segunda-feira, 20 de setembro de 2010

nº 10: Apesar de seus olhos desesperados










Maria debruçada sobre João. João deitado ao pé da escadaria vê os degraus que o levariam à saída. Assim, sob esta perspectiva, desaparece rumo ao teto de concreto da estação. João se lembra da lua-de-mel em Cancún: de uma pirâmide pré-colombiana, onde os sacerdotes arrancavam corações e os arremessavam pulsantes escadaria abaixo. Sente algo grudento a molhar suas costas; percebe que é sangue quando encara Maria, Maria e seus olhos desesperados.

Já havia algo parecido com desespero em seus olhos enquanto ela descia a escada rolante. João subia os degraus da escadaria fixa, paralela a esta e escutou um gemido abafado que se aproximava. Ele estacou e passou a observar aquela menina de cabeleira vermelha. Maria aparentava vergonha de braços cruzados e uma mão ocultando a boca. Algo parecido com maquiagem borrava seu rosto e não escondia sinais do choro.

João é casado. Um cara sossegado, tanto faz se for por preguiça ou por amar Joana: não pula a cerca, nem tem uma tara especial por adolescentes. Mas por estar já um tanto alto pelos uísques e cervejas da festa no escritório, por ela ter escondido o rosto, por ela ter grandes e lacrimosos olhos azuis. João afrouxou a gravata e ficou parado ali no meio da escada, observando-a.

Maria estava encardida, mas tinha um estilo moderno, não sei se diria gótica, talvez classe média: uma calça preta justa sobre pernas magras, uma malha de listras grossas como faixa de pedestres, os cabelos lisos cobrindo a mochila de urso de pelúcia, mas em um conjunto meio desarranjado, imundo e amassado como um vira-lata. João pressupôs uma história triste, fuga de casa, pai violento, mãe repressora, um primeiro amor que terminou mal, como sempre terminam mal os primeiros amores. Lembrar de seu primeiro amor fez João continuar a subir a escada. Esqueceu-se da menina, mais preocupado em comprar dropes para disfarçar o bafo de álcool.

Entretanto, não havia primeiro amor na história de Maria. Devia ser meio-dia quando os caçadores invadiram sua casa. A mãe a sacudiu com força para acordá-la, dedo no lábio em gesto de silêncio e num sussurro ordenou que se escondesse na caixa d´água. “Vamos dar um jeito nestes homens maus”, assegurou seu pai. Maria assentiu silenciosamente, abraçou os dois e inspirou fundo querendo guardar o cheiro. Eles a ajudaram a subir pelo alçapão do forro. Ela caminhou com cuidado, desviando da luz que vazava entre as telhas, enquanto escutava os tiros e gritos. Arrastou o tampo e mergulhou naquele espelho frio e escuro da água.

Ficou ali, orando aquilo que lhe era possível orar, esperando. Maria empurrou o tampo e saiu de seu esconderijo. Os raios de sol se inclinaram e mudaram de lugar, passara-se uma hora ou mais. Ela se moveu silenciosamente para não alertar os caçadores. Contudo, um cheiro de fumaça e um brilho alaranjado se infiltrava pelas frinchas do forro: os homens atearam fogo à casa e esperavam do lado de fora, em um último ato antes do anoitecer. Ela abriu o alçapão e um sopro quente de fumaça atingiu seu corpo.

As chamas se espalhavam rapidamente. Maria pegou uma coberta velha e imunda esquecida ali e a encharcou na caixa d´água. Saltou no buraco do alçapão, esperando talvez uma morte breve sob as chamas, disparos de estacas ou pulverizada por água benta. Contrariando o esperado, já passava da meia-noite e ela sobrevivera, ferida, desamparada, mas ainda vivia. Ou algo parecido com isto. Pretendia se refugiar nos túneis do metrô até a noite seguinte, mas a fome a perturbava e seus olhos eram desejo e desespero e ela também viu João, João subindo as escadas em um balançar bêbado. Ela tenta se controlar, consegue se conter até o final da escada, mas como uma criança mal-comportada diante da mesa de doces, ela volta correndo, sobe os degraus de cinco em cinco e ataca João pelas costas. Ambos caem violentamente e antes que ele possa entender o que está acontecendo, já está deitado aos pés da escadaria, Maria debruçada sobre João, a boca e as presas imersas em sangue, e João murmura ao encarar o rosto dela.

-Eu sabia, eu sabia que era bonita.











Fonte imagem: esqueci. Foi de um tumbrl, acho que este.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cyberata

Cyberata, agosto de 2010.

Nos reunimos ao som incessante de drágeas motorizadas que continham em seus interiores essência e morte. Ao fundo, na esquina uma guitarra violava o sossego do encontro. Não que fosse um ritual, não que fosse sagrado – tampouco era profano –, mas havia a sede de meses tensamente cálidos, pinicando nossas gargantas; e havia na lista de criaturas (sempre tem uma lista, sempre tem criaturas) uma velha bruxa plantando pessoas em seu quintal na Cidade Ademar, conformando o desespero de homens vegetalizados pela modorra da existência e pelo medo de encararem sua nova condição: planta. A velha não imaginava que plantaria pessoas, mas queria isso, só não sabia ainda. Recebia de campanhas de doação de roupa etc, toda a sorte de peignoir. E há mais de trezentos anos, só se vestia assim. Principalmente, quando recebia a visita de mandrágoras feitas de sêmen enforcado e rijo. Talvez não tão rijo quanto aquele garoto – apodrecido ao nascer – que costumava mostrar-se pinto por baixo das mesas, elencando quais as meninas veria por dentro. Há quilômetros dali uma adolescente naufragava em mil, talvez milequinhentos litros d’água, rezando para que não a encontrassem, para que não acendessem as luzes, para que as frinchas do teto permanecessem inalteradas enquanto ela esperava o fim do incêndio. (O incêndio kriptoniano que a separaria para sempre de seus pais). Enquanto na estação de metrô João a esperava, ébrio de uísque e escritório, desfilando para si, sua filosofia vadia e as coisas que pensaria quando finalmente a visse, quando finalmente sentisse o toque de seus lábios e dentes afiados. Não era pedófilo, nem estuprador. Já o homem de Tundra, esse sim. Estuprava sua mente com doses cavalares de cus de mendigos rasgados – não mais de menininhas – e chegava todo dia em casa decapitado, levando consigo a lasanha que a mulher, também um vegetal, comeria antes de moer-lhe o espírito com as lamúrias da vidinha que levavam em Tundra. Valei-me meu Coletivo-dos-Anjos!, a trama temporal era tão intensa que gostava de dizer isso esperando por Tarik, senhor do tempo e dos crimes, novato na arte de matar pessoas mais de uma vez e também na arte de pegar sua mulher com outro, toda vez que voltava no tempo. Abdala o alertara sobre isso, eram companheiros, não podia ser diferente. Vigiavam crimes ocorridos, sem nunca poder mudar o resultado. Oxalá tivessem vindo conosco. Pelo menos, naquela hora, a guitarra seria calada a balas. Não tínhamos pretensão de demorar, mas queríamos. Queríamos voltar pra megalópole: uma bolha de aço transparente que flutuava sobre nossas próprias cabeças, nos dizendo não faça isso, depois de tanto tempo, não faça isso, compartilhe-se, vire pó, neblina, uma tenda no deserto, mas não faça isso, não deixe de lado a sua essência, soque-a numa drágea motorizada e siga o caminho da guerra da paz, é lá que estaremos todos, é lá que encontraremos as sombras, e a memória que é real, não essa, inventada toda hora, coberta de tosse e cigarro, de abortos e fodas mal dadas. A coisa ia nesse ritmo, e, eis que surge Joana, não a Joana que se casara com João por ele não ser pedófilo, nem estuprador – diferente do homem de Tundra –, e sim, Joana, a outra. A que media os níveis psicodélicos (psicotrópicos?) de nossa razão, necessária razão, e, entre um gole e outro de sumo de gente-vegetal (sim, ela conhecia a velha bruxa...) enquadrava-nos nos mais variados níveis de insensatez, porém sempre com o mesmo carimbo: anormal. Hmpf, se ela visse como se comportam os que faltaram, chamaria imediatamente os crono-meganas e desmantelaria nosso pequeno conchavo ideicônico. E não fosse o Dr. Nassar – treinador estilístico de Tarik e Abdala, co-criador da máquina do tempo diraquiana – ser o único mendigo anão remanescente na megalópole, ainda estaríamos reunidos, semi-ébrios de essência criadora, esquecendo-se de nossas drágeas motorizadas, de nossos ossos, de ranhuras e frinchas causadas pelo mal uso da existência, e felizes, ao nosso modo, mas felizes.

nº07: Negativo










João não pegou o metrô naquele dia. Não sentou no assento preferencial, destinado aos inválidos. Não perscrutou discretamente os demais passageiros. Não ouviu o condutor da composição anunciar sua estação. Não seria sua estação, porque não estava lá. Não desceu, não cruzou a linha amarela de segurança na plataforma ou as trilhas em relevo para as bengalas dos cegos. Não acompanhou a multidão no caminho para a saída. Não foi mais um, embora sempre tenha sido. Não subiu passo a passo os degraus da escadaria fixa. Não viu Maria do outro lado. Maria também não estava lá, então não haveria Maria para ver. Ela não desceu as escadas rolantes. Maria não viu João do outro lado. Nem esperou o trem chegar, nem ouviu seu sopro rugir no túnel, nem o freio rinchar nos ouvidos. O trem que não levou Maria sumiu na escuridão no caminho para as demais estações.

João e Maria que não pegaram o metrô naquele dia. Nunca esperariam encontrar seu amor no metrô. João e Maria que não estavam sozinhos, estavam um com o outro, em um não-lugar todo deles.












(Fonte clipe: Mrs Muddle - Bebê de Rosemary, por Twink)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Os de segunda em antologia



Quatro dos Escritores de Segunda compõem o time dos autores de Mecanismos Precários, antologia de contos organizada por Nelson de Oliveira e Claudio Brites, que será lançada no sábado 11 de setembro, num lançamento "bombástico" na sede da editora Terracota com direito a coquetel e show de jazz.

Esperamos poder contar com a presença de todos vocês. Compareçam!