quinta-feira, 20 de maio de 2010

As gêmeas Olsen (? – 1907)









Dentre as diversas atrações dos espetáculos circenses do século XIX que vagavam pelo interior dos Estados Unidos, uma das mais inesperadas era a presença das irmãs Taureias, Maria Ida e Mariana Adamanteia (é). Segundo os cartazes, Taureias (ê) seriam filhas de Centauros e Sereias; porém não dispunham de partes bestiais [1]. O nome verdadeiro delas evidenciava a origem latino-americana ou mediterrânea. Entretanto, adotaram o sobrenome artístico e escandinavo de “Irmãs Maria Ida e Mariana Olsen”. Para ilustrar sua imagem nos cartazes, usavam uma figura de Rainha de Copas, as tranças cor de feno unidas em um complicado nó central de inspiração mística. Sem dinheiro para as entradas, você talvez espiasse através de um buraco na lona. E então veria as duas. Embora apresentassem quatro membros, todos eram braços: elas não tinham pernas; quatro seios, mas faltavam as bundas; duas cabeças, ausência de culote e quadril e nenhuma vagina. Onde o ventre de uma terminava iniciava o da outra. Elas remetiam àquela serpente de duas cabeças, feita apenas de começos. O espetáculo delas tinha conotações eróticas: quando uma levantava a saia, lá estava a outra, de cabeça para baixo sob a primeira. E então, esta se virava e assim por diante, dando várias cambalhotas de tal forma que o público já não sabia mais onde era em cima ou em baixo. Vai ver, nem elas sabiam. Cantavam em um idioma crioulo misturando sueco, russo, norueguês, espanhol e nahuatl. Ao fim da música, elas tiravam as saias, deixando apenas os corpetes, sobre uma silhueta de poucas curvas. Os velhos vaqueiros ficavam loucos ao ver as duas se sucedendo e sacavam seus revólveres e disparavam para o alto. O apresentador interrompia o tiroteio: mãos abertas e cartucheiras na cintura. Só depois de cessados os tiros, cheiro de pólvora pelo ar, chamava ao palco “El Comanche Borracho”. Surgia então um homem barrigudo em trajes indígenas. As vaias iniciais eram substituídas por risos quando os espectadores percebiam que o homem estava bêbado[2]. Prendiam as duas a uma roda e esta era colocada em movimento. O apresentador pedia silêncio: o número era perigoso e exigia uma grande concentração. Para o índio, o palco era um navio e o mundo, a tempestade. Mas antecipariam o final do espetáculo para você, um empregado do circo o surpreenderia; sem piedade, o jogaria longe depois de uns catiripapos. Apesar dos tapas e tudo mais, ainda assim você se lembraria da beleza estranha delas, daqueles grandes olhos tristes. Eram obrigadas a devorar coco de criança, para que pela outra boca saíssem pétalas. Brigavam muito, por banalidades: era difícil conciliar a vontade de ambas em ficar na posição normal. Em geral, ficavam estiradas em uma rede, lendo revistas francesas. Permaneceriam no Circo Mantecón por muitos anos até a morte do marido em um acidente incomum envolvendo cangurus e borboletas [3]. Segundo os registros históricos, existiram apenas exemplares femininos de taureias. Acredita-se que os masculinos – devido à sua natureza - estrangulam-se dentro do ventre da mãe. Não possuíam umbigo [4] As Olsen foram as últimas irmãs Taureias registradas: faleceram em doze de dezembro de 1907 na cidade do San Juan, México, em idade avançada. Não deixaram filhos.


* * *


(1):
Não confundir com a Taureia (é): criatura similar ao Touro, mas com cauda de baleia, responsável pelo afundamento de inúmeros navios na costa malgaxe. Alguns especialistas consideram a criatura do Oceano Índico uma subespécie do Mermahuatauro, avistada raramente em mares ou céus nórdicos. Ver NADIR, Abu Abdallah Muhamad “Relatos de Naufrágios na Costa Oriental da África: de 1000 a 1500”. Tradução Kawan Zarif; Recife, Editora Nautilus, 1969

(2):
O célebre humanista francês Claude Beau Zeau Klaun (1881-1938) classificaria este riso como um riso de identificação, no qual a audiência reconhece a semelhança do falar e do gestual do palco com aqueles da vida real, sendo em geral paródico e de fundo preconceituoso. Sim, pois como bem se sabe ainda hoje os índios norte-americanos vivem em um processo de degradação social e à margem da sociedade, sendo o alcoolismo e o suicídio resultado comum desta situação. Ver KLAUN, Claude B.Z. “Qual é a graça? Explicando a piada: Por uma explicação e taxonomia do humor”; Tradução Jean Michel Jarret; Rio de Janeiro, Editora Antárctica, 1953

(3):
Para detalhes, ver: INNUIT, Jean Michel & LEDGER, Jonathan Custer “Homeopatia Arqueológica Ártica: memórias do gelo do mundo pré-histórico”, Tradução Aluísio Alonso; Porto Alegre; Editora Globo, 1987.


(4):
A ausência de umbigos ou de registro de outros casos neste século levou à suposição que as Taureias pudessem ser um resultado de uma intervenção cirúrgica radical. Fatos recentes parecem corroborar este ponto de vista. No início da década de 50, um cientista soviético chamado Vladimir Petrovich Demikhov conseguiu transplantar a cabeça, ombros e parte dianteira de um cachorro pequeno em um mastim adulto. Os animais sobreviveram por alguns dias. Durante os quinze anos seguintes, o cientista refez várias vezes o transplante, todavia em nenhum caso os cães sobreviveram por mais de um mês. No início da década de 70, um outro cientista, desta vez o médico norte-americano Robert J. White (posteriormente se tornaria consultor de Bio-ética do Vaticano) promoveu transplantes de cabeças entre macacos Rhesus. Veja o documentário “Dr. White’s Total Body Transplant”, disponível no You Tube ou (mais rápido) leia o conteúdo deste LINK (Via Sedentário & Hiperativo). A repercussão do caso chegou a inspirar filmes de qualidade discutível.
Diante destes fatos escabrosos e amplamente divulgados, chegou-se à uma nova teoria conspiratória, esta tradição tão norte-americana. Suspeita-se que as Taureias pudessem ser fruto de um experimento cirúrgico com a macabra intenção de criar monstros circences. Veja Ortiz, James Wido,”Aberrações Circenses no Oeste Americano após a Guerra da Secessão”, Tradução José Canjica Maupassant; Rio de Janeiro, Rio Gráfica Editora, 1979. Infelizmente, nove metros de lava cobriram o sepulcro delas depois da erupção do vulcão Paricutin em 1952, tornando impossível a verificação atual de tais hipóteses.







(imagem Hans Bellmer... La Poupeé...Links AQUI )

quarta-feira, 12 de maio de 2010

nº06: Escadaria






Quando a porta fechou, deixou um vazio. A mão espalmada na janela do vagão era a fotografia da despedida. Era o desconsolo. E a vida que se espalhava desordenada nos próximos 60 anos não poderia ser mais sem graça. Foi o que pensou naqueles poucos segundos que se congelaram entre o beijo e o baque das borrachas da porta.

Então mudou de casa, de caminho, de marca de cigarro e de óculos, de café para chá de boldo, de horário de trabalho e foi mudando o quanto pôde, mas a imagem era nítida: o beijo, o baque e a mão espalmada marcando o vidro. Só não conseguia deixar de ir uma vez por semana àquela plataforma, na segunda porta do terceiro vagão, com uma esperança de ela esta na porta. Era o que pensava. Ficava ali das 20h00 às 20h30, às quintas-feiras. Um pouco antes, ou depois. E nada acontecia.

Não era quinta, ou quarta, muito menos terça, mas numa segunda-feira que por acaso desembarcou ali, na plataforma. Esperou dez minutos, pouco mais, ou menos. Olhou no relógio duas vezes. O eco do nada se confundia com o rangido agudo dos trilhos. Subiu na escada rolante com a esperança de que ela o levasse para longe dali. E um olhar pescou o dele do meio daquela massa quase amorfa que descia apinhada. Quando os olhares se cruzaram, na mesma altura, quase se atracaram, num afã que beirava o obsceno. E se viraram. E se encararam. Até o fim.



(Petê Rissati.)

sábado, 8 de maio de 2010

nº05: Amazonas




A porta do metrô abriu, e, lentamente, João saiu do vagão. As pessoas corriam para entrar no trem, apressadas. João tossiu. Arrumou os óculos sobre o nariz e procurou as flechas de saída, uma vez que não havia fluxo de pessoas para se orientar. Alguns pareciam gritar para ele, mas João ouvia mal, coisas da idade. Entretanto, ele poderia ter notado no cheiro de algo queimando. Caminhou com vagar para a escada, o sapato chiando sobre o piso da plataforma. O trem partiu, a composição passando cada vez mais rápida a seu lado, o mundo corre e os velhos ficam para trás. Lá em cima, as Amazonas invadiam a estação. Os rinchos e cascos estalavam na calçada. Um policial tentara reagir e agora ele era arrastado no asfalto por uma guerreira a cavalo. A carcaça de um ônibus fumegava, elas jogavam roupas livros revistas dvds piratas para alimentar aquela chama. Apearam de seus corcéis, espadas em punho, escudos erguidos. Buscavam aqueles que tentaram fugir por ali. Disparavam setas e arremessaram lanças contra passageiros e funcionários. Alguém que filmava os eventos com um celular teve a mão decepada. Um grupo rodeava a bilheteria à prova de balas. Os funcionários se escondiam ali dentro, chamavam por ajuda. Golpes de maças contra o vidro desenhavam estranhos girassóis. Finalmente trouxeram o candeeiro para os archotes e as flechas. Queimariam eles ali, em meio ao dinheiro, às moedas, aos bilhetes de metrô. As pessoas se deitavam e se encolhiam, as Amazonas puxavam estes pelos cabelos, roupas, mochilas. Deixavam estes degolados, os gritos afogados na mancha lenta densa de sangue pelo chão. Outros corriam, mas as setas varavam a carne interrompendo a fuga. Uma mulher da limpeza reagiu com vassouradas e até acertou uma antes de ser talhada pelos sabres. Alguns eram poupados, acorrentados, empurrados para a rua onde ocorriam outros massacres. E João subia as escadas com dificuldade. Nem viu o cadáver que descia sobre a escada rolante, a flecha certeira nas costas. Maria, a assassina, caminhava lentamente em meio aos gritos: queria se certificar que aquele estava morto. O corpo chegara ao fim do percurso e era sacudido pelas ondas dos degraus da máquina como se fosse um afogado. Arco ainda na mão, retirou outra flecha da aljava e desceu a escada rolante para recuperar a seta sangrenta. Ignorou as instruções de segurança aconselhando a sempre segurar o corrimão. Maria percebeu o velho subindo as escadas. Se antes ele estava alheio a tudo, agora notou aquela seminua, um dos pequenos seios mutilados. Ela retesou o arco que cedeu com um rangido reclamação de corda e madeira. Quando os dedos afrouxaram e a seta saltou com um silvo no ar, Maria o reconheceu, talvez tarde demais:


-Vô..?






(Kate Moss. Não lembro onde achei esta foto)

terça-feira, 4 de maio de 2010

ATAraio veados




Sim, meus caros irmãos, meus estimados drugues... Era uma Sexta Feira Santa, dia que Nosso Senhor Bog pereceu na cruz, feriado que todos os decrépes precisam ficar em suas tocas, entatuzados pensando em todas as estrumadas feitas na vida... O governo emitiu o soviete de toque de recolher; como em todos os anos. Eu avisei isto a BB, mas ela não quis nem saber:

-Eu liguei para todo mundo e ninguém vai viajar no feriado. Traga umas bebidas.

Lógico que ninguém iria viajar: a previsão era de precipitação de cinzas por aqueles dias. Mas era aniversário da Claudinha e não ia furar. A gente chamava ela também de BB, não sei se era porque ela era uma lesbo novinha ou se era pela Bardot.

Usei as vias secundárias para evitar as barricadas das brigadas evangélicas. As ruas estavam vazias. Preferi estacionar um pouco distante e caminhar. A cada passo, meus sabogues levantavam um pó fino e mérsque que sujou as barras de minha calça. Esperei na esquina até certificar-me que não vinha ninguém e fui até a casa. Não queria dar o azar de cruzar com um milicente. De fora, era evidente a movimentação da festa, as golosses, as gargalhas, os govorites, o Amadeo bem gronque na vitrola, me lembrou a um destes filmos estarres de Natal que passavam na TV, não lembro mais qual.

Quem abriu a porta, foi a Krizzy. Estava bonita, a devótchca. Vestia – como sempre – uma roupa branca e estava dependurada no teto fazendo aquelas travuscas de vampiro. Ela se soltou de lá e feito uma gata virou no ar e caiu de pé no chão em um tumdum pesado.

-Meu querido, como está..?, com um sorriso onde se vinham os zubes pontiagudos pronto para uns plóches nos chieéques dos desavisados.

Cumprimentei o restante dos drugues e bretes de nossa alegre confraria horrorshow, além de uns liúdes que eu não conhecia. Estavam a Ester, o Thiago, Isidoro, Bruno, o Alê, o Dênis, e mais uns outros que desmemoriei. O Otávio ensinava à Claudinha a dar uns golpes de dratsa sobre o tatame: na hora, Otávio esgavaratava a BB, que reclamava da força. Não era muito justo um curumin dar porrada na cunhatã. Mas a gente conhecia o Otávio, de iarbos maiores que o gulliver, sempre querendo ser machão, quebrar tudo, um cara da pesada, já havia sido preso algumas vezes, mas sempre escapulia: seu pai se esfolava no Ministério e ele nunca ia deixar seu querido pimpo se dar mal numa Prisesta. A Claudinha, apesar de esganada, conseguiu perguntar:

-Você veio sozinho...? Cadê o Flavio?

-O Flavio ficou em casa, preparando declaração de IR.

A Fê se esmerava atrás do bar preparando molôcos e drencons. Deu para perceber que ela estava meio piânitsa depois de experimentar zerocentos coquetéis.

-Apenas pra ver se está bommm...

E me estalou um betchov na minha bochecha.

-Êêê... Você não sabe que meu negócio são os Tchelovéques, não?

-Ué, você precisa abrir seu gulliver a novas experiências...

-Niet, meu gulliver só quer saber de abrir outra coisa... rs

Nos fundos da toca, os casais estavam na maior Arena. Descobriram que 60% das separações aconteciam devido às tarefas domésticas. Bruno e Thiago se posicionaram de um lado do anel e Isidoro e Alê no outro. Eu não entendi bem qual era o grande problema. Achei que tinha algo a ver com unhas e o mal do saponáceo sobre a derme. O Dênis me explicou: aquele que cede não é homem.

A gente chamava Dênis de dedé e babúshca, aludindo ao fato de ser o único avô entre nós. Era uma brincadeira para encher seus gréjines. Dênis estava muito bem, mas porque não atormentá-lo um pouquinho...? Ele já fora um cara mais nervoso, mas de um tipo que saía para punchar e terminava punchado. Sua jina o abandonara e só agora depois que a filha deles tivera uma munhequinha, ele reencontrara sua família. Agora gargalha mais. Mas ele já confessou para mim: se rever o tchelovéque da jina arranca-lhe o cabo de panela e o arremete aos jacarés do Tietê.

O pessoal estava na maior confraria. Eu cantei Linda do Roupa Nova. Mas a Fê estava impossível, ela queria me fazer hetero:

-Eu SEI que você cantou para mim..., e segurava minha mão.

-Arre!

-Larga mão de ser bunda mole...

-Mas para você, o pau vai estar mole também.

-Cabo de panela não fica mole, meu drugue...

A Fê era uma menina muito tímida, tímida demais para estes nossos tempos tão exibicionistas. Baseado-se na lei de oferta e demanda, a timidez deveria valer mais hoje em dia. Não que sirva de alívio para quem é tímido. Porém, bastava uns goles de molôco e a moça queria baixar as calcinhas e oferecer a nijinsky pro primeiro que aparecesse. Ficava bebinha e taradinha. Por algum motivo misterioso, ela encarnou em mim, e não no Dênis. Perguntei a ela o motivo:

-De enrugadinho, só gosto do saco. Mas se VOCÊ estiver, eu encaro vocês dois...

-Eu só vou, se o Dênis for...

-Sai pra lá, de pinto de homem já basta o do meu neto na fralda...

Aí começaram os preparativos para o sarau cinematográfico. Funcionava assim, depois da Grande Queima de Livros, às pessoas só era permitido assistir aos filmos. Por mim, tudo bem, sempre odiei ler. No máximo, gibi do Conan. Então, não existiam mais saraus, recitaus, etc e taus. Então, a Claudinha e a Esterzinha inventaram esta história de sarau cinematográfico... A gente se reunia e relembrava o pedaço de um filmo que vejassistimos.

Otávio pegou sua rabeca e fez a trilha sonora... O Bode interpretou o discurso sobre a paixão que Sandoval declama em “El Secreto de tus Ojos”. Isidoro descreveu a abertura de “A Touch of Evil” de Orson Wells. Claudinha não negou seu lado BB e nos recitou “Et mes fesses? Tu les aimes, mes fesses?”. Otávio - óbvio - fez o nascimento de Zé Pequeno em “A Cidade de Deus”:

-Dadinho o caralho, meu nome é Zé Pequeno, porra.

Todos estavam empolgados com películas horrorshow e eu escolhi uma cena que gostei de um meia boca. Enquanto eu fazia a minha parte, a Fê esfregava seu pezinho descalço nas minhas costas.

-O Chamado 2. Muito pior que o primeiro. Mas há uma cena... há uma cena...Naomi Watts e seu filho vão fazer um passeio de final de semana em uma feira no bosque. Lembro ou imagino alguns brinquedos de parque de diversões. Nada muito espetacular. Talvez seja o equivalente a um destes parques de periferia que existiam antes do soviete anti-entretenimento. O menino está perturbado e não consegue se divertir. Faz frio. O menino vê entre a mata que arrodeia o local, uma sombra. Um veado. Naomi chama o garoto. Decidem ir embora. Discutem por algum motivo. O único bom motivo para haver continuação em um filmo de terror seria para revelar que o verdadeiro terror não acaba. Sempre ecoa. Nunca esqueço quando atropelamos um homem. Não esqueço o baque mudo da carne no metal. Mas isto não é o filmo, é outra história. A mãe e o menino discutem. Ela não presta atenção à estrada. O filho grita. Ela freia. O carro para. Há um veado. Bambi estragou os veados. Na Europa, ele ainda é um símbolo de virilidade. No rótulo do absinto, há um veado verde. Eles se batendo na floresta. Os chifres engalhados um no outro. Os machos morrem presos em seu ódio. O veado encara os ocupantes do veículo. Um outro animal se joga contra a porta do carro. Querem o menino. A janela quebra. Outros veados perfilam-se pelo acostamento. Eles se agrupam. Um terceiro se joga contra a porta da motorista. A porta amassa. Ela pisa no acelerador, o veado não sai da frente. Ela buzina. Os demais cercam-nos. A mãe avança, o carro sacode. O animal não cede. Ela acelera o carro e depois solta o freio de mão. O veado é empurrado até tombar sobre o capô. Dispara adiante. Os animais ficam ali, plácidos, vendo o carro ir embora.

Fui embora uma hora depois. Dou a desculpa das brigadas evangélicas. Foi a sorte: um vizinho fez a reclamação e a Krizzy precisou arrancar a cabeça de alguns distintos milicientes. Mas esta é outra história. Além disso, já não estava presente. Presente? Puta merda, esqueci o presente da Claudinha no carro!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Nº04: Os vivos e os mortos




As escadas são paralelas, uma para subir, outra desce. As pessoas tateiam o corrimão de borracha, medem a velocidade dos degraus de aço a correr sob seus pés, deixam-se levar pela máquina; antes corriam, apressadas para chegar ali, então se aquietam, se conformam, se calam, silenciam, calmas ou sufocadas pelas demais. Entregam-se ao percurso. Sem ter o que fazer, batucam a borracha preta, procuram o espaço adiante onde as pessoas desembocam, ou veem a paisagem mudar lentamente sem esforço dos pés, como se flutuassem, como se estivessem mortos.



Mas aquela outra gente que escala os degraus ao lado não admira paisagens, não há espaço para isto. Precisa-se acompanhar o ritmo das demais, o rosto baixo para os próprios pés e degraus, para a bunda logo adiante, o som sibilante dos passos como o de muitos relógios marcando tempos diferentes, ou o de muitos pedidos de silêncio. E o peso de tudo que se carrega está ali, evidente nas bolsas, pastas, mochilas, sacolas, compras, naquele esforço inútil de quem está vivo ou Sísifo condenado, porque no dia seguinte, se estará ali de volta, no caminho inverso de ir para o trabalho. Rebanho, cardume, enxame. Sobrevive melhor quem não está sozinho, dizem. Mentira: sobrevive melhor quem está vivo.



E ali ele levantou o rosto, querendo ver um além adiante, saber se ainda faltavam muitos degraus, e ela no ritmo suave e contínuo da máquina o viu também e os olhares trocados ali, um fitando o outro, sem piscar, como animais predadores ou cegos. A máquina continuou a impelindo e a multidão atrás o impediu de se voltar ou de parar. O rosto um do outro se misturou com a indiferença dos outros todos vistos naquele dia. Mas por aquele breve pequeno momento souberam. E acreditaram.




Música de Philip Glass






(De um comentário retirado do YouTube sobre Koyaanisqatsi - @pim80180 : " I dont think its frightening. But it makes you conscious of a bigger movement which an individual can not control. Its the march of humanity in which we all take part. Its been going on for thousands of years en will go on long after we have died. It is maybe that overwhelming fact that may be perceived as frightening. But in the end we are all small pieces of this movement. It is us, but we cannot control it. A deep paradox in our (short) lives" )