIA

quarta-feira, 16 de março de 2011

Ata arrepiada





Oxossi. Cunhã. Ogun. Nunca os segundeiros foram tão imolativos, evocativos. O pai de santo chegou, vestido propriamente. Recebeu elogios pela indumentária. Mas logo interrompeu a sessão de cumprimentos. “Vamos logo à cerimônia”, disse circunspecto. “Temos muito a fazer”, concentrou-se e abriu os trabalhos. Além das Nanãs presentes, galinha, muita galinha, mesmo que com sabor russo. “O que importa é a intenção”. E eles regozijaram nas intenções. Pelos presentes, pelos ausentes sobretudo. Cerimônia de letras, incorporações, evocações e, depois, risos, que a saudade era muita. De provocar os que não foram, mas ligados na mesma sintonia. Arrepios ao longe, chegando em ondas e abençoando o encontro. Arrepios bem perto nas ruas da noite da cidade que queria adormecer. Com ou sem teto.



(imagem Pierre Verger. Via Photojournal)

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

balcão



Seu neto também se chamava Francisco. Lá estava ele do outro lado do balcão. Quiseram abrir espaço, avisá-lo para pegar a fila dos idosos e deficientes. Ele se recusou, acreditando que o faziam apenas por aquele lá do outro lado do balcão ser seu neto. Francisco não queria favorecimento. Precisaram insistir muito, e foi uma estagiária (tirando o piercing e o cabelo azul, pareceria Rosa) quem o convenceu. Um outro senhor, de aspecto mais urbano, tentou puxar conversa. Francisco evitava estes outros velhos das filas: costumavam reclamar de tudo, de todos, do mundo (era uma forma de evitar reclamar de si mesmo, de Deus, de tudo). Mas aquele velho era diferente. Comparou o tempo de antigamente e o de hoje e afirmava: este era o melhor tempo de todos. Francisco ouviu, mas não queria saber muito. Pensava nas galinhas, na chuva, na plantação. Ficou cabisbaixo: fitou os próprios pés, confinados em sandálias, ambos pareciam do mesmo couro ressequido. Francisco não era dado a fantasias, mas esquecera de um sonho no qual formigas se confundiam de caminho e faziam um ninho ali na sola, entre os dedos cor de pedra. O painel mudou de cor, e foi seu neto quem o chamou para ser atendido.


O neto não pediu benção nem nada. Francisco jamais ia falar com a vó ou com os pais sem pedir a benção. O neto tinha um fiozinho que saía de sua orelha, o velho lembrou-se de uma pescaria na qual levara o neto e este chorara no mesmo desespero do peixe vivo lutando para sobreviver. Agora ele mesmo se enganchava nos anzóis. O assunto que os parentes tinham era chato demais para desenvolver aqui: percentuais, juros, safra, terras. Francisco ouvia, mas não escutava. Deve haver uma hora para se usar calçados; uma hora para sair do mato; de perder a dó de matar galinhas; de aprender a falar direito; de deixar de roubar goiaba. Chega uma hora de deixar de ser Chico. Foi neste momento que Francisco percebeu que perderia sua terra para os homens que viviam atrás do balcão.







(imagem Sebastião Salgado - Sem título - 1983. Fonte: Antropologia Social.)

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Os escritores assassinos



"

Ano 2000. Entre as gélidas correntes do rio Oder, perto da cidade de Wroclaw, na Polônia, pescadores vêem um corpo boiando. Ao levá-lo para terra, as autoridades o identificam como Dariusz Janieszewski, dono de uma empresa de publicidade e membro de média importância na comunidade. Janieszewski havia desaparecido dias antes, e em seu corpo foram encontradas marcas de tortura. A causa de sua morte foi afogamento. O assassino, ao que parece, depois de torturá-lo até se cansar, limitou-se a amarrá-lo e jogá-lo no rio.

Tempo depois, o escritor Krystian Bala, filósofo com aspirações literárias, lança seu romance Amok. Nele, narra um assassinato muito parecido com o de Janieszewski. O livro, sem êxito de vendas, alcançou certa relevância no mundinho literário da Polônia e, graças a esta fama, um funcionário da cidade fez comentários na Internet sobre o crime e a obra de Bala.

De imediato, a polícia de Wroclaw prendeu o autor, a quem interrogou por 72 horas. Por fim, Bala foi liberado por falta de provas. A imprensa se revoltou contra a polícia e considerou o autor vítima da negligência das autoridades e do desespero por encontrar (ou fabricar) algum culpado pela morte do empresário. Bala aparentemente não conhecia a vítima e não havia motivo para que o escritor matasse o empresário. Mas a polícia não desistiu e, com uma investigação mais detalhada, descobriu que o filósofo havia conversado com Janieszewski no dia de seu desaparecimento. Depois, descobriu que o telefone celular da vítima, que não fora encontrado com o cadáver, havia sido vendido na Internet quatro dias depois do crime. O vendedor? Krystian Bala.

Faltava apenas uma peça para fechar o caso: não havia motivo para o crime. A polícia buscou pistas entre os conhecidos de ambos e descobriu que Bala era, na época do desaparecimento, amigo íntimo da ex-esposa do empresário. O autor foi novamente preso e, então, indiciado por homicídio. Apesar de alegar sempre inocência, foi condenado a 25 anos de prisão pelo assassinato do publicitário. Em sua defesa, alegou que havia se inspirado no crime para fazer seu livro, e que havia recolhido os detalhes da imprensa. Mas, segundo as autoridades locais, os trechos do livro são por demais exatos e mencionam dados que apenas a polícia conhecia. Graças à polêmica, Amok tornou-se um best-seller.
.
"

(Para ler o texto completo, com outras histórias de escritores assassinos, clique AQUI. Outros links para Kristian Bala: AQUI AQUI ou AQUI. Via Revista Speculum)

domingo, 30 de janeiro de 2011

Prosa espontânea de Jack Kerouac.




"this is Jack Kerouac’s list of 30 essentials from Belief and Technique for Modern Prose explicating in writing his Spontaneous Prose method:
  1. Scribbled secret notebooks, and wild typewritten pages, for your own joy
  2. Submissive to everything, open, listening
  3. Try never get drunk outside your own house
  4. Be in love with your life
  5. Something that you feel will find its own form
  6. Be crazy dumbsaint of the mind
  7. Blow as deep as you want to blow
  8. Write what you want bottomless from bottom of the mind
  9. The unspeakable visions of the individual
  10. No time for poetry but exactly what is
  11. Visionary tics shivering in the chest
  12. In tranced fixation dreaming upon object before you
  13. Remove literary, grammatical and syntactical inhibition
  14. Like Proust be an old teahead of time
  15. Telling the true story of the world in interior monolog
  16. The jewel center of interest is the eye within the eye
  17. Write in recollection and amazement for yourself
  18. Work from pithy middle eye out, swimming in language sea
  19. Accept loss forever
  20. Believe in the holy contour of life
  21. Struggle to sketch the flow that already exists intact in mind
  22. Don’t think of words when you stop but to see picture better
  23. Keep track of every day the date emblazoned in yr morning
  24. No fear or shame in the dignity of yr experience, language & knowledge
  25. Write for the world to read and see your exact pictures of it
  26. Bookmovie is the movie in words, the visual American form
  27. In praise of Character in the Bleak inhuman Loneliness
  28. Composing wild, undisciplined, pure, coming in from under, crazier the better
  29. You’re a Genius all the time
  30. Writer-Director of Earthly movies Sponsored & Angeled in Heaven"

(Via Literary Lovers)

(Foto Phillipe Halsman.)

domingo, 2 de janeiro de 2011

Nº08: Ciranda









Já passa da meia-noite, os passageiros desembarcam do trem com pressa, no desespero de não perder o último ônibus, que se ainda não saiu, está em vias. João gostaria de correr, mas está mancando, pé torcido. A estação é antiga, não tem elevador e você precisa chegar até a escadaria. Vontade de abordar a um destes estranhos: “Pede para o motorista esperar, pede para ele segurar só mais uns minutinhos, que eu já estou chegando.” Todavia esta não é uma cidade pequena; se fosse não haveria metrô. Uma cidade pequena, na qual todos se conhecem, cheia de pequenos segredos notórios, coberta pela vigilância dos vizinhos divididos entre repressores e calorosos. Aqui é cada um por si. E João acelera o que a dor permite acelerar, enquanto os demais se distanciam. Fica por último na corrida, passo a passo até alcançar o corrimão da escadaria fixa. João prestes a subir aqueles degraus todos quando vê no alto, no sentido oposto, diante da escada rolante: Maria.



Dali de onde está, João não tem certeza se Maria o viu. Improvável, pois a conhecendo do jeito que é, tão desconfiada, ciumenta, emocionalmente instável. João sabe que Maria não anda tomando seus remédios direito, mas ele não insistiu, nem tentou convencê-la do contrário. No fundo, João concorda com as queixas de Maria: sente sua letargia, a ausência do viço nos olhos, ressecada, quieta. Agora, entretanto, diante desta situação, João se arrepende de ter se calado a respeito. Já a imagina gritando lá do alto indiferente ao fato de estar em meio a estranhos: “O que você está fazendo aí? Já não deveria estar em casa? Não estava no velório daquela sua tia? Que perfume é este? Quem torceu seu pé?” Se Maria estivesse domada pela química, João poderia lhe contar a verdade, ou quase toda: sobre Sofia, sobre as jóias, sobre Calvino, o Instituto e o Falcão Maltês. Mas tudo dera errado, e João perdera celular, um dente e quase todo dinheiro: não fosse a enfermeira ruiva arrumar uns trocados para o ônibus, João teria que voltar para casa a pé. Agora sem nada só poderia esperar a fúria de Maria em tapas e arranhões e a humilhação pública de ser espancado pela mulher. Talvez nem tão pública assim, pois não havia mais ninguém na plataforma para dividir este embaraço. Contudo, é bom se lembrar da presença inescapável das câmeras de segurança e da certeza que um filme destes estaria na rede antes que se contratasse o advogado, algum capaz de conter a sanha sensacionalista dos curiosos.



Mas a mente de João trabalha com hipóteses, com as alternativas em jogo. Não poderia voltar correndo, tentar pegar o próximo metrô. Como se sabe, neste horário, os trens a circular são poucos e já passa do horário de funcionamento deles. Tampouco poderia subir correndo as escadas. Maria pregaria a vista naquela corrida manquitola, como se João praticasse marcha olímpica. Ela seria bem capaz de voltar pelas escadas e muito facilmente o alcançaria, não só pela sua velocidade (Maria foi campeã de corrida na escola), mas também porque com quase toda probabilidade já não haveria mais ônibus com o qual fugir.



Ocorreu a João de se abaixar atrás da mureta que separa as duas escadas. Porém, se ele se dobrasse rápido demais, óbvio que Maria atentaria nele. Quem sabe, preocupada, supusesse a queda de um estranho, um qualquer que sentiu-se mal e ficaria ali jogado até o dia seguinte. Mas, se por outro lado, ele se escondesse lentamente, Maria também desconfiaria. Por certo, acreditaria ser um ladrão, alguém armando arapuca, tocaia para atacá-la tão logo chegasse ao fim da escada rolante. Ela poderia inclusive empregar o que aprendera no curso de jiu-jitsu e defesa pessoal, puxar-lhe os cabelos, fazendo-o revelar sua face e então exigir explicações, explicações sempre insuficientes.


João precisa se decidir logo, o tempo passa e os passageiros já devem estar embarcando no ônibus no ponto diante da estação. Ele ainda está incerto se ela o viu ou não, porém começa a ponderar porque Maria também parou do outro lado da escada rolante. Vai ver ficou tão furiosa que não consegue esboçar reação nenhuma, como os dentes trincados e travados do cão antes de mordida. João evita encarar Maria, isto seria difícil, ela está longe, mas deixa a imagem da mulher em seu campo de visão. A princípio, imagina ser uma bolsa. Mas depois observa que se trata de uma tipóia. Como ela teria machucado o braço? João pressupõe um acidente no treino de jiu-jitsu, mas hoje não há aula. Quando precisou mentir a respeito do velório da tia em Santos, Maria respondeu que ficaria em casa assistindo a um filme de John Woo. O que ela fazia ali, na estação, tão longe de casa? Pretendia passar a noite fora, certamente, pois o próximo trem seria o último daquela noite. Suspeitando de uma traição, João deseja/não deseja estar com sua arma: enfurecido atiraria dali mesmo. Ele sabe que acertaria, sempre teve boa mira. Ah, e se Maria tentasse escapar, fugir na hora do último trem, ele se jogaria diante dela, João bem mais forte e pesado, e ela veria a porta automática se fechar e a escapatória desaparecer túnel adentro. Durante aqueles instantes, João divaga sobre o que teria levado Maria a estar lá, na estação, naquele horário: começa a juntar os fatos e relembra da ligação durante a madrugada de um homem chamado Platão e daquele repentino interesse sobre ourivesaria e das anotações sobre o Templo do Sol. Estaria ela envolvida com a Organização ou seria um caso com o professor de jiu-jitsu? Deve ser a Organização, pois ela não sairia para encontrar o amante assim, toda desarrumada, usando o metrô. O mais lógico seria pegar um táxi. Ou esperar o homem passar em casa, afinal ela não esperava que João aparecesse por lá. A não ser que estivesse apaixonada. Ou encurralada.


* * *

Relembraram uma cena do filme de Woo, as armas dos irmãos/inimigos apontadas contra a boca um do outro, no nariz o cheiro de outras pólvoras: como as serpentes no caduceu, como dois corpos no espaço em mútua atração e repulsão, na órbita dos desesperados, girando ao redor de si mesmos na ciranda em direção ao ralo do mundo.













(Escher.)